09 Dezembro 2019
"Scannone observou que o feito maior da irrupção dos pobres na América Latina está cheio de potencialidades positivas para a humanidade global. Está de acordo com seus colegas em partir da práxis histórica, porém a diferença se localiza na maneira de entender esta história", escreve o teólogo espanhol Juan José Tamayo, em artigo que relembra a trajetória e legado de Juan Carlos Scannone, s.j., que faleceu em 28-11-2019.
O artigo é publicado por Religión Digital, 06-12-2019. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Em 28 de novembro de 2019, a voz cálida e serena do intelectual jesuíta Juan Carlos Scannone se silenciou, em Buenos Aires, sua cidade natal, depois de uma longa e fecunda vida dedicada ao fazer filosófico e à reflexão teológica, ambas em harmonia. Minha relação com Scannone data de quase quatro décadas. Em Conceitos Fundamentais de Pastoral (Cristiandad, Madrid), obra coletiva publicada em 1983 sob minha direção e de Casiano Floristán, lhe pedimos que desenvolvesse sobre o conceito “Teologia da Libertação” no qual estabeleceu uma tipologia da teologia da libertação em quatro tendência, que durante vários anos se tornou referência obrigatória para o estudo desta corrente teológica latino-americana:
Conheci-o pessoalmente em Madrid, em casa de Casiano Floristán, em uma reunião com Gustavo Gutiérrez, Enrique Dussel, Luis Maldonado e outros colegas latino-americanos. A última vez que nos vimos foi em 12 de agosto deste ano na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE) de Belo Horizonte, onde pronunciei uma conferência sobre “Fundamentalismos, interculturalidade e diálogo entre religiões”, que acompanhou com muito interesse e depois me felicitou com a cordialidade que lhe caracterizava. Encontrei-o em plena vitalidade intelectual. Não podia imaginar que fosse a última vez que nos víamos.
Scannone nasceu em Buenos Aires, em 1931. Obteve a licenciatura em filosofia em 1956, na Faculdade Jesuíta de Filosofia de San Miguel (San Miguel, Buenos Aires, Argentina), em Teologia em Innsbruck (Áustria) em 1963 e o doutorado em Filosofia em Munique, em 1967, com uma tese sobre o filósofo francês Maurice Blondel, que mais para frente influenciaria decisivamente o seu pensamento. Foi professor de filosofia e teologia na Universidad del Salvador (Buenos Aires) e em diferentes universidades latino-americanas e europeias, entre elas a Universidade Gregoriana. Dirigiu a prestigiosa revista Stromata. Foi membro do grupo de pesquisa filosófica “Canoa”, da Associação de Filosofia Latino-americana e Ciências Sociais, da equipe assessora dos Departamentos de “Justiça e Solidariedade”, de Cultura e Educação do Conselho Episcopal Latino-americano (CELAM) e colaborador da revista dos jesuítas La Civiltà Cattolica, de Roma.
Entre suas publicações cabe citar: Sein und Inkarnation. Zum ontologischen Hintergrund der Frühschriften Maurice Blondels (sua tese de doutorado, Friburgo-Munique, 1968); Teología de la liberación y praxis popular. Aportes críticos para una teología de la liberación (Sígueme, Salamanca, 1976, reimpressão, com prefácio de Ivan Ariel Fresia, p. 9-30, e J. C Scannone, “Autobiografía intelectual”, p. 33-54); Evangelización, cultura y teologia (Guadalupe, Buenos Aires, reimpressão, com prefácio de Marcelo Tejo, p. 9-26); Weisheit und Brefreiung. Volkstheologie in Lateinamerika, (Dusseldorf, 1992); Nuevo punto de partida de la filosofía latinoamericana (Guadalupe, Buenos Aires, 1990; reimpressão Buenos Aires, 2011 com prefácio de Guillermo Rosollino, p. 9-74); Religión y nuevo pensamiento. Hacia una filosofía de la religión para nuestro tiempo desde América Latina (Barcelona-México, 2005); Discernimiento filosófico de la acción y pasión históricas. Planteo para el mundo global desde América Latina (Anthropos, Barcelona, 2011).
Scannone é um dos intelectuais argentinos com maior projeção internacional nos campos da teologia da libertação em sua versão de “teologia do povo”, junto com Lucio Gera, e da filosofia da libertação, da qual foi um dos principais impulsionadores, junto com Enrique Dussel e outros. Encarnava à perfeição o lema de Blondel: “viver como um cristão, buscar a forma de pensar como um filósofo”. Outros acrescentam: “viver como cristão latino-americano e pensar como teólogo e pastor”.
Nunca escondeu seus condicionamentos cristãos – e inclusive inacianos, como jesuíta que era –, porém reconheceu honestamente que não obstaculizavam seu genuíno trabalho filosófico, que desenvolveu em um diálogo permanente e mutuamente fecundante entre a filosofia e a teologia latino-americanas e europeias, sempre em atitude respeitosa, porém também crítica aos processos de modernização técnico-científica, política, cultural e econômica a partir de um discernimento ético-histórico. A crítica dos elementos desumanizadores de nossa civilização não lhe impediu de reconhecer os brotos de esperança de maior humanidade que já estão germinando.
Seu principal empenho como filósofo e teólogo foi algo que, como acostumava dizer, lhe falta à cultura ocidental: reconciliar razão e vida, redescobrir a missão sapiencial da razão. Se mostrava partidário da “mestiçagem cultural” entre cultura popular sapiencial emergente e modernidade “advinda e adveniente”, exemplificado na religiosidade latino-americana atual, que resistiu aos embates do iluminismo e da secularização e alcançou a coexistência de três imaginários: o ancestral do catolicismo popular, o moderno e o pós-moderno: que deve incorporar as cosmovisões indo-americanas e afro-americanas.
O resultado não é uma identidade única e fechada, mas sim múltipla ou relacional, que favorece o diálogo inter-religioso e intercultural encaminhado para a construção de um mundo mais humano e humanizador, para além do choque de civilizações e dos fundamentalismos religiosos.
Mais que de filosofia da história, Scannone prefere falar de filosofia da ação e paixão históricas, seguindo Blondel e Paul Ricoeur, que considerava o ser humano como agente e como paciente e padecente, como fica visível no título de seu livro Discernimento filosófico da ação e paixão históricas (Anthropos, Barcelona, 2009).
No campo do discurso religioso sua contribuição mais importante é a elaboração de uma teologia latino-americana desde o lugar hermenêutico da cultura popular dos povos latino-americanos, os quais acompanho em seus processos de libertação. Scannone coincide com seus colegas teólogos da libertação no deslocamento levado a cabo na teologia latino-americana do desenvolvimento, tendência da teologia europeia da década dos sessenta do século passado, à libertação, palavra que expressa a situação do continente latino-americano, a tomada de consciência dos setores populares e as aspirações profundas dos povos latino-americanos. Tal deslocamento implica analisar a realidade da América Latina, não de uma perspectiva dos países do centro, mas sim desde sua situação de dependência estrutural.
Scannone observou que o feito maior da irrupção dos pobres na América Latina está cheio de potencialidades positivas para a humanidade global. Está de acordo com seus colegas em partir da práxis histórica, porém a diferença se localiza na maneira de entender esta história. Trata-se da práxis histórica dos povos latino-americanos ou da práxis da vanguardas politicamente conscientizadas? Da práxis da fé do povo de Deus ou da práxis histórica a secas? Ele se inclina pela primeira parte da pergunta.
Quero destacar um último aspecto da atividade filosófico-teológica de Scannone: sua relação com o papa Francisco, argentino e jesuíta como ele, primeiro de caráter discipular, já que Scannone foi seu professor e depois como assessor e inspirador da opção por povos latino-americanos que guia o pontificado de Bergoglio. Creio, não obstante, que Francisco não tenha ficado na teologia do povo, mas sim que tenha avançado rumo a uma teologia libertadora e ecológica, na qual os sujeitos a libertar são maiorias populares empobrecidas por causa do modelo econômico neoliberal e da natureza depredada pelo modelo de desenvolvimento científico-técnico da modernidade, como se demonstra nas encíclicas Evangelii Gaudium (2013) e Laudato Si’. Sobre o cuidado da Casa Comum (2015).
Já não voltaremos a escutar a voz autorizada de Scannone, nem eu poderei desfrutar do seu trato cordial. Porém nos restam suas obras no duplo sentido da palavra: seus textos cheios de profundidade e criatividade e seu compromisso com os povos latino-americanos, aos quais sua vida e pensamento estiveram a serviço.
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“Scannone desenvolveu harmonicamente a filosofia e a reflexão teológica”. Artigo de Juan José Tamayo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU