14 Janeiro 2020
"Ratzinger entra em campo com clamor para bloquear a decisão de Francisco. O livro, escrito a quatro mãos com o cardeal Sarah, é um drone letal lançado contra Bergoglio e seu reformismo", alerta Marco Politi, vaticanista, em artigo publicado por Il Fatto Quotidiano, 13-01-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Bento XVI quebrou o pacto de não interferência que o ligava a Francisco, seu sucessor no trono papal. É uma revolta sobre o tema do celibato, destinado a abalar a Igreja. Os símbolos são extremamente importantes no mundo do sagrado. E aqui está um papa emérito, vestido de branco, apontando o dedo contra o pontífice reinante, também vestido de branco, intimando-lhe: “Não faça isso! Não se permita mudar a centenária lei do celibato".
As palavras usadas são mais elegantes, mas esse é o cerne da decisão de Joseph Ratzinger de publicar um livro contra a abolição do celibato junto com o cardeal Robert Sarah, tenaz adversário de longa data, embora com compostura, da linha de reforma do Papa Francisco. "O celibato é indispensável", grita o ex-papa alemão. "Da celebração diária da Eucaristia, que implica um estado de serviço permanente a Deus, surgiu espontaneamente a impossibilidade de um vínculo matrimonial ". E essa impossibilidade deve continuar a existir.
No grande corpo da Igreja Católica - 1 bilhão e 300 milhões de fiéis - todos têm o direito à palavra sobre qualquer assunto, até os planos do pontífice. Apenas um tinha o dever de ficar calado, de não entrar publicamente na arena: Joseph Ratzinger. E não por causa de uma mordaça, mas por causa da lei suprema que ele havia imposto a si mesmo no momento de sua demissão: nunca dar, por qualquer motivo, o menor motivo de contraposição ao pontífice reinante. Nem a vaga impressão de que existem dois magistérios opostos na Igreja. Aquele do papa anterior e do papa atual. Duas linhas. Dois partidos.
Na época da renúncia, o próprio Ratzinger foi muito claro: "Entre vocês também existe o futuro Papa a quem prometo minha reverência e obediência incondicionais", disse ele em seu último encontro com os cardeais antes de se retirar para Castelgandolfo. E assim que Francisco foi eleito, um de seus secretários, monsenhor Alfred Xuereb, o ouviu reiterar por telefone ao papa Bergoglio: "Vossa Santidade, a partir de agora prometo minha total obediência e minha oração".
O próprio secretário particular de Ratzinger, monsenhor Georg Gaenswein, expressando em 2016 a opinião singular de um papel papal de alguma forma colegial (composta por duas figuras pontifícias), havia delimitado claramente as esferas: existe um "ministério ampliado - ele declarou - (uma missão de Pedro) com um membro ativo e um membro contemplativo”.
Aqui está, o compromisso solene de Ratzinger era de permanecer "contemplativo". Esse compromisso - necessário para que a Igreja se acostumasse sem turbulências a ter um papa aposentado, assim como existem desde o Concílio tranquilos bispos aposentados - foi quebrado, com consequências que se delineiam graves.
Já no ano passado, quando Ratzinger com um artigo em uma revista eclesial da Baviera interveio sobre o fenômeno da pedofilia, dois magistérios opostos haviam se delineado de maneira gritante. Com Francisco, que identificava a raiz dos abusos no pecado capital do clericalismo (abuso de poder, de consciência e sexual) e com Ratzinger, que identificava a causa na desordem pós-1968 e no recuo da teologia moral da Igreja.
Mas, na época, obtorto collo, o papa Bergoglio ainda podia fingir que se tratasse de uma análise teórica. Hoje o confronto é direto. Por mais edulcoradas que sejam as palavras de profissão de amor à Igreja e de paixão por sua unidade que Ratzinger e Sarah espalham em seu texto. Porque o ex-pontífice intervém pesadamente e publicamente sobre uma decisão de governo que Francisco deve tomar com base em um sínodo de bispos que expressou sua posição de acordo com todas as regras da Igreja, por maioria de dois terços.
Um sínodo de bispos, para permanecer na linguagem da Igreja, é a assembleia de hierarcas que são "vigários de Cristo" da mesma maneira que o pontífice. E o primeiro entre os vigários de Cristo, o atual papa Francisco, está à beira de decidir se deve autorizar ou não uma exceção à lei do celibato, que permita ordenar sacerdotes aqueles que já são diáconos permanentes casados.
Ratzinger entra em campo com clamor para bloquear a decisão de Francisco. O livro, escrito a quatro mãos com o cardeal Sarah, é um drone letal lançado contra Bergoglio e seu reformismo. Não é um cisma, é uma chantagem. O armamentário teológico do livro passa para o segundo plano com relação à decisão político-ideológica de apresentar a eventual inovação de Francisco como uma destruição da essência do sacerdócio católico celibatário, de acordo com a tese de que existe um vínculo "ontológico" entre celibato e sacerdócio (tese arriscada, dado que a Igreja Ortodoxa – igualmente de origem apostólica quanto aquela católica – desde sempre admite sacerdotes casados).
A revolta de Ratzinger é baseada em uma rede de oposição ampla; dos cardeais Müller a Sarah, de Burke a Ruini e a todos os cardeais, bispos e padres que calam, mas compartilham a aversão ao reformismo bergogliano. Com o devido respeito àqueles que há anos lutam para sustentar que a oposição à linha Bergoglio seria apenas a prerrogativa de uma "minoria ruidosa".
É a crise de poder no mais grave do pontificado bergogliano. Resta ver como Francisco se posicionará. O papa argentino não é ingênuo. Conhece a raiva e a brandura, o sorriso e a dureza. Como demonstram os recentes afastamentos do comandante da gendarmeria Giani e do presidente da Autoridade anti-lavagem de dinheiro Bruelhart. Mas as apostas aqui são muito, muito mais altas. A continuação da reforma de Francisco está em jogo. Nessa guerra civil interna á Igreja o próximo passo agora cabe a ele.
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Ratzinger entra em guerra contra Bergoglio. Um confronto que cheira a chantagem - Instituto Humanitas Unisinos - IHU