30 Junho 2020
"Aos grandes livros sobre religião que prepararam e nutriram a integração europeia, como os clássicos de Max Weber, Émile Durkheim e Jacques Maritain, é preciso adicionar alguns novos", escreve Marco Ventura, em artigo publicado por La Lettura, 28-06-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Quando o Muro de Berlim é derrubado em novembro de 1989, um novo capítulo se abre na história religiosa da Europa. Os quarenta anos anteriores foram dominados pela contraposição entre o ateísmo marxista-leninista e a liberdade de religião de sociedades cada vez mais secularizadas e multiconfissionais. Aos grandes livros sobre religião que prepararam e nutriram a integração europeia, como os clássicos de Max Weber, Émile Durkheim e Jacques Maritain, é preciso adicionar alguns novos.
Gilles Kepel, "A vingança de Deus". Quando a cortina de ferro cai, o cientista político francês Gilles Kepel analisa os dez anos que se passaram desde que, quando jovem, foi estudar árabe em Damasco. Ele viu se consolidar o regime khomeinista nascido da revolução iraniana e o exército soviético sucumbir diante da resistência dos mujahideen no Afeganistão. Ele viu o papa polonês sacudir a Europa do Oeste secularizada e a Europa comunista do Leste, o judaísmo político prevalecer em Israel e muito mais. Em 1991, com seu A Vingança de Deus, Kepel resume a virada e anuncia um novo mundo. Deus sobreviveu à modernidade. Ele toma a “revanche” contra quem o dava como morto. A religião é uma força política decisiva, não raramente prepotente, às vezes violenta.
Jacques Delors lançou há poucos meses o projeto "Uma alma para a Europa". Está sendo preparado o Tratado de Maastricht, com o qual a União Europeia nascerá em 1993. A Europa reunificada de então se identifica com uma religião moderada, tolerante e pluralista. Nas décadas seguintes, Kepel consegue intuir, a Europa da revanche de Deus também será um laboratório de populismo religioso, teatro de violência em nome de Deus, berço de terroristas islâmicos.
Grace Davie, "Religion in Britain since 1945". Em 1994, a socióloga inglesa Grace Davie publica seu levantamento de meio século de religião no Reino Unido. O subtítulo da obra é uma fórmula que revoluciona a abordagem contemporânea da religião. Com Believing without belonging (Acreditar sem pertencer), Davie indica a persistência da fé em uma sociedade fora do Reino Unido na qual declina o sentido de pertencimento às religiões organizadas. A fórmula é bem-sucedida além do caso britânico e até mesmo além do seu significado. Termina indicando a fragmentação dos vários elementos que compõem a experiência religiosa, a fé e o pertencimento, claro, mas também a prática, a propaganda, o rito, a moral, o credo.
Além do acreditar sem pertencer descrito por Davie para a Grã-Bretanha, na Europa contemporânea há o pertencer sem acreditar dos tantos europeus que abraçam um cristianismo cultural, mas não acreditam em Deus. E há a mistura de crer e pertencer de crenças minoritárias que se fazem cada vez mais corajosas na reivindicação de direitos.
Em 1993, pela primeira vez em sua história, o Tribunal de Estrasburgo condenou um país, a Grécia, por violar a liberdade religiosa de um indivíduo, uma Testemunha de Jeová. A Europa que tutela a liberdade religiosa de todos é um laboratório religioso no qual se pode acreditar sem pertencer e pertencer sem acreditar; no qual podem ser desmontadas e remontadas à vontade as mil faces de Deus.
Após o ataque dos terroristas do Al Qaeda às Torres Gêmeas, o terceiro milênio se abre sobre uma Europa assustada pelas tensões religiosas e incerta quanto à sua identidade e futuro. A omissão de uma referência às raízes cristãs no projeto de uma Constituição para a Europa suscita os protestos de João Paulo II.
Em 2005, no entanto, são os cidadãos de dois dos países mais secularizados que rejeitaram a Constituição, nos referendos realizados na França e na Holanda. No ano anterior, em 2004, dialogam publicamente em Mônaco de Baviera Jürgen Habermas, o filósofo que teorizou as virtudes de uma religião pós-secular bem-vinda no espaço público, e Joseph Ratzinger, teólogo de Deus, que se revelou em Atenas e Roma para fazer do cristianismo - soma às alianças de fé e razão - a essência e o destino da Europa.
O livro que reúne o debate entre os dois interlocutores é publicado na Itália em abril de 2005, quando Karol Wojtyla morre e o teólogo alemão o sucede com o nome de Bento, patrono da Europa. Naquele diálogo está contida a aspiração europeia por um encontro, na qual, como Michele Nicoletti escreve na introdução da edição italiana, "laicos e crentes descubram o diálogo não apenas como um instrumento de necessário compromisso, mas como método para reencontrar a si mesmos”.
No tempo em que a crise econômica de 2007-2008 abala o Ocidente e questiona a construção europeia no núcleo fundador do mercado comum, o cientista político francês Olivier Roy explica aos europeus como religião contemporânea tenha se tornado global em virtude da emancipação dos crentes das referências culturais de sua fé. Num continente europeu cada vez mais analfabeto de Deus, crescem as religiões que reinventam tradições e doutrinas.
A santa ignorância, explica Roy, permite experimentos inovadores, como um diálogo inter-religioso alheio às excomunhões do passado, mas encoraja a absolutização fundamentalista. Entre os mais famosos intérpretes de violência em nome da guerra santa islâmica, Roy encontra no Islã sem cultura das novas gerações de muçulmanos europeus o terreno fértil privilegiado da radicalização.
Quando A Santa Ignorância é publicado na Itália em 2009, Olivier Roy transfere-se para o Instituto Universitário Europeu de Fiesole. Nos seguintes dez anos de temporada de trabalho italiana, livro após livro, Roy oferece a análise europeia mais convincente das transformações religiosas no Islã, no cristianismo e em geral na religião contemporânea.
Este é o último livro, publicado em 2013, no ano da morte, pelo jurista e filósofo norte-americano Ronald Dworkin, professor em Oxford e Londres. A religião sem Deus é um manifesto sobre a ética do Ocidente que une os dois lados do Atlântico. Se aqueles que se declaram não filiados a nenhuma religião crescem na Europa e nos EUA, e se a direita cristã estadunidense, artífice da vitória de Trump, ataca o velho continente sem Deus e coloca em discussão a aliança atlântica, Dworkin vislumbra a possibilidade de uma ética comum fundamentada na liberdade e independência moral dos cidadãos. Independentemente das posições teístas, não-teístas ou ateístas, a devoção pelo universo e sua beleza podem cimentar os povos.
Hans Kelsen, outro jurista e filósofo que que entrelaça Europa e EUA, escreveu um volume na década de 1960 contra aqueles que falam de uma religião sem Deus. A obra foi publicada postumamente em 2012 na Áustria e, ao lado daquela de Dworkin, simboliza uma Europa capaz de tudo quando se trata de religião e quando se fala de religião. Enquanto tenta se unir pela paz e pelo desenvolvimento, enquanto almeja a liderança mundial na inovação e nas regras para as emergências ambientais e a transformação digital, a Europa de hoje está dançando na fronteira cada vez mais porosa entre o acreditar e o não acreditar.
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A fé se reacende, mas Deus permanece no escuro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU