22 Julho 2020
"A concepção de representação no populismo constitui um terceiro aspecto do conceito, citado por Wendel Cintra. 'O populista se concebe como a encarnação do povo e da vontade do povo, a face e a voz do povo. Vamos encontrar aí a formulação o povo sou eu”. Ele explica que, na medida em que nega a legitimidade dos corpos intermediários, dos partidos políticos, dos sindicatos, das universidades, o populista coloca-se como única e exclusiva forma de expressão da vontade popular. “É uma concepção da representação bastante difundida entre os populistas, sejam de direita, sejam de esquerda'", escreve Eliane Bardanachvili, em artigo publicado por Fiocruz, 16-07-2020.
As democracias contemporâneas vivem hoje um “assédio populista”, que deve ser enfrentado por um melhor entendimento do impreciso e polissêmico conceito de populismo, tão comum nos debates políticos atuais. A análise é do professor e pesquisador Wendel Antunes Cintra, do Departamento de Ciência Política e do Centro de Pesquisas em Humanidades da Universidade Federal da Bahia, que, nesse sentido, apresenta em vídeogravado para o blog do CEE-Fiocruz uma anatomia do populismo, as diferentes abordagens do conceito e os dilemas nele embutidos.
“Populismo é um conceito muito impreciso, na forma como é utilizado na linguagem política contemporânea”, observa o professor. “Hoje, é muito comum que o tema apareça nos debates políticos, na imprensa, nos textos de análise de conjuntura, na literatura acadêmica. Fala-se de populismo de esquerda, de populismo de direita, de populismo de extrema direita, de populismo judicial. Há uma variedade imensa de usos desse conceito, que transitam do senso comum para uma linguagem mais especializada, das ciências sociais”.
Wendel Cintra observa que, de alguma forma, todo conceito político é, por essência, polissêmico, assume variados sentidos e significados que variam no tempo e no espaço, de acordo com o uso que cada ator político faz. “Assim como o conceito de democracia, de liberdade, de igualdade, que têm uma carga semântica muito variada, o conceito de populismo também carrega ambiguidades, tensões internas”.
Entre os economistas, por exemplo, conforme aponta o professor, há os que consideram populistas as medidas ou políticas econômicas de caráter heterodoxo [que retiram o foco do equilíbrio dos mercados e das contas públicas, em prol do desenvolvimento e do social]. “O governante que aprove ou leve a cabo medidas heterodoxas do ponto de vista da política econômica é estigmatizado e tachado como populista. Isso é muito comum no debate econômico”.
Já autores que se filiam ou se aproximam do liberalismo político vão tratar do populismo por outra chave, prossegue Wendel, com ênfase na ideia de corrupção, levando a formas de autoritarismo, desconstruindo os mecanismos de freios e contrapesos da democracia [relacionados à harmonia entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário]. Outra abordagem, ainda, do conceito de populismo citada pelo professor, “inspirada num certo marxismo”, toma como base a experiência do período varguista [Era Vargas, período compreendido entre 1930 e 1954, nos governos do presidente Getúlio Vargas] no Brasil.
Wendel Cintra cita diversos autores que abordam o tema do populismo [ver as referências no final] e toma como base, em especial, Pierre Rosanvallon, no livro Le siècle du populisme [O século do populismo], ainda sem tradução no Brasil, para fazer uma anatomia do populismo. “O populismo constitui uma forma, uma linguagem política baseada em um binarismo, uma dicotomia entre um nós e um eles, entre duas entidades mais ou menos monolíticas – o povo e uma elite, cultural, econômica, uma oligarquia”, observa, acrescentando que haveria uma diferença entre o populismo de esquerda e o populismo de direita, na forma de pensar esse antagonismo entre o nós e o eles.
“No caso de um populismo de esquerda, esse antagonismo se manifestaria a partir de um posicionamento entre os de baixo e os do alto, os de cima, uma polarização vertical”, aponta. “No caso do populismo de direita, a oposição acolheria um outro tipo de formulação, os de dentro e os de fora. O nós, como nação, se contraporia a um outro que são os de fora, os imigrantes, os judeus, os comunistas, os de esquerda, aqueles que, digamos assim, ameaçam a homogeneidade dessa comunidade”, explica, observando que o populismo de direita pode se desenvolver a partir de práticas xenofóbicas. “Vamos encontrar isso no populismo de direita da Europa e, em alguma medida, dos Estados Unidos de Trump”.
Outro aspecto citado pelo pesquisador no que se refere ao conceito de populismo diz respeito a “uma certa concepção de democracia”, reduzida a mecanismos eleitorais como expressão da vontade do povo. “Como consequência, há uma visão muito refratária a qualquer tipo de mediação institucional”, explica. “Os populistas vão tensionar o debate político contra todos os corpos intermediados da sociedade civil e contra as instituições do Estado que gozam de alguma autonomia, como as universidades, a imprensa, quando não se submetem à vontade do líder”. São considerados como elementos antidemocráticos, que não representam verdadeiramente a vontade do povo.
De acordo com o professor, a ideia de legitimidade, nesse sentido, reduz-se ao momento eleitoral, capaz de pôr fim a conflitos sociais. “Aquele que alcança o maior número de votos tem legitimidade para implementar não só um programa de governo, mas para falar em nome da totalidade da nação”.
A concepção de representação no populismo constitui um terceiro aspecto do conceito, citado por Wendel Cintra. “O populista se concebe como a encarnação do povo e da vontade do povo, a face e a voz do povo. Vamos encontrar aí a formulação o povo sou eu”. Ele explica que, na medida em que nega a legitimidade dos corpos intermediários, dos partidos políticos, dos sindicatos, das universidades, o populista coloca-se como única e exclusiva forma de expressão da vontade popular. “É uma concepção da representação bastante difundida entre os populistas, sejam de direita, sejam de esquerda”, considera.
O pesquisador assinala também características da “linguagem populista”, sustentada nas emoções. “O populismo vale-se de uma comunicação que mobiliza afetos, da raiva, do desprezo, do abandono, do desencanto democrático e, podemos dizer, da negação de tudo que está aí. Os populistas se alimentam desses sentimentos e dessas emoções mais ou menos difusas do mundo contemporâneo”.
Nesse sentido, observa Wendel, são comuns as “narrativas simplificadoras”, que buscam conferir sentido a um mundo complexo, em que há dificuldade de racionalização. “As teorias da conspiração, por exemplo, têm essa função de criar uma falsa sensação de reapropriação do mundo, a partir da revelação de engrenagens misteriosas que não se apresentam, mas que controlariam a sociedade e a política”, analisa, destacando que isso pode ser observado nas sociedades contemporâneas nas quais a “retórica populista” ganha relevância, com a cisão entre um discurso racional, tecnocrático e o mundo vivido. “Os populistas se alimentam dessa cisão e buscam explorar esses sentimentos de abandono, de déficit cognitivo, em relação ao mundo social”.
Para Wendel Cintra, os quatro aspectos citados ajudam a compreender a dinâmica de movimentos que têm levado as lideranças populistas ao poder em diversos contextos e diversos países. Isso é propiciado, conforme analisa, por um “desencanto democrático”, resultante de impasses que as democracias liberais representativas enfrentam hoje e para os quais o populismo oferece respostas. “Respostas ficcionais, simplificadoras, mas que vão ao encontro desse sentimento”. Para ele, assim, pensar uma crítica do populismo implica discutir essas condições que permitem o seu êxito.
“Vivemos em sociedades em que há uma crescente desigualdade social, em que os mecanismos de redistribuição de renda, de bem estar social, do welfarestate têm se mostrado falhos para responder aos desafios de uma nova economia baseada na tecnologia, no conhecimento”, considera. “Outras características típicas de nossa sociedade, como o fenômeno novo da comunicação digital, pela via da internet, também têm colocado obstáculo às formas tradicionais de representação política. O populismo tem se alimentado dessas falhas e desses impasses da democracia”.
GOMES, Angela de Castro. O populismo e as ciências sociais no Brasil: notas sobre a trajetória de um conceito. In: FERREIRA, Jorge (Org.). O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 17-58
LACLAU, Ernesto. A razão populista. Rio de Janeiro: EdUerj.
MOUFFE, Chantal. Por um populismo de esquerda. São Paulo: Autonomia Literária.
ROSANVALLON, Pierre. Le siècle du populisme: Histoire, théorie, critique. Paris: Seuil.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Desencanto democrático e o êxito do populismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU