Cardeal Müller: documento vaticano sobre a Amazônia contém heresia e estupidez. “Não tem nada a ver com o cristianismo”

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15 Julho 2019

O cardeal Gerhard Müller juntou-se ao seu colega alemão, o cardeal Walter Brandmüller, para condenar o tão debatido texto de trabalho do Vaticano para o próximo Sínodo da Amazônia, nos termos mais fortes possíveis, chamando-o de uma obra não apenas de heresia, mas também de estupidez.

A reportagem é de Debra Heine, publicada por PJMedia.com, 11-07-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

O cardeal conservador tem soado sinais de alerta sobre o controverso Sínodo de 6 a 27 de outubro, advertindo que seu propósito secreto é modificar o ensino da Igreja sobre a moral sexual e abrir suas portas para a “ecoteologia”.

O Instrumentum laboris (ou documento de trabalho) do Vaticano “representa a abertura, de par em par, das portas do Magistério à ‘teologia indígena’ e à ‘ecoteologia’, dois derivados latino-americanos da teologia da libertação, cujos corifeus, depois da derrubada da União Soviética e do fracasso do ‘socialismo real’, atribuem aos povos indígenas e à natureza o papel histórico da força revolucionária em chave marxista”, opinou o autor chileno José Antonio Ureta recentemente.

O ex-editor-chefe do The Catholic Herald, Damian Thompson, chamou o documento, sem meias palavras, de “lixo”.

Em sua entrevista à revista católica La Nuova Bussola Quotidiana, Müller pareceu concordar, dizendo que o documento tem “uma visão ideológica que não tem nada a ver com o cristianismo”.

“O Sínodo da Amazônia é um pretexto para mudar a Igreja, e o fato de ser feito em Roma quer enfatizar o início de uma nova Igreja”, disse Müller, ex-prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé.

O prelado alemão disse que os apoiadores do papa já atacaram a ele e a outros por criticarem o documento, em um esforço para reprimir suas críticas.

Mas o Instrumentum laboris, apontou ele, “não tem nenhum valor magisterial”, portanto, “só ignorantes podem dizer que aqueles que o criticam são inimigos do papa”.

Müller continuou:

“Infelizmente, esse é o truque deles para evitar qualquer diálogo crítico. Se você tenta fazer uma objeção, você é imediatamente rotulado como inimigo do papa. Um esclarecimento mais do que apropriado, porque o texto do Instrumentum laboris é desconcertante ao descrever a Amazônia e os povos que a habitam como um modelo para toda a humanidade, um exemplo de harmonia com a natureza, uma síntese perfeita do que se entende por ecologia integral.

“É um documento que apresenta um quadro idílico da Amazônia, incluindo as religiões indígenas, a ponto de tornar inútil o cristianismo, senão para o apoio ‘político’ que ele pode dar para manter esses povos incontaminados e defendê-los dos predadores que querem levar desenvolvimento e ‘roubar’ recursos.”

O cardeal acrescentou que o papa e seus aliados “querem salvar o mundo de acordo com sua ideia, talvez utilizando alguns elementos das Escrituras”, mas as ideias deles são “profanas” e “não têm nada a ver com a Revelação”.

“Não por acaso, embora se fale de Revelação, de Criação, de sacramentos, de relações com o mundo, não se faça quase nenhuma referência substancial aos textos do Concílio Vaticano II que definem esses aspectos: Dei Verbum, Lumen gentium, Gaudium et spes. Não se fala da raiz da dignidade humana, da universalidade da salvação, da Igreja como sacramento de salvação do mundo. Há apenas ideias profanas, sobre as quais se pode discutir, mas que não têm nada a ver com a Revelação.”

Ele citou uma seção do documento em que se fala de “um amplo e necessário campo de diálogo entre as espiritualidades, crenças e religiões amazônicas, que exige uma abordagem cordial das diferentes culturas. (...) A abertura não sincera ao outro, assim como uma atitude corporativista, que reserva a salvação exclusivamente ao próprio credo, são destruidoras desde mesmo credo”.

“Eles tratam o nosso Credo como se fosse a nossa opinião europeia. Mas o Credo é a resposta iluminada pelo Espírito Santo à Revelação de Deus em Jesus Cristo, que vive na Igreja. Não há outros credos. Em vez disso, existem outras convicções filosóficas ou expressões mitológicas, mas ninguém jamais ousou dizer, por exemplo, que a Sabedoria de Platão é uma forma da revelação de Deus. Na criação do mundo, Deus manifesta apenas a Sua existência, o Seu ser um ponto de referência da consciência, do direito natural, mas não há nenhuma outra revelação fora de Jesus Cristo. O conceito de Lógos spermatikòs (as ‘sementes da Palavra’), adotado pelo Concílio Vaticano II, não significa que a Revelação em Jesus Cristo existe em todas as culturas independentemente de Jesus Cristo. Como se Jesus fosse apenas um desses elementos da Revelação.”

Quando perguntado se ele concordava com a avaliação do cardeal Brandmüller de que o documento é uma obra de “heresia”, Müller respondeu: “Heresia? Não só isso, é também estupidez. O herege conhece a doutrina católica e a contradiz. Mas aqui se faz apenas uma grande confusão, e o centro de tudo não é Jesus Cristo, mas eles mesmos, as suas ideias para salvar o mundo”.

No documento, a “cosmovisão” dos povos indígenas é um modelo de ecologia integral, que seria uma concepção na qual espíritos e divindades agem “com e no território, com e em relação com a natureza”.

Müller explicou porque o termo “cosmovisão” é incompatível com a doutrina da Igreja.

“A ‘cosmovisão’ é uma concepção materialista, semelhante à do marxismo, no fim, podemos fazer o que quisermos. Mas nós cremos na Criação, a matéria é a forma da essência da natureza, não podemos fazer o que quisermos. A Criação é para a glorificação de Deus, mas também é um desafio para nós, chamados a colaborar com a vontade salvífica de Deus para todos os homens. A nossa tarefa não é preservar a natureza como ela é, mas nós temos a responsabilidade pelo progresso da humanidade, na educação, na justiça social, pela paz.

“É por isso que os católicos constroem escolas, hospitais, essa também é a missão da Igreja. Não se pode idealizar a natureza como se a Amazônia fosse uma zona do Paraíso, porque a natureza nem sempre é amorosa para com o homem. Na Amazônia, existem predadores, existem infecções, doenças. E até mesmo essas crianças, esses jovens têm direito a uma boa educação, a fruir da medicina moderna. Não se pode idealizar, como se faz no documento sinodal, apenas a medicina tradicional.”

Ele também criticou a linguagem “hippie” do documento, como “conversão ecológica” e “Mãe Terra”.

“Devemos rejeitar absolutamente expressões como ‘conversão ecológica’, argumentou Müller. “Há apenas a conversão ao Senhor, e, como consequência, há também o bem da natureza.”

“Não podemos fazer do ecologismo uma nova religião, estamos aqui em uma concepção panteísta, que deve ser rejeitada. O panteísmo não é só uma teoria sobre Deus, mas também um desprezo pelo homem. Deus que Se identifica na natureza não é uma pessoa. Deus criador, ao contrário, criou-nos à Sua imagem e semelhança. Na oração, temos uma relação com um Deus que nos escuta, que entende o que queremos dizer, não um misticismo em que podemos dissolver a identidade pessoal.”

Ele continuou:

“A nossa mãe é uma pessoa, não a Terra. E a nossa mãe na fé é Maria. A Igreja também é descrita como mãe, como a noiva de Jesus Cristo. Mas essas palavras não devem ser infladas. Uma coisa é ter respeito por todos os elementos deste mundo, outra coisa é idealizá-los ou divinizá-los. Essa identificação de Deus com a natureza é uma forma de ateísmo, porque Deus é independente da natureza. Eles ignoram totalmente a Criação.”

Müller também discorda fortemente da crítica feita pelo documento ao antropocentrismo – a visão de que os seres humanos são a entidade mais importante no universo – chamando-a de “uma heresia contra a dignidade humana”.

“É uma ideia absurda pretender que Deus não seja antropocêntrico”, argumentou. “O homem é o centro da Criação, e Jesus se fez homem, não se fez planta.”

"Essa é uma heresia contra a dignidade humana. Pelo contrário, a Igreja deve enfatizar o antropocentrismo, porque Deus criou o homem à Sua imagem e semelhança. A vida do homem é infinitamente mais digna do que a vida de qualquer animal. Hoje já existe uma inversão desse princípio: se um leão é morto na África, é um drama mundial, mas aqui se matam as crianças no ventre da mãe, e está tudo bem. Stalin também defendia que era preciso tirar essa centralidade da dignidade humana; assim, ele podia chamar muitos homens para construir um canal e fazê-los morrer em prol das gerações futuras. É para isso que servem essas ideologias, para fazer com que alguns dominem sobre todos os outros. Mas Deus é antropocêntrico, a Encarnação é antropocêntrica. A rejeição do antropocentrismo vem apenas do ódio a si mesmos e aos outros homens.

“Outro conceito promovido no Instrumentum laboris é a ideia de inculturação, que está intimamente associada à Encarnação, ou ‘o Verbo se fez carne’. De acordo com a doutrina da Igreja, Jesus Cristo, a segunda pessoa da Trindade, era ‘verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem’. Ele foi concebido no ventre de uma mulher, a Virgem Maria, assim, a natureza divina do Filho se uniu, mas não se misturou, com a natureza humana.”

A inculturação é a adaptação da liturgia cristã a culturas principalmente não cristãs. O fato de o documento aparentemente usar as palavras em ambos os sentidos incomodou o cardeal imensamente. “Usar a Encarnação quase como um sinônimo de inculturação é a primeira mistificação”, irritou-se.

“A Encarnação é um evento único, irrepetível, é o Verbo que se encarna em Jesus Cristo. Deus não se encarnou na religião judaica, não se encarnou em Jerusalém. Jesus Cristo é único. É um ponto fundamental, porque os sacramentos dependem da Encarnação, são presença do Verbo encarnado. Não se pode abusar de certos termos que são centrais no cristianismo.

Pergunta – Voltemos à inculturação: a partir do documento sinodal, entendemos que devemos adotar todas as crenças dos povos indígenas, seus rituais e seus costumes. Também se faz referência ao modo como o cristianismo primitivo se inculturou no mundo grego. E se diz que, assim como fizemos naquela época, devemos fazer hoje com o povo amazônico.

“Mas a Igreja Católica nunca aceitou os mitos gregos e romanos. Pelo contrário, rejeitou uma civilização que desprezava os homens com a escravidão, rejeitou a cultura imperialista de Roma ou a pederastia típica dos gregos. A referência da Igreja era ao pensamento da cultura grega, que chegara a reconhecer elementos que abriam o caminho para o cristianismo. Aristóteles não inventou as 10 categorias: elas já existem no ser, ele as descobriu.

“Assim como acontece na ciência moderna: não é algo que diga respeito apenas ao Ocidente, mas sim a descoberta de algumas estruturas e mecanismos que existem na natureza. O mesmo vale para o direito romano, que não é um sistema arbitrário qualquer. Em vez disso, é a descoberta de alguns princípios jurídicos, que os romanos encontraram na natureza de uma comunidade. Certamente, outras culturas não tiveram essa profundidade. Mas nós não vivemos na cultura grega, o cristianismo transformou totalmente a cultura grega e romana. Certos mitos pagãos podem ter uma dimensão pedagógica em relação ao cristianismo, mas não são elementos que fundaram o cristianismo.”

Talvez o aspecto mais controverso do Instrumentum laboris seja a sua releitura dos sacramentos, especialmente no que diz respeito às ordens sagradas, sob o pretexto de que há poucos padres em áreas tão remotas.

Müller reclamou que a abordagem “não tem nada a ver com o cristianismo”.

“A Revelação de Deus em Cristo faz-se presente nos sacramentos, e a Igreja não tem nenhuma autoridade para mudar a substância dos sacramentos”, argumentou ele. “Eles não são alguns ritos que nos agradam, e o sacerdócio não é uma categoria sociológica para criar uma relação na comunidade.”

“Qualquer sistema cultural tem os seus ritos e os seus símbolos, mas os sacramentos são meios da Graça divina, de modo que não podemos mudar nem o seu conteúdo nem a sua substância. Também não podemos mudar o rito quando esse rito foi constituído pelo próprio Cristo. Não podemos fazer o batismo com qualquer líquido, nós o fazemos com água natural. Na Última Ceia, Jesus Cristo não tomou qualquer bebida ou comida, ele tomou vinho de uva e pão de trigo.”

Quando perguntado sobre quem ele tinha em mente quando se referia “àqueles que querem mudar a Igreja”, Müller disse que não se trata de uma pessoa ou de um grupo de pessoas, mas sim a um “sistema” composto voluntariamente por pessoas cegas que acreditam que estão melhorando a Igreja, mas, de fato, a estão destruindo.

"Queremos nos adaptar ao mundo: matrimônio, celibato, mulheres sacerdotes, tudo deve ser mudado na convicção de que assim haverá uma nova primavera para a Igreja”, explicou. “Eles não veem que, ao contrário, eles destroem a Igreja, são como cegos que caem na fossa. Mas, se alguém diz alguma coisa, é imediatamente marginalizado, rotulado como inimigo do papa.”

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