23 Agosto 2019
Contra a nova alienação representada pela manipulação dos dados por algoritmos colocados a serviço das grandes corporações e Estados, o economista Pierre Dockès chama, em um artigo publicado no Le Monde, 20-08-2019, a uma “insurreição cívica”.
Pierre Dockès é professor honorário de Economia na Universidade de Lyon-2, e autor de Le Capitalisme et ses rythmes, quatre siècles en perspective. Tome II : Splendeurs et misère de la croissance [O capitalismo e seus ritmos, quatro séculos em perspectiva. Tomo II: Esplendores e miséria do crescimento] (Classiques Garnier, 2019) e, com Jean-Hervé Lorenzi e Mickaël Berrebi, de La Nouvelle Résistance. Face à la violence technologique [A Nova Resistência. Face à violência tecnológica] (Eyrolles, 2019). A tradução é de André Langer.
As grandes ondas de mudança técnica suscitaram reações de rejeição que poderiam culminar na revolta. A Idade Média rejeitou as inovações consideradas maléficas. A revolução industrial provocou as revoltas ludistas [luddismo: movimento contrário à maquinaria no início da revolução industrial]. O advento da grande indústria fez da fábrica uma “prisão moderada” e da sociedade uma “megamáquina”.
No entanto, a tecnologia não é, em si mesma, responsável pelos males a ela atribuídos. Os ludistas atacaram as máquinas, mas suas consequências negativas se explicam pela sua implementação sob relações sociais específicas. No entanto, as técnicas não são “inocentes”, uma vez que foram configuradas em um determinado esquema social.
O mesmo vale para hoje: o ser humano vê-se ameaçado por uma grande expropriação de suas “capacidades” (nas palavras do economista indiano Amartya Sen, Prêmio Nobel de Economia de 1998), de suas liberdades substanciais. Para a filósofa Simone Weil (1909-1943), “a sociedade menos má é aquela em que o homem comum tem as maiores possibilidades de controle sobre o conjunto da vida coletiva e tem mais independência” (Reflexões sobre as causas da liberdade e da opressão social, 1934, Editora Antígona, 2017). Assim, ela valoriza a vida dura do pescador ou do artesão medieval porque são vidas de “homem livre”. É sob este ângulo de alienação que a revolução digital deve ser julgada, e não apenas como uma outra revolução industrial.
Aos dois principais processos históricos reconhecidos pelo economista Max Weber (1864-1920) – a formação do capital pela expropriação dos pequenos produtores independentes de seus meios de produção (retomado de Marx) e a formação do Estado como detentor do monopólio da violência legítima (em A Política como Vocação, 1919) –, soma-se agora uma terceira fase que se apoia sobre as ondas anteriores.
Nossos dados privados capturados, agregados pelo cruzamento dos dossiês e revendidos, permitem a manipulação dos comportamentos, uma publicidade e propaganda direcionadas. Os smartphones e os objetos conectados (que o 5G vai permitir centuplicar) são todos espiões. As safe cities [cidades seguras] capazes de controlar com precisão todos os movimentos e identificar qualquer comportamento “anormal” estão aumentando. A moeda privatizada permitirá um controle aprofundado sobre os nossos dados vitais.
Isso pode chegar até o assujeitamento por um Estado-partido totalitário, como na China de Xi Jinping. O reconhecimento facial é onipresente neste país, o sistema de classificação generalizado pelo “crédito social” leva em conta os “dados de conexão” – o que pode incluir as relações de amizade (daí as estratégias para evitar “amigos” mal avaliados) – e a esfera privada praticamente desapareceu. Já uma forma branda desse sistema orwelliano está se desenvolvendo nos países ocidentais.
Essa alienação encontra e forja nossos desejos, para melhor adequá-los aos interesses dominantes. Os seres humanos influenciados em breve estarão consumindo os produtos que um algoritmo designará a partir dos seus dados pessoais. O algoritmo irá escolher, ordenar e pagar por eles, com seu consentimento expresso, se não tácito. Muitos já percebem que a captura de seus dados permite uma formatação publicitária personalizada e que a safe city satisfaz seu desejo de segurança.
O imperceptível e progressivo advento de uma sociedade da vigilância, a perda da autonomia econômica e política e o desaparecimento da vida privada são relativamente pouco desconfortáveis, uma leve coceira para o indivíduo, tanto os benefícios técnicos são grandes! Mas a própria capacidade de pensar de forma autônoma, ou simplesmente pensar, está em risco.
Sem falar do transumanismo, modelando assim o “último homem”, aquele descrito por Nietzsche em Assim Falou Zaratustra, tão desprezível que nem mesmo ele se despreza, aquele que as multidões de antigamente e algumas redes sociais de hoje reclamam sob o olhar benevolente dos poderosos. Como explicamos em A Nova Resistência. Face à violência tecnológica (Eyrolles, 2019), escrito com Jean-Hervé Lorenzi e Mickaël Berrebi, necessitamos de um salto democrático. Essa luta pelo ser humano está à altura daquela pelo planeta – além de as razões profundas serem as mesmas.
A chamada autorregulação dos GAFA [Google, Amazon, Facebook e Apple] é uma pretensão, mas a esperança de sua regulamentação pelos Estados não é melhor. Os Estados são dependentes, cúmplices ou até mesmo responsáveis. Nos Estados Unidos, Donald Trump acenou com ameaças de retaliação em defesa dos GAFA para impedir uma modesta tentativa de fazê-los pagar impostos. E na China, o Estado tem o domínio sobre empresas como Alibaba, que lhe permitem exercer o controle social.
Em última análise, só podemos contar com uma insurreição cívica, com as resistências individuais e coletivas que já estão sendo desenvolvidas, não contra a revolução tecnológica em si, mas inventando novas técnicas, novas configurações e novos usos mais sóbrios, rejeitando as práticas alienantes, a fim de recuperar o espírito libertário que caracterizou os primórdios da internet.
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“A capacidade de pensar de forma autônoma, ou simplesmente pensar, está em perigo”. Artigo de Pierre Dockès - Instituto Humanitas Unisinos - IHU