07 Abril 2020
História de uma não-demissão. Com o país entregue à pandemia, presidente perde-se em intrigas palacianas, vê governo dividido ao meio e não consegue afastar Mandetta.
A segunda-feira começou com um telefonema: o deputado federal Osmar Terra (MDB-RS) ligou para um aliado político de seu partido, o governador do Distrito Federal Ibaneis Rocha, para dar “conselhos” sobre a epidemia de covid-19. A ligação acendeu o radar de quem ficou sabendo dela. Depois de ameaçar “usar a caneta” contra Luiz Henrique Mandetta, o presidente Jair Bolsonaro teria autorizado Terra a falar em nome do governo.
A informação é publicada por Outra Saúde, 07-04-2020.
Horas mais tarde acontece um almoço no Palácio do Planalto. Lá, novamente está Terra. Mas também entra em cena outra personagem, a médica Nise Yamaguchi. Se o deputado federal agrada Bolsonaro por defender o fim do distanciamento social, a imunologista tem falado o que o presidente quer ouvir sobre o uso da hidroxicloroquina em pacientes contaminados pelo novo coronavírus. O assunto do almoço é justamente esse. O titular da Saúde não foi convidado, mas os ministros que despacham no Planalto participaram.
Depois do convescote, a primeira notícia que vaza na imprensa é a de que Bolsonaro convocou seus ministros para uma reunião-geral às 17h – exatamente o horário em que começa a coletiva de imprensa de atualização da covid-19, da qual Mandetta costuma participar.
Já a segunda notícia é uma bomba: às 15h21, O Globo publica uma reportagem taxativa: “Bolsonaro decide demitir Mandetta”. Segundo os repórteres Gustavo Maia e Naira Trindade, dois “auxiliares” do presidente teriam confirmado a decisão e um ato oficial de exoneração estava sendo produzido. Fogo no parquinho: o link passa de grupo em grupo de WhatsApp. Panelas batem quando o bastidor vai parar na TV. Manifestação é marcada para 17h, horário em que começa a coletiva do Ministério e a reunião de Bolsonaro. Hipóteses são levantadas: seria fogo amigo para reforçar a popularidade de Mandetta? Seria um balão de ensaio lançado por Bolsonaro para medir a temperatura da decisão junto ao povo? O presidente teria perdido definitivamente a cabeça? Ou estaria preparando um “autogolpe”, já antevendo uma reação parlamentar à demissão?
Foi só um tempo depois que mais informações chegaram. A versão mais consolidada na imprensa é a de que Bolsonaro decidiu, sim, exonerar Mandetta – mas foi convencido por militares a voltar atrás. Sempre segundo as notícias publicadas em toda a parte, a ala militar teria, sim, dado certa razão ao presidente que se irrita com a forma como o ministro da saúde tem se comportado. Para eles, Mandetta tenta capitalizar em cima da crise (como era de se esperar de qualquer político que estivesse em seu lugar…). As ‘fadas sensatas’ foram os generais Walter Braga Netto (Casa Civil) e Luiz Eduardo Ramos (Governo). Mas o convencimento pode durar pouco tempo:
“Quando conversam com Bolsonaro, os militares até acham que o convenceram de que o recuo é a melhor estratégia nesse momento, relatou um dos interlocutores do Planalto. Mas têm consciência, segundo esse mesmo auxiliar do presidente, que os maiores inimigos são as redes sociais e dezenas de grupos de WhatsApp que alimentam a ira de Bolsonaro. Os discípulos do escritor Olavo de Carvalho, guru da família do presidente, e o vereador Carlos Bolsonaro (PSC-RJ) já demitiram Mandetta em seus posts e passam o dia tentando fazer Bolsonaro usar a caneta”, relata a repórter Tânia Monteiro, no Estadão.
Ao fim do dia, Bolsonaro recebeu Mandetta. A versão do ministro sobre a reunião tem tudo para colocar ainda mais gasolina na relação com o presidente. Ele teria pedido “paz para trabalhar”. Mandetta mostrou que tem verve de sobra e saiu-se com a seguinte ironia: já nas dependências do Ministério da Saúde, em pronunciamento de “fico” convocado às pressas, ele disse que aproveitou os últimos dias para reler um diálogo de Platão. Adivinhem qual? “O mito da caverna”. Afirmou que continua sem entender. De fato, o “mito” brasileiro que ocupa a presidência da República quase ninguém entende…
De acordo com o ministro – que ontem estava inclinado às metáforas –, sua equipe passou a segunda-feira “limpando gavetas”. Não se sabe muita coisa sobre o dia de Mandetta. Apenas que na tarde de ontem ele teve uma reunião com integrantes do Ministério Público, na qual admitiu que não sabia até quando ‘ficaria’ ministro da saúde.
Mas o fato é que ele visivelmente se sente fortalecido depois da crise. Exemplo: revelou que após se reunir com Bolsonaro, foi pressionado por dois médicos (“um anestesiologista e uma imunologista”) a editar um protocolo de tratamento com hidroxicloroquina – que, depois do “isolamento vertical”, é justamente o novo cavalo de batalha do presidente. Mandetta teria despachado os dois com a sugestão de que levassem a ideia para Denizar Vianna, secretário de Ciência e Tecnologia da Pasta. Aos jornalistas, disse que recusou a pressão por “falta de embasamento científico” – e nisso o ministro tem toda razão.
Além disso, Mandetta deu as seguintes declarações: “Infelizmente, começamos com mais um solavanco a semana de trabalho”; “Hoje foi um dia que rendeu muito pouco o trabalho. Ficaram [os secretários] com a cabeça avoada se eu iria permanecer, se eu iria sair”; “Ciência, ciência. Não vamos perder o foco: ciências, disciplina, planejamento, foco. Não perca. Esses barulhos que vêm ao lado, esquece”; “É muito difícil trabalhar nesse sistema, em que a gente não sabe ao certo como vai ser o próximo dia, a próxima semana.” Saiu aplaudido pelos funcionários do Ministério da Saúde.
O episódio pinta com cores ainda mais fortes o isolamento do presidente. Para integrantes do Judiciário e do Congresso, Bolsonaro foi basicamente desmoralizado e sua fragilidade está escancarada para quem quiser ver.
Em sua coluna, o jornalista Igor Gielow, que tem acompanhado a crise diariamente, chegou à seguinte conclusão: “Ao fim, o que se viu foi um calmo Mandetta convocar uma entrevista coletiva para dizer que, apesar de ter seu trabalho atrapalhado pelo Palácio do Planalto, não vai deixar o cargo. Em outras palavras, o ministro disse que o presidente fica onde está.”
Mas não foram só os militares que atuaram pela permanência de Mandetta no cargo. O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP) ligou para o ministro Luiz Eduardo Ramos dizendo que a relação do governo com o Congresso Nacional “ficaria muito difícil”. Ele também avisou ao titular da da Secretaria de Governo que faria, junto com Rodrigo Maia, uma crítica pública à decisão. Passada a ameaça de demissão, Alcolumbre descreveu Bolsonaro nos seguintes termos: “o motorista de um caminhão em alta velocidade em direção a um muro, e que mesmo alertado de que vai bater, não para”.
Outro a incidir foi o presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli. Segundo a repórter Thais Arbex, ele atuou em duas frentes: “fez chegar ao Palácio do Planalto que demissão de Mandetta, neste momento, seria muito mal recebida não só pela corte, mas por diversos setores da sociedade; e trabalhou para que o ministro da saúde também fizesse algum gesto de harmonia em relação ao presidente” (achamos que essa última tentativa fez água).
Sobre isso não se tem certeza, mas a Folha acredita que a notícia da demissão de Mandetta “reduziu o movimento de alta” da Bolsa de Valores brasileira. Se for correto, ‘os mercados’ seriam outro personagem dessa história. Aos fatos: o Ibovespa subia mais de 8% no pregão, fechou em 6,5%. O dólar estava em R$ 5,2260 na mínima do dia, fechou a R$ 5,2910.
Se Mandetta cair, existem três nomes cotados para assumir o Ministério. Dois deles já apareceram por aqui hoje. O terceiro é Antônio Barra Torres, diretor-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Mas ele quase não aparece nas reportagens publicadas ontem, de modo que vamos nos concentrar nos seus adversários.
Onyx Lorenzoni, que foi nomeado em fevereiro para o Ministério da Cidadania com a saída de Osmar Terra, é aparentemente um dos maiores articulares da indicação do ex-ministro para a Saúde. Ele tem tido acesso livre a Bolsonaro. Só na quarta passada, o presidente teve três audiências com a participação de Terra no Planalto: a primeira com Braga Netto, e as outras duas com médicos para discutir o uso da hidroxicloriquina. Mandetta apelidou o deputado federal de “Osmar Trevas” em um grupo de WhatsApp do DEM, seu partido, após o compartilhamento de uma notícia sobre a reunião com os médicos.
A novidade no páreo é Nise Yamaguchi, que seria o nome preferido da ala militar do governo. Ela é imunologista e trabalha no Hospital Albert Einstein. Segundo descreve o Estadão, ela defende mais ou menos que a população brasileira seja feita de cobaia para o uso em massa da hidroxicloroquina. O composto seria adotado como um “tratamento preventivo nos primeiros dias da infecção”. Detalhe: as pessoas receberiam o medicamento em casa. Além disso, Yamaguchi também defende a invenção presidencial do “isolamento vertical”.
Não deixa de ser engraçado: um documento do Centro de Estudos Estratégicos do Exército defende o “isolamento horizontal” como estratégia de combate ao novo coronavírus. No estudo, são defendidas a “redução da atividade aos serviços essenciais”, “restrições ao movimento”, “testagem maciça” e “mobilização de instalações temporárias”, como hospitais de campanha. Tudo isso para fazer frente ao aumento de casos da covid-19.
Diz o documento: “Há um consenso mundial entre os especialistas em saúde de que o isolamento social seja a melhor forma de prevenção do contágio, especialmente o horizontal, para toda a população. O isolamento seletivo, ou vertical, para determinados grupos de risco, é defendido por alguns especialistas e vem sendo adotado por alguns países. No entanto, ainda é prematuro para que sejam elaboradas conclusões acerca de seus resultados”.
Depois das emoções de ontem, a Ordem dos Advogados do Brasil resolveu reforçar a ação que move no STF para obrigar que Bolsonaro siga as determinações da Organização Mundial da Saúde. A OAB argumentou ontem em nova petição destinada ao relator, ministro Alexandre de Moraes, que há “urgência” na concessão da medida cautelar – “ainda mais nítida diante de notícias que circulam na imprensa na data de hoje (6 de abril), de que o presidente da República estaria planejando a imediata exoneração do atual ministro da saúde, para nomear para a Pasta possível titular que já manifestou críticas quanto às medidas de isolamento social”. A referência é a Osmar Terra.
E há outra ação no horizonte, desta vez assinada por 20 procuradores da república do Ministério Público Federal em Belém. Eles querem que o presidente seja obrigado a publicar “orientações e indicações” em seus perfis nas redes e canais oficiais sobre “a necessidade imprescindível de isolamento social”.
Mas na visão do filósofo Vladimir Safatle, a única saída sensata diante da pandemia é lutar pelo impeachment, pois “Bolsonaro é uma crise ambulante”. “Ele trava todas as medidas, desarticula todas as medidas, mobiliza setores da população para que burlem as medidas que são necessárias para contenções mínimas e ele aproveita essa situação para criar um sistema de destruição de qualquer possibilidade de garantias da classe trabalhadora, da classe mais desfavorecida. Essa MP, a flexibilização de demissões em uma situação como essa, os trabalhadores terem até 70% do seu salário reduzido, isso mostra como ele potencializa a crise, ele multiplica a crise. O Brasil não tem a menor condição de suportar isso por mais tempo”, resumiu em entrevista à Agência Pública.
Com a crise política girando em torno do entendimento de Bolsonaro sobre isolamento social e proteção da economia, o Ministério da Saúde se dobrou, ao menos em parte: publicou ontem um boletim estabelecendo critérios para a adoção de diferentes formas de isolamento nos estados, e ainda para o retorno ao trabalho. Mas o ministro Mandetta disse ontem à noite que, apesar do plano, não mudou de opinião nem cedeu em relação ao presidente…
Sem citar o “isolamento vertical” exigido por Bolsonaro, o documento, na prática, o descreve – mas com o nome de “isolamento social seletivo“, que se contrapõe ao “isolamento social ampliado”. No seletivo, só grupos de risco ficam isolados (com aquele problema que já mencionamos aqui algumas vezes: como isolar idosos que moram com jovens?; como isolar diabéticos que moram com outras pessoas? como isolar hipertensos? obesos? gestantes de alto risco?). No ampliado, todo mundo fica em casa.
Pela recomendação da Pasta, localidades que não estejam com mais de 50% da capacidade dos seus serviços de saúde comprometidos e hoje estejam em “isolamento social ampliado” poderiam migrar para o seletivo já daqui a uma semana, no dia 13. Os demais devem seguir no isolamento ampliado até que haja testes, equipamentos de saúde e profissionais suficientes para lidar com as infecções. Enquanto não há, o isolamento ampliado é “o único instrumento de controle disponível no momento”.
Por aqui, ficamos preocupadas com o rápido crescimento da doença, com o fato de que esses 50% podem ser alcançados em pouco tempo e em imaginar como dos 50 aos 100% pode ser um pulo. Mas o plano não tem um caráter vinculante: estados e municípios têm competência para tomar suas próprias decisões.
O lockdown – bloqueio total – aparece no documento como forma eficaz para conter o vírus nos casos de aceleração nas transmissões. Mas a Pasta não estabelece nenhum critério sobre em que momento o distanciamento ampliado deve migrar para o lockdown.
O boletim também fala da volta ao trabalho de profissionais de saúde e segurança (e que, quando houver testes disponíveis, a orientação pode se estender a outras categorias). Quem tem sintomas gripais deve ficar isolado por duas semanas, mesmo sem teste; quem testa negativo pode voltar ao trabalho (se fizer o PCR, mais preciso, volta imediatamente; quem faz o teste rápido e dá positivo, espera 14 dias para voltar). Aqui, também nos preocupa a indicação de que bastaria ter testes suficientes para garantir o retorno das pessoas ao trabalho na população como um todo, embora concordemos que isso seja um condicionante. Quem testou negativo está suscetível a contrair o vírus… Sem pensar em maneiras muito eficazes para rastrear e testar todos contatos dos casos confirmados, há sempre o grande risco de ter muitos assintomáticos espalhando o SARS-Cov 2. Se não houver equipamentos de saúde disponíveis, o colapso é quase certo.
Vários veículos deram a notícia de que ontem o ministro Mandetta publicou um artigo na Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical defendendo a adoção do isolamento social desde o início das transmissões. Não conseguimos localizar o artigo para verificar se o texto faz alguma distinção entre os tipos de isolamento e a capacidade instalada do sistema de saúde.
A saída do isolamento também está no centro das preocupações da OMS. Ontem, seu diretor-executivo do programa de emergências sanitárias, Michael Ryan, disse que o processo vai ser diferente em cada país, mas em todos os casos deve ser pensado a partir da capacidade de testagem e de atendimento nos hospitais. Também é preciso ter elementos de monitoramento local da pandemia, como saber exatamente de quanto em quanto tempo os casos dobram, a porcentagem de testes que dão positivo e a taxa de transmissão da doença. “Não há números exatos que definam qual é o momento certo de abrir ou fechar. O que podemos dizer é que é preciso acompanhar o passo da pandemia. Relaxar, medir, esperar, analisar e dar um passo de cada vez”, afirmou.
Mesmo que vários estados tenham estabelecido o isolamento (ampliado), quase 30% da população segue nas ruas, deixando de seguir parcial ou totalmente as recomendações. A informação é de uma pesquisa do Datafolha feita entre os dias 1 e 3 de abril, por telefone. O resultado indica que 24% das pessoas dizem tomar algum cuidado por conta da pandemia, mas continuam saindo para trabalhar ou fazer outras coisas, e 4% não mudaram em nada a rotina. Outros 54% dizem sair de casa só quando é inevitável (esse dado é um pouco confuso porque a saída para trabalhar também não deixa de ser inevitável… Mas a pergunta se refere, por exemplo, à compra de alimentos) e 18% estão totalmente isolados, sem sair de casa nunca. Os dados separados por faixa salarial são um tanto surpreendentes, porque os percentuais variam muito pouco.
Aliás, a seção =igualdades da Piauí mostra em que países o isolamento tem sido mais rígido ou mais frouxo. O Brasil está entre os mais flexíveis. Apesar das restrições, não diminuiu tanto a atividade em escritórios e prédios comerciais, muito menos o uso do transporte público.
Em tempo: em São Paulo, o governador João Doria prorrogou o isolamento até o dia 22, e declarou que a PM pode ser acionada para garantir que se cumpram as recomendações; primeiro de forma “orientativa”, depois “coercitiva”. Para especialistas, medidas devem ser prorrogadas por mais tempo. Um estudo da Opas, a Organização Pan-Americana de Saúde, indica que sem medidas do tipo a saúde paulista entraria em colapso em um mês. Mas o fato é que, mesmo antes do pico, o primeiro hospital de campanha na capital já precisou começar a internar pessoas.
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O dia em que Bolsonaro latiu mas não mordeu - Instituto Humanitas Unisinos - IHU