Por: Ricardo Machado | 04 Mai 2018
A capa de um dos livros do poeta uruguaio Mario Benedetti trazia como título a seguinte frase: El olvido está lleno de memoria (o esquecimento está cheio de memória). Na noite da quarta-feira, 2 de maio, o professor e pesquisador da Unisinos Castor Bartolomé Ruiz, durante sua conferência A produção de violência e morte em larga escala: da biopolítica à tanatopolítica, tratou de fazer memória das mais de 50 mil vítimas de assassinato que o Brasil registra anualmente. Durante a apresentação, trouxe rostos à estatística, que, assim, nua e crua, perde sua potência crítica, porque negar os rostos dos mortos é uma forma de negar suas memórias.
Menos de 12 horas antes, a cerca de 50 quilômetros da Unisinos São Leopoldo, onde foi realizada a conferência, um policial civil havia sido assassinado. Como que uma memória às avessas, sua morte torna-se espetáculo midiático com programas policialescos, onde o respeito à vida e à memória transformam-se em um arremedo vingativo. “É uma espécie de um apelo a vingança, uma venda comercial de um sentimento de vingança, inclusive de venda do sofrimento das próprias vítimas. Tratam-se de fenômenos realmente complexos”, pondera Ruiz, sem analisar o caso em particular, mas a emergência de programas deste tipo.
Castor Ruiz (Foto: Ricardo Machado | IHU)
Tão polimorfa quanto a violência são as disputas de sentido em relação a própria memória, pois ela passa necessariamente pelo recorte de visibilidade que é feito. “A memória é campo político permanente de disputa. A violência que for mais criticamente exposta tem uma tendência maior de ser superada e a que é invisibilizada tende a se perpetuar”, avalia o professor.
A administração da vida, biopolítica, e da morte, tanatopolítica, atingiram níveis de cinismo realmente impressionantes. Segundo dados do Atlas da Violência, o Brasil, em 2016, registrou um recorde no número de assassinatos, com a marca de 59,4 mil pessoas. Apesar do dado estarrecedor, se os níveis de violência estiverem entre 40 mil e 50 mil eles são considerados “normais”, de acordo com a racionalidade biopolítica. “A estatística é cega não mostra o rosto das vítimas. A violência tratada como gerenciamento estatístico produz padrões de normalidade, apesar do absurdo que é”, pondera.
É aí que entra a tanatopolítica. “O peculiar do Brasil é que a maioria dos mortos tem um perfil social e étnico muito definido. A naturalização das mortes no país faz parte de uma nova ordem de tanatopolítica, o que invisibiliza a vítima e normaliza a morte. O rosto do outro, que nos olha desde seu sofrimento, joga na nossa cara o sofrimento”, frisa Castor.
A história do Brasil se mistura com a história de nossa própria violência, que começou (e continua) com a barbárie contra os indígenas, atravessando a alma e o tecido social do país, depois mais tarde com o comércio massivo de escravos. Na primeira metade do século passado a violência foi institucionalizada pelo Estado Novo, como técnica de interrogatório, mais tarde ampliada durante a Ditadura Civil-Militar, seguida pelos esquadrões da morte até chegar no fenômeno recente das milícias. Dito tudo isto, a pergunta fica: o que é violência?
“Proponho uma distinção entre agressividade e violência. Entendo que a agressividade é dirigida pelos instintos genéticos das espécies e por isso são previsíveis. No caso humano também há agressividade, mas o ser humano não está determinado por agir a partir desses instintos”, tensiona Castor. “Entre os animais e o instinto não há nenhuma distância, mas no ser humano há um hiato, uma fratura, entre um instinto e uma ação”, complementa.
A explicação anterior serviu de base para o conferencista responder à questão postulada sobre a violência. “A pulsão agressiva, não, necessariamente, precisa se traduzir em violência. Porque sem essa possibilidade não conseguimos nos desacorrentar da cultura da violência. Somos o único ser vivo que pode transformar a agressividade em violência, pois os animais não têm essa possibilidade, por isso são só agressivos. A intencionalidade explícita de dirigir a agressividade para eliminar ou atingir o Outro é própria da condição humana”, pondera.
Castor Ruiz | Foto: Ricardo Machado
A normalização e normatização da violência se dá através da cultura, entendida como um modo de ser. Construir uma cultura da paz requer romper com um certo mimetismo da violência que é passado geracionalmente e socialmente. Construir uma cultura da paz requer, sobretudo, produzir memória. “Não existe esquecimento para a violência. O esquecimento é o grande aliado do potencial mimético da violência. A amnésia é a condição para a perpetuação da violência. Toda a forma de aparente esquecimento é uma forma de ocultamento de uma força que persiste naquele que praticou a violência e que vai retornar”, provoca o pesquisador.
Na contramão da história o desafio e o paradoxo é reescrever a história para produzir memória. “A memória consegue neutralizar a potência mimética da violência. A memória contém uma potência anamnética (rememoração) que se opõe de forma eficiente a toda amnésia da violência”, explica. “A memória da barbárie avança para muito além do levantamento estatístico, que, por si só, não é suficiente. E isso pode funcionar como antídoto”, completa.
Arrancar os rebocos do muro da memória requer a paciência e a persistência dos que acreditam na transformação da cultura da violência em uma cultura mais pacifista. Revelar os tijolos da tempo é fazer memória dos processos históricos que nos separam e transformar o esquecimento em empatia, mais ou menos como desmanchar um muro para construir uma ponte.
A fala do professor Castor Bartolomé Ruiz integra a programação do evento Violências no mundo contemporâneo, interfaces, resistências e enfrentamentos.
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Os muros do esquecimento são edificados sobre os tijolos da memória - Instituto Humanitas Unisinos - IHU