07 Mai 2020
“É aí dentro, em nossas mentes e em nossas entranhas, que precisamos encontrar a força para afirmar a vida, lutar contra qualquer desânimo, inventar novas formas de produzir, gerir, consumir, circular, governar e querer, adaptadas a essa reconstrução que é mais profunda do que ainda se acredita. Enquanto combatemos (sim, porque será necessário combater) contra as hidras que surgem dos abismos da humanidade, todas as vezes que uma construção do mundo cambaleia”, escreve Manuel Castells, sociólogo espanhol, em artigo publicado por La Vanguardia, 02-05-2020. A tradução é do Cepat.
Risos e brincadeiras. E uma criança gritando: “Liberdade!”. Assim retorna a primeira faísca de vida pública, porque a privada nunca foi detida. Permanecem ameaçadoras nuvens cinzas no horizonte, em forma de possível catástrofe econômica sem precedentes. A prudência que constantemente é recordada em todos os âmbitos, continua sendo necessária, porque se trata de um vírus ainda desconhecido e com um poder de contágio que surpreendeu a todos nós e desarticulou nosso sistema de saúde [espanhol] e o de muitos países.
Ainda que alguns países europeus (Alemanha, Suíça) possuam muito mais leitos de hospital por habitante e melhores equipamentos médicos, e isso faça toda a diferença, nossos profissionais da saúde são muito competentes e heroicos, contagiaram-se massivamente. Portanto, prudência, sim, mas investimento massivo em saúde pública e no quadro médico e de enfermaria, no curto prazo, como prioridade de gasto (vão aumentar seus salários ou só serão aplausos?). Avançar para a nova normalidade, mas garantindo que as ameaças diversas da globalização incontrolável não voltem a nos pegar desprevenidos.
A “nova normalidade” é o termo em moda. Ou seja, não se trata apenas de voltar ao normal, ao que era. Mas, ao contrário, construir o novo, o que começa, o mundo pós-pandemia. A partir da única raiz que nos resta. Nós mesmos, nossos afetos, nossas famílias, nossas identidades, nossos projetos. A vontade de viver acima de tudo. Não de sobreviver, mas de viver. Foi isso que significou as crianças saindo correndo para brincar, sim, mas também para cumprimentar seus avós nas janelas. Enraizarmo-nos naquilo que verdadeiramente importa. E com o propósito de emenda de que não nos esqueceremos nunca mais do que faz sentido para cada um de nós. Será necessário viver com menos dinheiro, com certeza, ainda que haverá um mínimo vital para todos.
Além disso, reorganizar nossa economia e nossas instituições para atravessar a crise na qual já entramos e cujos ventos mais tempestuosos ainda estão por se sentir. Mas percebem a maravilha de poder passear, descobrir lugares que menosprezávamos, sentir nossos corpos ativos com o rosto ao vento, abandonar-se aos raios do sol e as gotas de chuva, fundir-se no barulho das ondas e se encantar com a dança travessa dos beija-flores? Realmente, precisamos de muito mais dinheiro para isso? E se a providência, qualquer que seja sua origem cósmica, houvesse decidido nos dar uma lição para que não continuássemos nos destruindo e, junto conosco, os animais, as matas, nosso lar, o planeta azul, antes de que fosse muito tarde?
Saciados e acomodados uns, descartados outros muitos, arrogantes em nossa tecnologia sem nos perguntar para que nos serve. Em vez de selecionar esse conhecimento acumulado para focá-lo no essencial, na saúde, na educação, na arte, na comunicação de todos com todos, sem intermediários, nem censuras, nem comercialização de nossos dados.
Confiando naqueles que nos ajudem a ser humanos e lançando ao lixo aqueles que se aferrem em seus velhos demônios que nos levaram à beira de nossa destruição coletiva.
A “nova normalidade” precisará ser construída, não está dada. E não é retornar ao que houve. Porque não será possível e porque podemos aproveitar a oportunidade para encontrar o sentido de ser quando nos reencontrarmos. Mas há um risco certo de que essa reconstrução se faça por e para os poderes fáticos que ainda habitam em nossas instituições e em nossas mentes. Não em seus formatos conhecidos, mas como profetas de um novo mundo que mine as instituições democráticas e abra as comportas da violência e da ignorância, apelando aos instintos de destruição que carregamos dentro de nós. Que nos incitem a desinfetar os pulmões com alvejante, a lançar no mar aqueles que nos pedem ajuda em perigo de morte, a bater em mulheres até que voltem a se submeter e a queimar na fogueira das vaidades qualquer debate que contradiga seus dogmas.
A emergência necessária de um novo Estado de bem-estar, que terá que ir de mãos dadas com uma nova tributação, encontrará velhas e novas resistências. Velhas: as elites de sempre que ainda não se convenceram que é preciso compartilhar. Novas: os demagogos do apocalipse que convocam a levantar muralhas e a apelar para valores eternos que passam pela destruição do outro.
Mas não será assim, não há motivo para ser assim. Tudo depende de todos e cada uma de nós, de que saibamos a razão pela qual realmente vale a pena viver, que não são ideias e interesses fora de nós, mas sentimentos profundos do que desejamos e queremos ser. Não é algo abstrato, é nossa vivência, porque o único sentido da história é a história que sentimos. É aí dentro, em nossas mentes e em nossas entranhas, que precisamos encontrar a força para afirmar a vida, lutar contra qualquer desânimo, inventar novas formas de produzir, gerir, consumir, circular, governar e querer, adaptadas a essa reconstrução que é mais profunda do que ainda se acredita. Enquanto combatemos (sim, porque será necessário combater) contra as hidras que surgem dos abismos da humanidade, todas as vezes que uma construção do mundo cambaleia.
Será longo o caminho, mas chegaremos. Ao que importa. Chegaremos ao abraço.
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Esperança. Artigo de Manuel Castells - Instituto Humanitas Unisinos - IHU