02 Setembro 2020
A Conferência Episcopal da Polônia propõe a criação de centros de aconselhamento (também com a ajuda da Igreja ou de suas estruturas) para ajudar quem deseja recuperar sua saúde ou orientação sexual “natural". Poderia ser uma manobra anti-Bergoglio como um teste de reação para avaliar iniciativas futuras. O Vaticano ignora o caso.
A reportagem é de Francesco Lepore, publicada por Linkiesta, 01-09-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Já está gerando discussão, e muita, o documento Stanowisko Konferencji Episkopatu Polski w kwestii Lgbt+ (Posição da Conferência Episcopal Polonesa sobre questões LGBT+, ndr), que os bispos da terra de Wojtyła, reunidos para a 386ª Assembleia Geral (27-29 de agosto) no santuário mariano de Jasna Góra em Częstochowa, adotaram na sexta-feira passada.
O resumo foi oferecido em comunicado oficial que, além de apresentar os demais temas abordados nos três dias - desde o ensino escolar de religião até os abusos de menores pelo clero, do incentivo ao retorno dos fiéis à igreja após a pandemia ao 40º aniversário da fundação da Solidarność -, ressalta como o Stanowisko recorda “a necessidade de respeitar as pessoas que se identificam como LGBT+.
Ao mesmo tempo, opõe-se aos esforços desses círculos para dominar a vida social, em especial pelo desejo de equiparar as relações homossexuais aos casais e conceder-lhes o direito de adotar crianças. A Igreja está pronta para ajudar aqueles que experimentam lágrimas interiores e dificuldades de identificação de gênero. Sugere o desenvolvimento de centros de aconselhamento para ajudar essas pessoas. Os bispos também expressam sua gratidão a todos aqueles que, no espírito da doutrina do Papa Francisco, se expressam pela defesa da família nos espaços públicos”.
Desse sumário, já se evidenciam os tons e os conteúdos do documento episcopal que, num total de 27 páginas, é constituído por 108 parágrafos, divididos em quatro capítulos: 1) A sexualidade do homem e da mulher na visão cristã do ser humano; 2) Movimentos Lgbt+ na sociedade democrática; 3) Pessoas LGBT+ na Igreja Católica; 4) A Igreja quanto à posição LGBT+ sobre a educação sexual de crianças e jovens. Mas apenas uma leitura completa permite compreender sua gravidade e alcance incendiário no contexto da situação polonesa, cada vez mais dominada pela insistente retórica anti-LGBT+ de Duda e representantes da coalizão de governo Zjednoczona Prawica (Direita Unida, ndr).
Retórica, coincidentemente, emprestada da eclesiástica e ao mesmo tempo empregada na cruzada contra a "ideologia LGBT+" que atingiu picos de inusitada violência no verão de 2019. Ou seja, antes das eleições políticas de 13 de outubro de 2019 que teriam visto mais uma vez vitorioso o PiS de Kaczyński, quando houve episódios de agressão e protestos contra os Pride Białystok (20 de julho), Radomsko (17 de agosto) e Lublin (28 de setembro) por grupos ultranacionalistas, neonazistas e católicos tradicionalistas.
O documento de 28 de agosto, além de se referir de forma insistente à fantasmagórica ideologia de gênero, muitas vezes identificada pura e simplesmente com aquela LGBT+, insiste na necessidade de reagir ao desinteresse dos movimentos LGBT+ pelos elementos biológicos e psicológicos da sexualidade humana, depauperada do fim procriador e negada em suas características de reciprocidade e complementaridade entre homem e mulher.
Segundo os prelados, que citam no número 10 o documento da Congregação para a Educação Católica do Vaticano “Homem e mulher os criou”. Por uma via de diálogo sobre a questão do gênero na educação, se criaria uma “separação radical do sexo biológico (sexo) do sexo sociocultural (gênero). O sexo biológico-anatômico é baseado em critérios biológicos e psicológicos. O sexo sociocultural determina como experimentar e realizar a diferença entre os sexos em uma cultura específica. A separação equivocada do sexo biológico e cultural, que de fato relativiza o sexo biológico, se traduz em uma distinção “entre diferentes orientações sexuais que não são mais determinadas pela diferença do sexo biológico entre um homem e uma mulher, mas podem assumir outras formas definidas apenas por uma unidade radicalmente autônoma”.
Mas não basta. As pessoas da comunidade LGBT+, ao dar "prioridade às inclinações sexuais que negam a complementaridade de gênero entre homens e mulheres", comprometeriam "pelo menos implicitamente sua vocação parental" (nº 5). Disso decorre a impossibilidade da Igreja (com um convite também às autoridades governamentais) de aceitar a extensão do conceito de casamento e família, a equiparação dos direitos e privilégios matrimoniais aos casamentos entre pessoas do mesmo sexo, o reconhecimento das uniões criadas por casais do mesmo sexo, juntamente com a regulamentação da situação patrimonial, da pensão alimentícia e da herança, a adoção de crianças por eles, bem como o direito de determinar o próprio gênero para pessoas com idade igual ou superior a 16 anos.
Obviamente, um não firme à educação sexual de menores como proposta por pessoas de associações LGBT+, cujos "meios, métodos e objetivos [...] vão muito além do âmbito da educação, que deve ter em conta o bem-estar integral das crianças e dos jovens. Uma educação responsável não pode ser conciliada com o fornecimento às crianças de materiais que revelem a intimidade humana, ensinem-lhes o prazer de ‘manipular’ a sexualidade e lhes apresentem as primeiras experiências sexuais”(nº 23).
Mas o parágrafo mais preocupante é certamente o 38, em que o episcopado polonês defende a necessidade de “criar centros de aconselhamento (também com a ajuda da Igreja ou de suas estruturas) para ajudar as pessoas que desejam recuperar sua saúde sexual e orientação sexual natural. Essas clínicas também fazem sentido quando a transformação sexual completa se revela muito difícil. No entanto, elas ajudarão significativamente a enfrentar os desafios psicossexuais.
O postulado desses centros de aconselhamento está em clara contradição com as opiniões oficiais de grupos LGBT+, com posicionamentos considerados científicos, bem como com o chamado “politicamente correto”. No entanto, não se pode ignorar o testemunho de pessoas que em um determinado momento perceberam que sua sexualidade diferente não é uma situação irrevogável ou uma codificação irrecuperável, mas um sintoma de feridas de sua personalidade em diferentes níveis. Portanto, eles, sinceramente desejosos por curar a dor vivida, fizeram um longo, às vezes heroico esforço e, com a ajuda de pessoas competentes, recuperaram uma identidade saudável e uma harmonia espiritual ou, pelo menos, alcançaram a capacidade de viver em harmonia consigo mesmos na paz interior”.
A esse respeito, Vittorio Lingiardi, psiquiatra, psicoterapeuta e catedrático de psicologia dinâmica da Universidade Sapienza de Roma, declara a Linkiesta: “Não pude consultar todo o documento do episcopado polonês, de momento creio que ainda não está traduzido, mas li uma tradução do parágrafo 38. Expressões como ‘orientação sexual natural’ e ‘cura’ são estranhas ao vocabulário científico. E quando se trata de ‘saúde sexual’ e de desenvolvimento harmonioso da própria identidade, sexual ou de gênero, meus parâmetros são aqueles da literatura científica e da experiência clínica. Falar em ‘centros de aconselhamento’ para pessoas que não aceitam a própria homossexualidade e gostariam de mudar de orientação sexual parece-me uma forma nem tão velada de evocar as chamadas ‘terapias reparadoras’. Na prática: ajudar, com palavras e preceitos, pessoas em crise com a própria identidade a ‘se tornarem’ heterossexuais”.
O acadêmico milanês também lembra que “toda a comunidade clínica e científica (da Organização Mundial da Saúde a todas as associações profissionais da saúde mental, incluindo a Ordem dos Psicólogos e a Associação Italiana de Psicologia) considera a homossexualidade não patológica e reafirma sua posição contra qualquer intervenção ‘reparadora’. Quanto à disforia de gênero, trata-se de uma condição dolorosa, mas também não patológica, que deve ser aceita e acompanhada por pessoal médico e psicológico especializado, em sintonia com as diretrizes e protocolos internacionais”.
Segundo Lingiardi, quem hoje fala da homossexualidade “como uma condição que pode ser ‘modificada’ por meio de intervenções autodenominadas ‘terapêuticas’ não usufrui de nenhum reconhecimento na comunidade acadêmica e profissional. O volume de literatura científica a esse respeito é enorme, basta ler sobre isso. Eu acrescentaria que as intervenções destinadas a ‘converter’ a homossexualidade em heterossexualidade não são apenas ineficazes, mas também prejudiciais (e isso já foi dito por Freud em 1920). Isso não significa que não haja pessoas em conflito com sua própria orientação sexual, mas não é prometendo mudanças improváveis ou aliando-se com sua homofobia internalizada que podem ser ajudadas. Quem quiser ter uma ideia de como funcionam as ‘terapias reparadoras’ pode ver alguns filmes que acredito serem muito instrutivos: Prayers for Bobby, O mau exemplo do Cameron Post e Boy Erased – Uma verdade anulada. Eles falam da dor de não amar a si mesmo e de lutar contra os próprios sentimentos”.
Segundo Roberta Padovano, ativista e conselheira, “as hierarquias católicas, como aconteceu no passado, confirmam o seu papel de fiel ombro às políticas governamentais mais reacionárias, misóginas, homofóbicas e transfóbicas e o fazem pontualmente no auge de um período de violências policialescas e campanhas de ódio. Declaram que é necessário criar centros de aconselhamento, até mesmo clínicas, onde as pessoas possam recuperar a sua ‘saúde sexual e a orientação sexual natural’ e oferecem a ajuda da Igreja e das suas estruturas para isso”. Ecoando Lingiardi ao afirmar que "a homossexualidade, a transexualidade não são doenças, portanto as chamadas terapias reparadoras são apenas práticas baseadas em preconceitos anticientíficos", observa: "As palavras da Conferência Episcopal seriam ridículas, mas no contexto autoritário polonês infelizmente são tragicamente culpadas e irresponsáveis”.
Nessa perspectiva, surpreende bastante o silêncio ensurdecedor do Vaticano sobre o Stanowisko: cinco dias se passaram desde a sua adoção, mas nenhuma palavra foi lida ou ouvida dos líderes da Santa Sé. O próprio site oficial Vatican News não deu nenhuma notícia até agora, exceto na versão polonesa e, ainda por cima, com um artigo sucinto. Concordância ou vontade de não dar publicidade a um texto claramente embaraçoso?
Uma avaliação geral da Posição é dada à Linkiesta por Andrea Rubera, porta-voz da "Caminhos da Esperança" (Associação nacional pessoas LGBT+ cristãs), segundo o qual "soa antimoderna e contraditória por muitos motivos". Não só porque “contraria o princípio da ‘hierarquia das Verdades’ no que se refere aos ensinamentos da Igreja e à doutrina. Até agora, de fato, nas questões de orientação sexual e identidade de gênero, nenhuma intervenção foi feita ao mais alto nível dos pronunciamentos papais”. Mas também pela "modalidade contraditória e desnecessariamente devota" com que se expressa, "citando aqui e ali ‘as dificuldades, os sofrimentos e as lágrimas espirituais vividas’ pelas pessoas LGBT+ e logo em seguida dando, por exemplo, um sinistro aval às teorias reparadoras".
Para Rubera, "o aspecto preocupante é o contido no ponto 50, onde a Conferência Episcopal Polonesa parece abrir um novo caminho para a elevação do juízo sobre as pessoas LGBT+ a um nível absoluto: ‘A Igreja nos lembra que seu ensinamento nesta matéria se baseia na Palavra de Deus, na Tradição apostólica viva e na lei natural. É, portanto, universal, imutável no tempo e no espaço, e é infalível’. Em um momento em que o mundo precisa mais do que nunca de pontes, os muros erguidos pelos bispos poloneses para encerrar a vida das pessoas LGBT+ parecem inoportunos e em antítese com a pastoral para e com as pessoas que o Papa Francisco está desenvolvendo”.
Como então explicar tal documento? “A dúvida - especula o porta-voz de 'Caminhos da Esperança' - é que tenha sido publicado por pressão de alguns grupos anti-Bergoglio presentes no Vaticano como um teste de reação para a avaliação de futuras iniciativas”.
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O grotesco documento dos bispos poloneses para “ajudar a curar” as pessoas LGBT+ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU