23 Abril 2020
"Hoje, o coronavírus desafia a Igreja a repensar sua teologia sacramental, especialmente a teologia da Eucaristia. Como a Igreja, como hospital de campanha, satisfaz a fome de Deus, que muitos sentiram mais profundamente com o fechamento das igrejas?", escreve Stan Chu Ilo, padre da Diocese de Awgu (Nigéria), professor e pesquisador da Universidade DePaul (Chicago), em artigo publicado por La Croix International, 20-04-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Quando me telefonou da Nigéria, por volta das 21 horas, no Sábado de Aleluia, a minha irmã me pediu um favor especial. Queria que eu celebrasse uma vigília pascal ao vivo de Chicago, onde moro, conectando-me com sua família, minha mãe, meus irmãos, sobrinhas e sobrinhos.
Ela achou que seria uma ideia “ótima e legal”. Eu não achei, motivo por que ela ficou decepcionada.
A decepção de minha irmã aumentou quando ela e sua família estavam “assistindo” à missa papal na Basílica de São Pedro, no canal EWTN, mas sem entender o idioma falado, que era o italiano. Por fim, acabaram acompanhando a celebração da Vigília Pascal realizada por alguma igreja local, transmitida via televisão.
Devo confessar que minha família ficou decepcionada comigo. Talvez eu deveria ter cedido ao pedido inicial, tendo rezado a missa por eles.
Talvez a realização dessa celebração pudesse ser mais espiritualmente nutritiva para a minha família, assim como uma forma interessante de preencher o vazio que senti depois de celebrar sozinho a Vigília Pascal e cantar a Proclamação da Páscoa para mim em latim!
Muito honestamente, minha mãe me lembrou da responsabilidade que tenho com a nossa família quando, finalmente, conversamos no Domingo de Páscoa. No entanto, na conversa que tive com meus familiares, descobri o quanto eles se sentiram insatisfeitos e vazios após assistir à missa papal – assim como me senti depois da minha Vigília Pascal particular.
Os africanos que adotaram o catolicismo também adotaram as suas tradições, especialmente os rituais da eucaristia dominical e as celebrações da Páscoa. Muitos deles que têm os meios para tanto, como minha família, assistiram à missa ao vivo.
Mas muitos outros não puderam assistir porque não têm eletricidade em casa, nem televisão, tampouco conexão à internet. Conheço mulheres africanas rurais de seis países diferentes, que contam com o apoio da nossa instituição de caridade, os Canadian Samaritans for Africa. Hoje, a maior preocupação delas é garantir a próxima refeição. Como a fome que elas têm por Deus pode ser satisfeita nesses tempos, uma vez que não têm acesso à missa on-line?
Seja no norte, seja no sul global, se se tornar tendência nesta era de Covid-19, a virtualização da celebração eucarística pode ampliar o abismo entre pobres e ricos. Ela pode limitar os meios escolhidos pela Igreja para o encontro com Deus a somente aqueles que têm condições de comprar os dispositivos que tornam isso possível.
O Deus que escolheu adentrar o caos de nossas vidas humanas e encontrar-nos em nossas condições reais poderá ser, dessa forma, confinado pela Igreja?
A conversa que tive com minha família levantou três questões para mim, enquanto teólogo africano: como celebrar os mistérios divinos em tempos como este, o meu ministério de acompanhamento enquanto sacerdote, e o que a Igreja universal pode aprender com a África ao reformar o nosso sistema sacramento e a nossa vida pastoral.
Cresci em uma comunidade rural africana sem eletricidade nem televisão. Assisti TV pela primeira vez em 1982, quando o Papa João Paulo II celebrou uma missa em visita à Nigéria. Caminhei cinco quilômetros até o local onde assisti à missa.
Em casa, nunca tivemos um aparelho televisor; só o tivemos quando eu cursava o ensino médio. Para o bem ou para o mal, esta é a realidade para muitos africanos ainda.
Televangelistas dos Estados Unidos foram os primeiros a transmitir regularmente celebrações religiosas via TV na África. Líderes pentecostais locais, evangélicos e os chamados curandeiros logo se seguiram.
Muitos dos televangelistas africanos da década de 1990 incentivavam as pessoas a assistir seus ministérios ao vivo, tocando nas telas dos aparelhos durante a transmissão, para receberem “poder, cura e milagres”.
O televangelismo na África promoveu todo tipo de falsas promessas religiosas, milagres não verificados e práticas supersticiosas. Ele reforçou um evangelho da prosperidade que, ainda hoje, continua a desafiar a causa do evangelho na África.
Há vantagens nessas formas de evangelização em termos de compartilhamento da Palavra de Deus e testemunhos pessoais da obra divina. Elas podem ser uma ferramenta na formação religiosa também, caso os abusos forem removidos.
Mas a Igreja Católica na África tem tido o cuidado de não cair, de todo o coração, nos aspectos mágicos do televangelismo. Ela tem tomado cautela para não virtualizar as celebrações religiosas.
Em 2002, o antigo Pontifício Conselho para a Comunicações Sociais publicou um documento que reflete algo do qual estou convencido:
“A realidade virtual não substitui a Presença Real de Cristo na Eucaristia, a realidade ritual dos outros sacramentos e o culto compartilhado no seio de uma comunidade humana feita de carne e de sangue. Na Internet não existem sacramentos; e até mesmo as experiências religiosas nela possíveis pela graça de Deus, são insuficientes, dado que se encontram separadas da interação do mundo real com outras pessoas na fé.” (Igreja e internet)
Essas palavras também ressoam com a noção africana de mediação do divino. O fiel não é um espectador divino. Ele, ou ela, é um participante ativo no culto divino – em corpo, alma, espírito e mente.
Deus não é exibido ou transmitido como um presente divino trazido ao crente virtualmente sem uma união e conexão – espacial e espiritual – direta em um ambiente comunitário, a começar pelos grupos familiares.
Os fiéis arrebatam-se, em uma presença sagrada, em virtude da participação direta e real por intercessão, invocação, dança e outros movimentos que constituem o ritmo e o sabor do culto divino em muitas igrejas africanas.
A função mediadora de um padre na religião e espiritualidade tradicional da África é única. Mas jamais é solitária ou remota. O padre, sem a comunidade, está perdido.
Por outro lado, não há comunidade, a menos que exista uma participação ativa de todos no vínculo espiritual e concreto que se reflete concretamente na participação mútua de todos. Isso inclui o padre, como membro da comunidade.
Surge então a dúvida sobre saber se as medidas extraordinárias, introduzidas pelos tempos extraordinários que enfrentamos, impulsionaram a imersão dos católicos da África nos mistérios do Mistério Pascal.
Na Nigéria, a minha família, obviamente, participou do sentimento de solidariedade espiritual. Mas, como não puderam receber a Sagrada Comunhão, sentiram que não estavam plena e ativamente envolvidos na celebração dos mistérios de nossa Redenção.
Na África, não podemos ajudar preparar uma refeição e depois não participar dela. Infelizmente, os católicos africanos enfrentam uma espécie de duplo risco com a virtualização da missa. Eles não participam da preparação da refeição sagrada e não podem receber o corpo sagrado de Cristo durante a missa.
Devo também confessar que, ao celebrar a missa sozinho no canto do meu apartamento, não senti que estava acompanhando o Povo de Deus. Muitos colegas que também são pastores lamentaram-me que celebrar a missa virtual ao vivo era uma forma de penitência espiritual, porque não parece o mesmo.
É óbvio que estamos vivendo tempos difíceis e que o Povo de Deus tem sofrido. No entanto, é de suma importância que o remédio que estamos aplicando não cause mais dor às pessoas, deixando-as com um vazio e desespero espiritual maior.
Há, aqui, um princípio teológico importante. É a questão do acompanhamento físico e espiritual. Os padres precisam estar próximos das pessoas de maneira real nesses tempos difíceis.
Já vemos alguns exemplos brilhantes de acompanhamento no número de padres que morreram ministrando a nossos irmãos e irmãs atingidos por esta doença. Esses clérigos heroicos, trabalhando lado a lado com homens e mulheres de boa vontade, estão lá, nas ruas, atendendo aos desabrigados, alimentando os famintos e enterrando os mortos.
Há muitas paróquias que criaram uma lista de chamadas para conectar-se com os mais vulneráveis e com os católicos ligados on-line em uma cadeia espiritual de apoio mútuo.
Confesso que, de forma geral, não tenho estado presente entre meus irmãos e irmãs em seus lugares de dor, como tenho estado na segurança de meu apartamento, rezando missas sem o povo, apenas porque quis me certificar do cumprimento da obrigação de rezar a missa pro populo aos domingos e em solenidades.
Em nenhum outro momento, o apelo do Papa Francisco por uma Igreja como hospital de campanha se faz mais apropriado do que agora. A Igreja não é nossas catedrais gigantes e nossos prédios resplandecentes; é o Povo de Deus em seus locais de dor e pânico diante da Covid-19.
A Igreja nunca foi uma estrutura fixa. Ela é o movimento dinâmico do Povo de Deus chamado a percorrer, especialmente agora, o doloroso caminho de lágrimas, silêncio, feridas e dores na esperança da Ressurreição.
Esta imagem eclesiológica nos desafia, hoje, a acolher uma busca mais criativa pelos rostos de Cristo nas faces feridas do mundo. Isso deveria destruir o apego a atos cúlticos que, muitas vezes, mantêm a Igreja e seus membros escravizados em práticas comunitárias repetitivas. Tais práticas podem entorpecer a percepção espiritual ao ver as surpresas do Espírito Santo e os sinais dos tempos no encontro de Deus em lugares não costumeiros.
A imagem da Igreja como um hospital de campanha também lembra toda a natureza peregrina de nossa vida terrena e do caráter peregrino da Igreja. De fato, a palavra paróquia (paroikos) refere-se ao peregrino ou estrangeiro, aquele que vive em terra estrangeira.
Acho que a Covid-19 fez esse significado de paroquiano mais real para todos, lembrando-nos da natureza transitória de nossas vidas. É por isso que o protagonismo da Igreja em geral deve buscar novos caminhos para atender às necessidades espirituais e pastorais do Povo de Deus – leigos, religiosos e também clérigos.
Isso pede que a Igreja Católica de Roma se afaste do apego às práticas cúlticas e adote uma forma mais profética de testemunhar a presença do Senhor nas feridas do mundo de hoje.
É óbvio que a virtualização dos sacramentos é um jeito imperfeito de tentar enfrentar a crise, retornando a um modo padrão. Mas essa maneira de celebrar os mistérios não leva as pessoas a mergulhar mais fundo nos mistérios.
Ser tocado por Deus e tocar Deus nas feridas das pessoas é uma maneira singular pela qual a Igreja, como hospital de campanha, pode abraçar, com maior vigor, os novos desafios que nossa vida e nosso serviço pastoral enfrentam nestes tempos de Covid-19 e além.
Hoje, o coronavírus desafia a Igreja a repensar sua teologia sacramental, especialmente a teologia da Eucaristia. Como a Igreja, como hospital de campanha, satisfaz a fome de Deus, que muitos sentiram mais profundamente com o fechamento das igrejas?
Será que não há outros modos e meios pelos quais Deus pode se fazer plenamente mediado e presente entre o povo em suas igrejas domésticas (lares), fora da prática exclusiva e remota dos atos cúlticos do padre por meio de uma missa virtual?
Não há outros ministérios e mistérios que podem ser celebrados na ausência de sacerdotes?
Para responder a essas perguntas, temos de descobrir novas maneiras de reconhecer os dons e o papel dos leigos na celebração dos mistérios em seus lares, nas ruas e nos muitos hospitais e locais de dor, ao enfrentarmos essa pandemia com uma maior coragem profética e com um maior amor sacrificial.
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Por que não celebrei missa on-line nesta Páscoa. Confissões de um padre africano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU