24 Março 2020
"A pandemia está evidenciando o quanto somos absolutamente interdependentes uns dos outros. Este acontecimento nos mostra que cada vez os seres humanos estamos mais vinculados um ao outro de modo inexorável. Aquilo que eu faço repercute no outro extremo do planeta, assim como aquilo que ocorre com o outro me afeta muito proximamente", escreve Castor M.M. Bartolomé Ruiz, doutor em Filosofia, professor titular do Programa de Pós-Graduação de Filosofia da Unisinos, coordenador da Cátedra Unesco-Unisinos de Direitos Humanos e Violência, Governo e Governança e coordenador do Grupo de Pesquisa CNPq Ética, Biopolítica e Alteridade.
Inicialmente reconhecemos nesta pandemia todos os elementos da biopolítica e temos de entender algumas das entranhas deste acontecimento a partir das pesquisas desenvolvidas sobre a relação entre o poder e a vida nas sociedades modernas. Não deixa de chamar atenção que já na década de 1980, Foucault tivesse desenvolvido a hipótese de que o poder moderno é essencialmente um poder biopolítico porque seu foco é a gestão produtiva da vida. Chama mais atenção ainda perceber no curso de 1978, “Segurança, Território e População”, na aula de 25 de janeiro, as análises de como a epidemia da varíola, nos séculos XVIII e XIX, foi decisiva para desenvolver uma série de técnicas médicas de controle de enfermos que depois se tornariam técnicas políticas de controle da população. As epidemias, entre outras práticas, foram os laboratórios privilegiados nos quais se gestaram os denominados dispositivos de segurança. Os alertas médicos das epidemias e pandemias, entre outras, serviram para modular as técnicas políticas através das quais é possível gerenciar uma população através dos dispositivos de segurança. A segurança tornou-se, então, o elemento político a partir do qual se legitima a intervenção sobre o controle da população.
Na atual crise de pandemia que nos toca viver, também observamos como entre os dispositivos biopolíticos mais utilizados para controlar a doença encontram-se uma variada gama de medidas de exceção. Muitos países decretaram estado de alarma, ou estado de emergência, que outorga aos governantes poderes de polícia total sobre os movimentos dos cidadãos, impedindo-os de ir ou vir. Inclusive poder de convocar o exército para patrulhar as ruas, portos e aeroportos, como é o caso da Espanha e Itália, e muito provavelmente possa ocorrer em outros países.
No Brasil foi decretado, até agora, o estado de calamidade pública e em muitos de nossos estados os governadores decretaram medidas de exceção. Também os diversos prefeitos decretaram medidas excepcionais em seus municípios. Tem municípios que decretaram o “Toque de recolher”, no caso dos municípios do Vale do Paranhana, RS. Outros decretaram fechamento do comércios e demais locais públicos. Outros até colocaram barreiras para entrar e sair do município, como foi o caso de Capão da Canoa, RS, que é um município litorâneo e o prefeito decretou a expulsão de todos aqueles que não tiverem residência comprovada lá. São amplamente conhecidas as pesquisas que Agamben desenvolveu sobre a relação da exceção como dispositivo biopolítico de controle e gestão de pessoas e populações. Elas são extremamente atuais. O decreto de exceção outorga poderes especiais aos governantes para poder agir de forma soberana sobre situações de crise. A exceção, mesmo que seja parcial, faz aparecer a figura do poder soberano e, concomitantemente, nos torna a todos uma espécie de “homo sacer”, pois ficamos submetidos, dependentes quase que como súditos, ainda que sejam exceções parciais, das decisões arbitrárias do poder soberano que foi concedido ao governante no decreto de exceção.
Há que destacar, como exemplo para nossa análise, como em determinados países como Israel, China, Coreia, entre outros, uma das técnicas utilizadas no decreto de exceção foi determinar a vigilância total dos cidadãos suspeitos de coronavírus através do uso obrigatório de um aplicativo que deveriam ter no seu celular e levar consigo. Esse aplicativo permite aos centros de inteligência a vigilância em tempo real da pessoa. Na prática vemos tornar-se operativa na cidadania a técnica da tornozeleira eletrônica imposta aos presos de terceiro grau. Vemos também replicar-se nesta tecnologia de controle a tese de Foucault na obra Vigiar e Punir de que os dispositivos do panoptismo, entre outros, se experimentam primeiro na população carcerária para depois migrar para a cidadania.
Como sempre dissemos, os dispositivos biopolíticos, entre eles a exceção, não são intrinsecamente perversos. Eles são necessários para tomar decisões rápidas e eficientes perante emergências e crises agudas. Se fossem estritamente perversos, como a escravidão ou a tortura, se poderiam suprimir por lei. A pandemia que vivemos parece ser uma dessas situações que justifica a utilização desses dispositivos de exceção, que exigem que todas as pessoas fiquem em casa para o bem comum. Não pode ser deixado à liberdade individual ficar ou não em casa, pois a decisão de cada um repercute imediatamente sobre os demais espalhando a pandemia e suas graves consequências. Este tipo de situações legitimam a existência dos dispositivos biopolíticos como necessários para casos de necessidade extrema.
O problema dos dispositivos biopolíticos, entre eles a exceção, é que uma vez mostrada a eficácia para o controle das pessoas, há uma tendência, cada vez mais acentuada, a utilizá-los para situações diversas de governo, como técnica eficiente para controlar a cidadania. Particularmente o dispositivo da exceção é profundamente paradoxal. Utilizado de modo pontual por governantes bem intencionados, pode ajudar a resolver de forma eficiente e com menor custo de vidas uma situação como a atual pandemia. Porém, outorgar poderes de exceção a governantes mal intencionados, pode significar que ao terem poderes excepcionais os utilizem para outro tipo de objetivos que eles almejam. Não esqueçamos nunca que Hitler foi eleito democraticamente e que nunca aplicou um golpe de Estado para obter o poder soberano; simplesmente decretou, com aval do parlamento, a exceção prevista na constituição do Weimar e com isso adquiriu poderes totais que utilizou para agir por decretos soberanos durante todos os anos de governo.
Somos cientes que na atual situação política do Brasil, a possibilidade do presidente ter poderes de exceção para resolver a pandemia do coronavírus poderia representar a oportunidade que vem procurando desde que foi eleito, de neutralizar o congresso e a justiça para poder agir com arbitrariedade em diversos atos de governo. Esse é um dos paradoxos da exceção.
Os tempos de pandemia que nos toca testemunhar vão também muito além dos dispositivos biopolíticos. Ser testemunhas de nossa história significa desafiar-nos, como fez Walter Benjamin, a ser capazes de olhar nos olhos da Górgona para melhor entender a lógica do monstro. A Benjamin sua vocação de testemunha crítica dos fascismos custou-lhe a vida. Talvez não se exija tanto de nós neste acontecimento, mas temos a responsabilidade intelectual e humana de olhar nosso presente de modo crítico para, entre todos, melhor compreendermos qual é o mundo que temos criado para chegar a esta situação, qual é modelo de mundo que emergirá depois da pandemia, que certamente será afetado de forma sensível por este acontecimento.
Algumas lições importantes já emergem, mesmo estando ainda no meio de um processo que vai acontecer. Há algumas questões geoestratégicas e também ético-políticas que se perfilam nesta experiência.
A pandemia está redefinindo a geopolítica mundial a uma velocidade similar à do vírus. Desde o início do século XIX, os EUA emergiram como a superpotência imperial dominante, isso após a sua intervenção na guerra de Cuba contra Espanha e na 1ª e 2ª guerras mundiais. Agora, no auge da pandemia, os EUA, com o governo Trump e sua política nacionalista, dão as costas a seus aliados tradicionais, que necessitam muito de apoio urgente, para olhar só as necessidades dos seus nacionais. Por outro lado, vemos a muitos países do mundo, tradicionais aliados de EUA, entre eles o Brasil e a própria União Europeia, voltando seus olhos para China, solicitando ajuda de todo tipo. A China tem adotado uma política de apoio e solidariedade, e está enviando toneladas de material clínico, assim como milhares de médicos chineses estão indo a diversos países para ajudar a controlar a pandemia, a partir de sua experiência muito bem-sucedida de controle da doença.
Já faz anos que vemos emergir a China como uma nova superpotência econômica, mas agora emerge como superpotência em tecnologia e também em capacidade de gerenciamento de crises. O mundo inteiro está surpreso da capacidade de construir hospitais com milhares de leitos em dez dias. Algo que ninguém consegue fazer. Na atual situação de solidariedade na pandemia, fica evidente para todo mundo que a ajuda de China não é meramente filantrópica. A China tem um interesse de hegemonia mundial concretizado no seu projeto “One Belt, One Road”, que em 2013 foi apresentado publicamente por seu presidente Xi Jiping, que estaria inspirado na experiência de Marco Polo e a rota da seda. É um projeto no marco do multilateralismo, diferente do modelo nacionalista de Trump. Um projeto de respeito aos outros povos, comunhão de interesses, mas todos convergiriam para um novo centro mundial. As redes de tecnologia, as redes de infraestrutura e as rotas de comércio estão sendo redesenhadas para A China como novo centro mundial.
Seja como for, a atual pandemia está aproximando a China de modo estratégico nunca previsto de muitos outros países como a União Europeia. Enquanto os EUA viram as costas para seus tradicionais aliados, esta solidariedade da China deve ter consequências estratégicas, por exemplo, talvez seja o empurrão que necessitava para que a tecnologia 5G, que só a China tem plenamente desenvolvida, seja por fim assumida por muitos países. Haverá que acompanhar com atenção desenvolvimentos importantes provocados pela pandemia neste campo da geoestratégia mundial.
Contudo, ainda há repercussões na dimensão ético-política que esta pandemia está trazendo para nossa reflexão. Inicialmente a pandemia está evidenciando o quanto somos absolutamente interdependentes uns dos outros. Este acontecimento nos mostra que cada vez os seres humanos estamos mais vinculados um ao outro de modo inexorável. Aquilo que eu faço repercute no outro extremo do planeta, assim como aquilo que ocorre com o outro me afeta muito proximamente. A pandemia nos mostrou o quanto somos próximos do outro, e quanto o outro está próximo de mim. As nossas divisões identitárias, raciais, ideológicas ou nacionais mostram-se porosas perante a necessidade de interdependência global na pandemia. Esta pandemia deixa evidente que somos capilarmente corresponsáveis dos outros. A minha atitude individual repercute diretamente nos outros. Com isso se mostra a fragilidade da ideologia individualista do liberalismo utilitarista. Esta pandemia indica que a minha atitude individual afeta diretamente o outro, assim como a do outro também me afeta. Em poucas ocasiões da história da humanidade se viveu uma experiência de proximidade tão radical.
Um segundo aspecto ético da pandemia nos apresenta a grandeza da natureza, que pensávamos ter dominado com nossa tecnologia instrumental e predadora. A lógica instrumental de nossa modernidade capitalista mantém, até agora, uma relação predatória da natureza. Esta pandemia pode ser o prelúdio de outras catástrofes naturais por vir, se não mudarmos o atual modelo de predação ilimitada da natureza.
Por último, vemos como a pandemia está provocando uma experiência inédita de decrescimento econômico. Umas das consequências positivas deste acontecimento é que nestas semanas os índices de contaminação em escala global têm diminuído significativamente. É como se o planeta estivesse respirando melhor, quase a pleno pulmão. Este efeito colateral imprevisto poder ser também uma importante experiência pontual para redefinirmos o atual modelo de consumo infinito e descarte ilimitado, tomando rumo para um outro modelo de consumo necessário e vida com austeridade libertadora.
Nas circunstâncias-limite que provoca em muitas ocasiões a pandemia, reaparecem o melhor e o pior da condição humana. Destacamos a importância que estão tendo todas as formas de redes humanas de apoio. Na solidão da quarentena compulsória, que ainda não temos no Brasil, ou na necessidade peremptória de muitos casos, percebe-se a importância que o outro tem em nossa vida. A pandemia mostra como somos radicalmente interdependentes e também necessitados dos outros.
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Questões éticas da biopolítica na pandemia que nos assombra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU