“No âmbito das juventudes católicas envolvidas em pastorais, recorrentemente, as pessoas LGBTQIA+ são percebidas e construídas como 'sujeitos desviantes'. Essa exclusão, operada pelo jogo das instituições e dos seus porta-vozes, é resultado não somente do ataque direto a essas pessoas, como também das políticas/tecnologias/dispositivos de silenciamento que atuam dentro dos espaços sociais, pastorais e religiosos”, escreve João Victor da Fonseca Oliveira, historiador e professor de História. Mestrando em História na Universidade Federal de Minas Gerais. Membro do Grupo de Pesquisa “Diversidade Afetivo-Sexual e Teologia”, na Faculdade Jesuíta - Belo Horizonte. Ele atua em atividades pastorais há mais de 10 anos, junto às juventudes. Atualmente, desenvolve pesquisa sobre Gênero, Espiritualidade e Experiência Religiosa de Jovens LGBTQIA+ em comunidades católicas de periferia.
“Ser o que se é, falar o que se crê, crer no que se prega, viver o que se proclama
até as últimas consequências”
(Dom Pedro Casaldáliga)
No mês de junho celebramos o mês internacional da visibilidade LGBTQIA+. Neste momento, como em todos os outros, somos interpelados a lutar pela dignidade e participação plena daqueles/as que foram historicamente marginalizados/as, sobretudo nos espaços religiosos.
Por isso mesmo, devemos nos perguntar: o que a Igreja Católica tem a ver com isso?
Muitas autoras e autores notáveis têm se dedicado a responder essa pergunta. De diferentes formas, buscam demonstrar as múltiplas relações entre a violência dirigida às pessoas LGBTQIA+ e o discurso institucionalizado proferido pela Igreja.
Contudo, o desafio que nos interpela consiste em demonstrar como e em quais direções essas violências se manifestam.
Esse não é um tema alegórico dentro das realidades pastorais. Ao contrário, na experiência religiosa cultivada pelas juventudes, temos visto uma ousadia profética que amplia as possibilidades para uma vivência autêntica da Alegria do Evangelho. A experiência religiosa que emana das vidas e das práticas das juventudes LGBTQIA+ supera e faz progredir a tradição que enquadra e normatiza tantas vidas como “seres intrinsecamente desordenados”.
A afirmação teológica de um ser desordenado requer aquela mesma desmontagem que superou a noção patologizante, também na Organização Mundial da Saúde, na década de 1990, quando retirou o “homossexualismo” da lista de doenças, e “transtornos de identidade de gênero”, em 2019. Do “sodomita” ao “doente espiritual” a Igreja participa desse discurso violento e insustentável. Resulta disso, um esforço coletivo, rumo a radical despatologização desses corpos, também eles, profundamente teológicos.
No âmbito das juventudes católicas envolvidas em pastorais, recorrentemente, as pessoas LGBTQIA+ são percebidas e construídas como “sujeitos desviantes”. Essa exclusão, operada pelo jogo das instituições e dos seus porta-vozes, é resultado não somente do ataque direto a essas pessoas, como também das políticas/tecnologias/dispositivos de silenciamento que atuam dentro dos espaços sociais, pastorais e religiosos.
Esse tem sido o principal resultado encontrado na pesquisa sobre “Gênero, Sexualidade e Experiência Religiosa” que vem sendo desenvolvida no interior de um grupo de pesquisa, sobre diversidade afetivo-sexual e Teologia, pelo autor deste texto.
Os dispositivos de silenciamento [1] atuam como forças específicas de produção de subalternidades, interdições, culpas, enquadramentos e formas de reconhecimento precárias, compartilhadas e, de diferentes formas, reafirmadas dentro das instituições religiosas, incidindo sobre suas práticas. Tais dispositivos formam, conformam e atuam nas subjetividades das juventudes, mediante o desejo que nutrem em suas experiências religiosas, numa tensão permanente, pela qual desformam e recriam tais estratégias [2]. Talvez, por isso, esses jovens permanecem, apesar de tudo.
Esses dispositivos atuam junto aos enquadramentos que mobilizamos em nossa prática pastoral. Enquadramentos pastorais que, cotidianamente, vão conformando formas mais ou menos legitimadas de existir dentro dos espaços religiosos.
Os enquadramentos podem ser compreendidos como discursos que modelam, classificam, hierarquizam e efetivamente enquadram a vida de mulheres, gays, transexuais, lésbicas etc dentro do espaço religioso [3]. No interior desses esquemas, tanto àqueles/as que fazem parte desses grupos pastorais, quanto àqueles/as aos quais essas atividades se dirigem, atuam no interior de um enquadramento. Aumentando ou diminuindo as chances de cada um/a ser percebido/a como uma vida que importa [4].
A perspectiva conservadora apoia-se na inibição da diversidade, buscando manter um controle obstinado sobre os corpos, suas expressões e relações. O risco é que o discurso conservador aniquila a possibilidade de existência daqueles/as que, por qualquer razão, não se associam à regra hegemônica - sempre uma operação de poder.
Por isso mesmo, tudo isso deve ser debatido dentro das pastorais e comunidades eclesiais. Senão pela culpa, ao menos, pela responsabilidade. Ao encararmos essas feridas, deveremos começar por denunciar seus sintomas.
Talvez o episódio mais sintomático, nesse sentido, esteja na passagem do Documento preparatório para o Sínodo das Juventudes, publicado em 2017, para o documento final do Sínodo, cujo texto foi aprovado na tarde de 27 de outubro de 2018. Uma relação pouco explorada.
O documento preparatório surpreendeu por trazer a palavra “LGBT” que foi, mais tarde, retirada. Tal perspectiva anunciava uma demanda vinda da realidade e da vida das juventudes, conforme aponta o número 53: "falem em termos práticos sobre assuntos polêmicos como a homossexualidade e as questões de gênero, sobre os quais os jovens já debatem livremente sem tabus" (n. 53). Mais adiante, o documento preparatório afirmava que "Alguns jovens LGBT, por meio das várias contribuições enviadas à Secretaria do Sínodo, desejam 'beneficiar-se de uma maior proximidade> e experimentar uma atenção maior por parte da Igreja" (n. 197). A discussão ainda pautava, de forma mais ou menos evidente, a inscrição desses corpos dentro do marco do “reconhecimento institucional”.
Já no documento final, composto por três partes, 12 capítulos, 167 parágrafos, 60 páginas, como resultado da XV Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, sobre o tema "Os jovens, a fé e o discernimento vocacional", os resultados encontrados foram surpreendentes - nem por isso, promissores. Nele, aparece somente a palavra “homossexualidade”, citada uma vez no item n. 39, e a palavra “homossexuais” citada duas vezes, no item n. 150.
Torna-se fundamental ressaltar que o documento final, dentro de um quadro analítico, aponta para as disputas históricas sobre os sentidos do corpo, da sexualidade e das concepções de “natureza”, “cultura” e “diferença sexual”.
Ao mesmo tempo que considera “redutivo” definir a identidade das pessoas unicamente a partir da sua orientação sexual, o documento estabelece o tempo inteiro bases normativas, totalmente fundamentos na suposta “diferença sexual”, atrelado à sexualidade onde se assentaria a “orientação sexual” (o que, por sua vez, concretizaria o ideal de harmonia, como propõe o texto). Não se trata de uma contradição, em termos, mas de uma intencionalidade discursiva (um ato performativo que visa instituir uma realidade). A performatividade de gênero tem aí, sua máxima expressão [5].
Nesta batalha simbólica, devamos notar que:
a) Em relação ao item n. 39, houve: 195 aprovações (PLACET) e 43 desaprovações (NO PLACET).
b) Em relação ao item n. 150, houve: 178 aprovações (PLACET) e 65 desaprovações (NO PLACET).
Os dados, quando confrontados aos resultados finais da votação aos outros itens, ganham especial relevância na medida em que são disparadamente mais voluptuosos. Foram os itens menos aprovados e, ao mesmo tempo, os mais desaprovados, concomitantemente. Com uma ressalva, que também nos parece fundamental pontuar. O n. 150 foi, de longe, o item menos aprovado, seguido do n.121, e depois, do número n. 39. O n. 150 foi o mais desaprovado, disparadamente, seguido do n. 121 (51 desaprovações), e na sequência o n. 39 (43 desaprovações).
A ressalva refere-se ao número 121, que curiosamente propõe a Sinodalidade como caminho da Igreja. Plataforma de Francisco em seu papado. Por aí, temos uma métrica da resistência que Francisco tem enfrentado.
Mais uma vez, o Sínodo das Juventudes é, antes de tudo, um sintoma.
Esses deslocamentos são definidores das feridas que mantém a relação da hierarquia da Igreja com as pessoas LGBTQIA+. Feridas profundas demais para não sangrarem.
Felizmente as juventudes LGBTQIA+ sentem-se cada vez mais encorajadas a apresentarem suas demandas. Dessa vez, não em troca de aceitação ou legitimação de suas vidas, recusando, inclusive, serem percebidos na lógica da “falta e do desvio”, ou dentro do mero “marco institucional” na luta pelo reconhecimento, quando isso significa reconhecimento precário.
A renovação sábia e corajosa requeridas pelo Papa Francisco, na proposta de um Igreja em Saída, não poderá se concretizar se também não realizarmos uma saída em direção àquelas estruturas normatizantes (e, portanto, excludentes) que operam junto aos dispositivos de silenciamento no interior das comunidades religiosas. São essas práticas que alimentam atitudes preconceituosas e violentas, dentro da Igreja.
O pânico moral em torno da categoria de Gênero em nada contribui. Ao contrário, termina por tentar ocultar as hierarquias sociais consubstanciadas pelos marcadores sociais da diferença.
As pessoas LGBTQIA+ não são doentes espirituais, tampoucos vítimas de uma grande tragédia pessoal. Como nos diz Teresa Forcades:
“Todas as classificações desaparecem nessa etapa onde a pessoa é capaz de atrever um horizonte vital de singularidade e intimidade, em uma relação de gratuidade. O amor de Deus é um amor trinitário de comunhão, um amor que em sua raiz é sinal de reciprocidade, liberdade, de aliança e de gratuidade e não se confunde com as classificações. Essa é a ordem do amor”.
Um profundo apelo, a fim de que as homilias não se convertam em discursos de ódio normalizadores da violência. Essa mesma violência disfarçada de “acolhimento” que pretensamente se dirige àqueles/as considerados/as como “falta grave/falha/desvio”, que se baseia uma forma de inclusão autorreferenciada, estabelecendo aqueles que são “normais” e os seus contrários.
O mesmo Cristo que nos chama, escandalosamente, à vida plena e em abundância para todos, caminha conosco. Este manifesto soa como desafio e um convite para um diálogo sem reservas com as realidades emanadas da vida e das práticas das juventudes que conformam, juntos aos outros, suas próprias experiências [6]. Esse gesto implica um novo jeito de propor e viver uma pastoral fecunda e atenta a sua própria condição, fundada na ética de Jesus:
“A ética de Jesus se pautava na defesa de vida digna e da liberdade de todos os seres humanos. Jesus dedicada especial atenção e tempo aos pequeninos, aos caídos à beira do caminho, aos que não tinham voz nem vez na sociedade do seu tempo” (Vida Pastoral, ano 59, n. 320. p. 3)
Somente livres dos preconceitos nos quais fomos socialmente educados, livres das formas de exclusão e discriminação, livres do tempo que nos recua para dentro de nossa indiferença, e livres para a liberdade do Evangelho, podemos com autenticidade elevar a Deus nossa vida, como a mais bela forma de oração. Afinal, “rezar é abraçar a vida como ela é” [7].
Este Manifesto Pastoral (disponível neste link) é dedicado a todas as pessoas LGBTQIA+ que vivem com autenticidade e liberdade profética suas experiências religiosas.
Belo Horizonte, 2020.
51 anos da Revolução de Stonewall.
[1] Podemos compreender um dispositivo como “um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode tecer entre estes elementos (FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2000. p. 244).
[2] Trabalhos semelhantes como o de Murilo Araújo e Cris Serra têm chegado a conclusões parecidas.
[3] Ressaltamos a definição original de “Enquadramento/ to be frame”, que significa ao mesmo tempo ser enquadrado e ser incriminado, como afirma Judith Butler, autora do conceito original.
[4] As molduras pelas quais apreendemos ou, na verdade não conseguimos apreender a vida dos outros, são si mesmas operações de poder. Quantos de nós já ouvimos em alguma intenção de celebração o nome de uma travesti assassinada?
[5] Conceito desenvolvido por Judith Butler, a partir de John Austin, para quem a linguagem deve ser tratada essencialmente como uma forma de ação e não de representação da realidade, levando-nos a considerar que são as condições de uso da sentença que determinam seu significado.
[6] Cf. Veritatis Gaudium.
[7] Célebre frase do Cardeal José Tolentino Mendonça.