22 Mai 2020
“A lição de Arendt, formulada várias décadas atrás, se torna evidente na sociedade de hoje. E chegou para ficar, pois o debate entre economia e saúde ainda segue em aberto”, escreve Enrique Zamorano, jornalista, em artigo publicado por El Confidencial 20-05-2020. A tradução é do Cepat.
A pandemia de coronavírus criou um cenário social sem precedentes e impensável, há alguns meses. Em questão de dias, a disseminação mundial desse agente microscópico paralisou nossa vida social e, com ela, o trabalho. As rotinas de milhares de pessoas foram abruptamente interrompidas, suspensas frente ao incontrolável avanço da doença. Os bares e lojas baixaram as portas para enfrentar uma longa quarentena que nos confinou por mais de quarenta dias.
Agora que finalmente parece que estamos vislumbrando a saída no fim do túnel, ou pelo menos nossos olhares estão apontando para o que já se conhece como a “nova normalidade”, os governos dos países mais abalados pela pandemia, como Itália, Reino Unido e Espanha, já estão assinando decretos para retomar a atividade econômica e a vida social como parte de seus planos de readequação.
Essas medidas de reativação social ainda estão imersas em um contexto de temerosa incerteza sobre o que pode acontecer no futuro, e o medo de um possível novo surto que nos fará retornar a uma quarentena rigorosa aperta o coração de todos os setores sociais, especialmente os dos trabalhadores da saúde, que estiveram sob pressão nos últimos meses, como nunca antes em suas vidas.
O momento em que nos encontramos é decisivo. Há uma necessidade urgente de tomar decisões para garantir a segurança dos cidadãos e reabrir a economia para dar um respiro aos trabalhadores que da noite para o dia perderam seus empregos e aos empresários que tiveram que fechar seus negócios. Esse é o maior risco que enfrentamos, a dicotomia de nossa época: o que é mais importante, a economia ou a saúde?
Esses dois conceitos, agora mais relacionados do que nunca, estão no centro da discussão sobre as ações a serem tomadas para combater a pandemia. Um debate que se originou no início da crise (lembremos da posição inicial de Boris Johnson e sua pretendida “imunidade de rebanho”), cuja resolução ganha maior relevância nesse momento de volta paulatina à normalidade.
Nesse contexto complexo e decisivo, vale a pena revisitar as ideias de pensadores que agitaram as consciências e plantaram algumas das chaves do tempo que herdamos até hoje. Dentre todos, destaca-se Hannah Arendt, filósofa alemã e teórica política de origem judia, que refletiu em seus livros sobre totalitarismo e alguns dos conceitos que estão no centro do debate filosófico desde sempre. Especificamente, interessa-nos sua visão do trabalho, reunida em sua obra A Condição Humana, a que denomina vida ativa, dividindo-a em três seções: labor, trabalho e ação, que por sua vez se referem às três respectivas condições do ser humano: vida, mundanidade e pluralidade.
Para Arendt, o trabalho é composto por três esferas: labor (“labor” é o termo inglês que ela escolhe), trabalho (“work”) e ação (“action”). O primeiro refere-se às atividades naturais, biológicas, que permitem a sobrevivência das espécies e sua continuidade ao longo do tempo, mas que não são duráveis, já que se esgotam no momento em que são realizadas e consumidas. No entanto, são as mais importantes, pois sem elas não poderíamos viver.
O segundo, o trabalho como tal, é aquele que produz uma série de resultados finais e objetos que duram ao longo do tempo: o que poderia ser a construção de uma casa ou o uso de instrumentos para realizar outra série de atividades. “O trabalho proporciona um ‘artificial’ mundo de coisas, claramente distintas de todas as circunstâncias naturais. Dentro de seus limites, abriga cada uma das vidas individuais, ao passo que este mundo sobrevive e transcende a todas elas”, escreve Arendt. “A condição humana do trabalho é a mundanidade”.
Por sua vez, a terceira esfera dessa “vida ativa” seria a ação, que nada mais é do que a atividade que ocorre no espaço artificial criado pelo trabalho e pela qual os humanos falam e decidem sobre o que querem fazer, isto é, a tomada de partido político.
Para entender melhor a relação que esses três conceitos possuem entre si, podemos pensar em uma mesa. Nela, os diferentes indivíduos se reúnem para realizar atividades básicas permitidas graças à extração de bens da natureza (“labor”), o que nesse caso se reduziriam, entre muitos outros, à ingestão de alimentos (que não são duráveis, mas permitem a sobrevivência) previamente produzidos e extraídos do ambiente natural.
Para concluir esta ação, é necessária uma mesa (perdurável no tempo), que também deve ser montada por terceiros, neste caso os trabalhadores e artesãos de uma fábrica ou oficina de carpintaria. E, por último, graças aos alimentos e à mesa, as pessoas podem tomar uma série de decisões políticas sobre suas vidas em comum, essa mesma existência que compartilham por estar em tal momento e determinado lugar.
Como se conjuga esse conceito de “vida ativa” de Arendt com os tempos atuais? Temos que fazer um exercício de memória. E, nesse sentido, entender a divisão da filósofa entre os conceitos de “labor” e “work”, uma divergência semântica que ficou nítida desde o início da pandemia. Enquanto a maior parte da população teve que ficar em casa para interromper a curva de contágio, uma pequena, mas considerável parte dos trabalhadores foi para seus postos de trabalho para garantir a satisfação das necessidades básicas.
Daí que, no momento mais crítico enfrentado pela sociedade por causa do coronavírus, começou-se a usar o termo “heróis” para se referir a pessoas como médicos, enfermeiros, caminhoneiros, faxineiros, transportadores, cuidadores, caixas e repositores de supermercados. Ou seja, aquelas pessoas, e especialmente os trabalhadores da saúde, cujos bens e serviços prestados se esgotam em seu consumo. Tanto é assim que a realidade nos ensinou uma lição, já que antes da pandemia sofriam certa invisibilidade em relação aos trabalhos para os quais o grau de preparação é muito maior.
No caso dos profissionais de saúde, é mais evidente, pois arriscaram suas vidas para salvaguardar a vida de outras pessoas, atendendo às necessidades naturais das pessoas em um contexto de máxima pressão e sacrifício. É assim que a lição de Arendt, formulada várias décadas atrás, se torna evidente na sociedade de hoje. E chegou para ficar, pois o debate entre economia e saúde ainda segue em aberto.
É o que reconhece a escritora britânica Lyndsey Stonebridge, especialista na filósofa alemã, que em um artigo publicado no jornal NewStatesman afirma que muitas dessas funções do trabalho natural (“labor”) em seu país, durante a crise, foram desempenhadas por imigrantes, além dos profissionais de saúde. E, em particular, e ao longo da história, por mulheres, sempre relegadas à tarefa dos cuidados. Daí a contribuição ao feminismo de Arendt como reflexo e denúncia da distribuição desigual de atividades econômicas entre os gêneros, relegando o “labor” às mulheres, um trabalho até agora invisibilizado e pouco ou nada retribuído.
Mas, além dessas considerações, Stonebridge acredita, como tantos outros especialistas hoje em dia, que se quiséssemos construir uma sociedade melhor a partir desse desastre epidemiológico, deveríamos começar a dar mais valor a essa série de trabalhos naturais que garantem a sobrevivência da espécie. “Devemos aproveitar esta oportunidade para pensar sobre o que é realmente um trabalho valioso de verdade”, defende. “Fazer uma mesa pode ser um grande ato, mas mais ainda curar um corpo que está doente, que sofre e que provavelmente está morrendo. O NHS (Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido) foi fundado para fazer esse trabalho. O que aconteceria se no lugar de ver o NHS como algo frágil e meramente corajoso que precisa de proteção, nós o considerássemos como a mesa ao redor da qual todos devemos nos aproximar para criar um futuro político verdadeiramente diferente e mais humano?”.
Como muitos especialistas afirmaram nas últimas semanas, Stonebridge defende a necessidade de contar com uma forte saúde pública apoiada pelo Estado, não apenas como medida de contenção contra um possível novo surto, mas para estabelecer apoio social para a tarefa de cuidar, que garanta uma compensação de acordo com o valor que essas operações representam para todos os seres humanos.
Na Espanha, por exemplo, surgiram diferentes vozes que denunciam as condições precárias em que muitas cuidadoras de idosos trabalham. E, de acordo com a escala de Arendt, os empregos que atendem a essas necessidades básicas não deixam de ser as bases da pirâmide econômica, já que por mais bens e serviços duráveis no tempo que produzamos ou por mais ações políticas que pensemos tomar, se não preservamos a saúde e o cuidado das pessoas, não podemos passar para as próximas duas fases dessa “vida ativa”. A mesa perderá sua utilidade se ninguém se senta para falar nela.
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As lições de Hannah Arendt sobre o trabalho em um mundo pós-covid-19 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU