Por: André | 20 Agosto 2015
De 22 a 25 de março de 2015 aconteceu, em San Miguel, Província de Buenos Aires, Argentina, o Seminário (de uma série de três) “Uma Antropologia Trinitária desde, para e com os nossos povos”. Com o objetivo de aprofundar os temas abordados, entrevistamos o Pe. Juan Carlos Scannone SJ, um dos expositores e que vem acompanhando esta trajetória de análise e de estudo desde o começo.
Fonte: http://bit.ly/1NnoDB2 |
Embora o seminário ao qual nos referimos tenha se realizado na casa das Irmãs da Virgem Menina, a entrevista com o Pe. Scannone aconteceu em San Miguel, no Colégio Máximo, onde o cardeal Bergoglio-Papa Francisco viveu durante 18 anos e onde também o Pe. Scannone foi professor, inclusive de Jorge Bergoglio.
A entrevista é de Virginia Bonard e publicada por Religión Digital, 18-08-2015. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
Qual foi sua participação no Seminário de Antropologia Trinitária?
Eu estou participando desse seminário há três anos; este é o terceiro. O primeiro, foi em O’Higgins; o segundo, em Cochabamba, e agora, o terceiro, aqui em San Miguel. Tanto em O’Higgins como agora em San Miguel tive intervenções sobre antropologia trinitária – a primeira foi publicada no livro Antropologia trinitária para nossos povos [editado pelo CELAM] –, nas quais coube a mim situar a vida econômica dentro de uma antropologia trinitária, sobretudo, em relação com a ética. Desta vez, ao contrário, tomei o sujeito comunitário para uma antropologia do “nós”, porque me parece que a antropologia trinitária tem como sujeitos, não apenas as pessoas, mas também as comunidades. O Espírito Santo nos faz Igreja, nos faz comunidade, de tal maneira que se pode falar de uma antropologia não apenas do “eu”, ou do homem ou, como diz Levinas, do “outro homem” (ou seja, o outro), mas do “nós”, que é mais que apenas o homem ou apenas o outro homem.
No título do Seminário, as preposições têm um lugar preponderante: “Antropologia Trinitária desde, para e com os nossos povos”. A que se atribui isso?
Penso que está relacionado com o que acabei de falar. É pensado a partir da multiculturalidade e da interculturalidade na América Latina; sobretudo na reunião de Cochabamba deu-se muita ênfase nas diferentes vozes, entre as quais estão as vozes dos povos originários e afroamericanos. Uma das razões pelas quais se fala em “nossos povos” é porque não se tem em conta apenas os povos-nação (não é a mesma coisa no México do que no Brasil ou na Argentina), mas também as etnias enquanto se têm explicitamente em conta as etnias dos diversos povos originários. Por isso, fizemos uma das reuniões na Bolívia, que se reconheceu a si mesmo como um Estado pluricultural e multiétnico. Também tivemos em conta os diferentes tipos e a cultura de afroamericanos ou afrodescendentes na América Latina. Nesse sentido penso que vai o título. E está relacionado, porque tanto os povos como o Povo de Deus são “nós” e, portanto, aplica-se a eles a antropologia do “nós”, porque estou me fixando mais na linha que ilumina o Povo de Deus e na Igreja como povo no sentido do “nós”.
Este Seminário faz parte de um trabalho comum iniciado em 2013. Pode nos contar o itinerário percorrido e como foi o clima vivido?
Com relação ao itinerário, sobretudo na primeira reunião, colocou-se ênfase no método, de tal maneira que adotamos o método fenomenológico, que já tem sua importância na Teologia, por exemplo, com os trabalhos do Pe. Daniel López (1) e Piero Coda (2).
O clima que se vive nestes seminários é muito positivo, porque somos pessoas de diferentes origens: teólogos, filósofos, de diferentes países, varões e mulheres, um que provém de uma etnia indígena da Bolívia e uma descendente de afroamericanos. Conseguimos um diálogo intelectual muito importante – embora haja pessoas que possivelmente pensam diferente – e nos complementamos. A reflexão vai passando de um para o outro de maneira quase criativa e ascendente em criatividade. Nos acomodamos mutuamente criando uma equipe. O clima positivo é vivido tanto em nível cristão (fundamental, é o Espírito de Deus que está trabalhando), em nível intelectual (havendo opiniões diferentes, alinhavavam-se umas com as outras, se complementam) e também em um nível de amizade. Esperamos que o grupo possa continuar, estava planejado para se encontrar três vezes, porque é muito frutífero esse diálogo.
Que implicações na vida humana tem o fato de sermos criado à imagem e semelhança de Deus?
Somos criados à imagem e semelhança de um Deus trinitário. Já aparece a questão quando cria “varão e mulher”. A família, de alguma maneira – o pai, a mãe, os filhos –, como que é a imagem da Trindade. Deus é amor e por isso Deus é trino, Pai, Filho e Espírito Santo. O Espírito Santo é o amor do Pai e do Filho, que o Pai tem pelo Filho e por isso é pura entrega, pura relação. O Espírito Santo é quem os une e os distingue. Analogicamente, para um teólogo medieval, Ricardo de São Vítor, o Espírito Santo é o “co dilectus/coamado”. Na família não se trata de um amor egoísta varão-mulher, mas o amor dos pais se sublima no amor que ambos têm pelo filho. Há um amor oblativo, uma entrega que se coloca a serviço do filho.
Ricardo de São Vítor disse que o amante-o amado / o Pai e o Filho, o amor mesmo que é o Espírito Santo é o coamado de ambos. Isso se dá não apenas no amor da família, mas também na amizade. Marion, filósofo francês, quando fala do fenômeno erótico aplica-o ao amor de Deus, ao amor de amizade, e conta que Montaigne tinha um amigo muito amigo e há um terceiro que diz que quer participar dessa amizade. Ou seja: o tema do terceiro aparece. E também nas relações de comunidade onde há muitos terceiros. Em uma comunidade cristã, em uma capela, aparece essa presença de Deus que é amor. Por isso, Chiara Lubich fala de “Jesus no meio”. Esta presença de Cristo faz com que nos amemos uns aos outros porque existe o Espírito Santo, somos todos irmãos em nosso irmão maior que é Cristo, filho do Pai celestial. Aparece o aspecto trinitário da comunidade cristã e da Igreja em geral.
O Concílio Vaticano II, em dois de seus documentos importantes – um, a Constituição sobre a Igreja (Lumen Gentium), e o outro, sobre as missões (Ad Gentes) – começa falando primeiro da Trindade. Para falar da Igreja como comunidade e como Povo de Deus começa a falar da Trindade. Logo, para falar das missões da Igreja para fora vai fazê-lo em base à missão que o Pai dá ao Filho, e a que, por meio do Filho, dá ao Espírito Santo.
O Papa Francisco publicou este ano a Bula Misercordiae Vultus (O rosto da misericórdia), onde anunciou o Jubileu da Misericórdia. Onde vê neste texto a chave trinitária?
O próprio Francisco cita João Paulo II que tem uma encíclica Dives in Misericordia (Rico em Misericórdia) que fala do Pai (3). Embora se fale da misericórdia do Pai, esse amor do Pai misericordioso por nós manifestou-se em seu Filho, enquanto nos entregou o seu Filho que se faz homem por nós. Então, Jesus misericordioso causa uma devoção que tomou muita ênfase, sobretudo depois de Santa Faustina Kowalska.
Deus é amor e cada pessoa o é de uma maneira diferente. O Pai é amor como pai, o Filho é amor como filho e redentor nosso, que se fez homem e morreu por amor, e o Espírito é o espírito de amor. O amor misericordioso é trinitário. O amor de Deus é trinitário, mas o amor diante de quem sofre se faz misericórdia. Alguns sofrem porque estão arrependidos; outros, embora não se deem conta, vivem um inferno já na terra porque nunca aquele que está no pecado é plenamente feliz. Terá prazeres, mas não felicidade. Jesus tinha especial misericórdia pelos doentes, pelos leprosos, pelos pobres e pelos pecadores buscando que se arrependam.
Os fariseus criticavam-no porque comia com os pecadores ou se deixava lavar os pés com as lágrimas das prostitutas. Mateus deixa tudo e se arrepende e Jesus depois vai comer com os amigos de Mateus. Jesus buscava que mudassem de atitude por misericórdia.
Como é a sua relação com o Papa Francisco?
Eu o conheço há muito anos. Fui seu professor de Grego e Literatura antes que ele fosse jesuíta, no seminário menor da Arquidiocese de Buenos Aires. Ele primeiro pensar em ser padre diocesano e entrou no seminário, mas como havia estudado Química, não havia estudado Latim (4)... Estes rapazes tinham que fazer dois anos de Latim. E eu fui ao seminário para fazer o que nós chamávamos de “magistério” em um tempo em que o seminário era administrado pela Companhia de Jesus e já havia tratativas para entregá-lo ao clero arquidiocesano. Enquanto isso, a maioria dos professores eram jesuítas e alguns padres diocesanos, entre outros, o Pe. Lucio Gera, também aquele que seria o cardeal Mejía...
Bergoglio foi meu aluno de Grego Clássico e de alguns temas de Literatura Universal no segundo ano, que ele fazia como latinista. Depois ele entrou na Companhia de Jesus, ao noviciado em Córdoba. Depois eu fui para a Europa e quando voltei ele já era estudante de Teologia, e aqui, em San Miguel, moramos juntos... estive em sua primeira missa... aí descobri que uma prima minha tinha sido sua professora no primeiro grau a quem Bergoglio visitou até a morte; mesmo na época em que já era cardeal ele a visitava.
Nesta casa foi meu provincial, depois meu reitor outros seis anos, e em Roma o encontrei várias vezes.
Imaginou alguma vez que Bergoglio seria Papa?
Nem sequer imaginei que poderia chegar a ser jesuíta, bispo e depois cardeal. Eu sabia que o cardeal Quarracino gostava muito dele, quando Bergoglio era seu bispo auxiliar. Uma vez Quarracino me disse: “Você sabe qual é o bispo auxiliar preferido do clero jovem?” “Não”, lhe respondi. “Bergoglio”, me disse. Por isso quis que fosse seu sucessor, coadjutor com direito à sucessão.
Onde estava no dia 13 de março de 2013?
Estava na Fundação La Salle, na Rua Viamonte, em Buenos Aires. Eu faço parte da Amerindia argentina; nesse momento, o coordenador, o Irmão Telmo, era lassalista, e nos reuníamos na Fundação La Salle. Nesse dia havia uma reunião. Quando cheguei, já havia saído a fumaça branca. Outras pessoas na casa estavam vendo tudo pela internet. Uma das secretárias ficou de avisar quando o novo papa aparecesse na sacada. E assim foi... ouvimos o cardeal Touran dizer “Georgium Marium Bergoglium...”. Eu não esperava isso, sobretudo pela idade.
Como eu o conheço desde que era seminarista, vejo que vai crescendo, amadurecendo etapa por etapa e para melhor. Cada vez mais espiritual, mas, por outro lado, também um homem de governo, um homem que tem jogo de cintura para governar. Eu o vi (já Papa) muito bem, com muita paz, com muita alegria.
Notas:
1. O Pe. Daniel López, filósofo e teólogo jovem. Fez sua tese de doutoramento sobre Deus em Husserl, portanto a fenomenologia em nível filosófico. Quando terminou sua teologia e antes de fazer o doutorado publicou um livro sobre fenomenologia e teologia não apenas em Husserl, mas em diferentes autores pós-husserlianos, de Heidegger até Marion e Henry.
2. O Papa nomeou Coda para integrar a Comissão Teológica Internacional. Ele aplicava a fenomenologia à teologia. Em O’Higgins teve duas intervenções sobre o método fenomenológico e depois fez uma comparação entre a mística de São João da Cruz e Chiara Lubich. A mística de Chiara Lubich é atualíssima: aí aparece o tema da comunidade e do “nós”. Eu havia escrito um trabalho que foi publicado pela La Civiltà Cattolica e na Stromata sobre o sujeito comunitário da espiritualidade e da mística populares que Coda leu em sua versão em italiano. A experiência de Chiara Lubich e dos focolares ajuda a entender essa problemática.
3. João Paulo II começou com uma encíclica sobre o Filho (Redentor do Homem – Redentor Hominis), depois tem uma sobre o Pai e ainda outra sobre o Espírito Santo. E os três anos anteriores a 2000 dedicou-os, cada um, às três pessoas da Trindade.
4. Nesse tempo a missa e o breviário eram rezados em latim; além disso, todos os documentos da Igreja eram escritos em latim.
5. Virginia Bonard, autora desta entrevista, é jornalista, editora e escritora. Seu último livro é Nossa fé é revolucionária. Jorge Mario Bergoglio. Francisco. Buenos Aires: Planeta, 2013.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“O Papa Francisco tem jogo de cintura para governar”. Entrevista com Juan Carlos Scannone - Instituto Humanitas Unisinos - IHU