13 Outubro 2014
O mais recente livro do cardeal Walter Kasper, Mercy: The Essence of the Gospel and the Key to Christian Life [Misericórdia: A essência do Evangelho e a chave para a vida cristã] , traduzido para o inglês por William Madges e publicado pela Paulist Press, trabalha com a tese de que a misericórdia foi "criminosamente negligenciada" pela teologia dogmática recente, uma situação "decepcionante e até mesmo catastrófica".
A análise é de Thomas Ryan, professor de teologia e diretor do Instituto Loyola da Universidade Loyola de Nova Orleans, publicada no sítio National Catholic Reporter, 08-10-2014. A tradução é de Claudia Sbardelotto.
Essa negligência não foi universal. São João XXIII buscou "o remédio da misericórdia" sobre "o da gravidade", ao inaugurar o Concílio Vaticano II. Santo João Paulo II dedicou a sua segunda encíclica, Dives in Misericordia, a ela e canonizou Santa Faustina Kowalska, conhecida por sua imagem popular e devoção à Divina Misericórdia.
O papa atual também valoriza a misericórdia. Durante o mais recente conclave e ainda como cardeal, Jorge Bergoglio recebeu uma cópia desse livro de Kasper e comentou: "Ah, misericórdia! Esse é o nome do nosso Deus".
Em seu primeiro Angelus, o Papa Francisco anunciou, como se lê na capa: "Este livro fez-me muito bem". A misericórdia, disse Francisco, "muda o mundo ... faz o mundo menos frio e mais justo. Precisamos entender corretamente essa misericórdia de Deus", uma tarefa que esse livro consegue fazer.
Esta tradução acolhida com satisfação equilibra fidelidade ao alemão original com legibilidade na língua inglesa. Ela também coloca à disposição de um público mais amplo as posições de Kasper sobre temas - como a relação da justiça com a misericórdia - que figuraram no centro dos debates que antecederam o Sínodo Extraordinário dos Bispos sobre a família e que certamente irão surgir no próprio Sínodo.
Kasper afirma que a misericórdia tem se saído mal no discurso teológico recente por causa de sua ênfase, pelo menos nas fontes alemãs e francesas citadas, em uma avaliação metafísica de Deus em vez do registro bíblico da obra de Deus na história.
Como resultado, alguns teólogos têm tido dificuldade de entender a compaixão de Deus. Kasper chama essa negligência "uma catástrofe... em termos pastorais".
"O anúncio de um Deus que é insensível ao sofrimento é a razão pela qual Deus se tornou estrangeiro e, finalmente, irrelevante para muitos", escreve ele.
Kasper desenvolve seu argumento de forma rica e persuasiva, traçando uma trajetória que vai desde explicações filosóficas e inter-religiosas até o seu lugar na Bíblia e na teologia. Ele, então, volta-se para as implicações pessoais, eclesiais e sociais. Ele conclui com um capítulo sobre Maria como um arquétipo da misericórdia.
Esse é um livro completo, como revelam suas notas finais as quais fazem referência a acadêmicos, em sua maioria, alemães. Ele fica à vontade com os representantes da tradição filosófica e tem familiaridade com as outras religiões. Por exemplo, Kasper lembra aos leitores que, no Islã, cada uma das suras do Alcorão, com exceção de uma, começa invocando a misericórdia de Deus e que, de todos os nomes de Deus, aqueles que evocam a misericórdia de Deus são os mais utilizados.
Kasper não limita suas reflexões à teoria. Ele baseia-se em sua própria experiência pastoral como bispo. Ele destaca o domínio afetivo, citando uma oração de página inteira sobre a misericórdia escrita por Santa Faustina. Ele aborda as práticas populares, incluindo uma longa reflexão sobre a devoção ao Sagrado Coração. "No coração de Jesus, reconhecemos que Deus ... tem um coração (cor) para nós, que somos pobres (miseri), no sentido mais amplo da palavra". Deus é, portanto, "misericordioso (misericors). Desta forma, o coração de Jesus é um símbolo do amor de Deus, que se encarnou em Jesus Cristo".
Ele não foge do debate sobre a misericórdia. Por exemplo, ele cita, com aprovação, as reivindicações "ambiciosas" de Hans Urs von Balthasar sobre a salvação universal e, com ele, rejeita tanto o "otimismo barato" (expresso pela fórmula "o inferno existe, mas está vazio") e o "pessimismo que teme o inferno"; ele faz justiça à tradição bíblica ou teológica.
Ele retrata Deus como alguém que "aconselha", "corteja" e "galanteia", mas não "força" ou "domina". Nós "podemos esperar a salvação de todos, mas de fato não podemos saber se todos serão salvos. Tanto a liberdade divina quanto a liberdade humana são um mistério".
Kasper conclui essa discussão dizendo: "a misericórdia corteja cada ser humano até o fim; ela ativa toda a comunhão dos santos, em nome de todos os indivíduos, ao mesmo tempo em que considera a liberdade humana com seriedade radical. A misericórdia é a mensagem boa, reconfortante, encorajante, que nos dá esperança, na qual podemos contar em todas as situações e na qual podemos confiar e depender, tanto na vida quanto na morte. Sob o manto da misericórdia, há um lugar para todos de boa vontade".
Para ser preciso, Kasper pode parecer na defensiva ("Nós não adoramos Maria"), restrito (os parceiros de conversa em suas notas são homens europeus em sua maioria) e antropocêntrico, com pouca atenção para as implicações da misericórdia no crescente foco da criação. Além disso, o seu entusiasmo pela misericórdia pode levá-lo a encontrá-la, aparentemente, em todos os lugares e a fazer distinções tão obscuras com o amor por exemplo.
Para o ponto deste livro, ele rejeita uma "pseudomisericórdia" que enfraquece a justiça e não leva a sério a santidade e o julgamento de Deus, porque ela é impulsionada por "uma imagem banal e uma trivialização de um 'Deus-queridinho'".
Mas, mais frequentemente, ele exemplifica uma amplitude refrescante que discerne a Deus em lugares inesperados, que vão além de linhas confessionais, religiosas, políticas e filosóficas. Ele baseia-se na arte, na liturgia e na linguagem para elaborar seus argumentos.
Ao fazer isso, ele reflete a imagem de Deus que ele promove. Ele deixa de lado a inadequada divisão entre misericórdia e justiça, porque há uma amplitude da justiça de Deus que abrange a misericórdia. "A misericórdia é a própria justiça de Deus". Assim, a justiça de Deus não é punitiva, mas aquela que, com misericórdia, justifica ou faz com que o pecador (não o pecado) se endireite.
O último livro de Kasper é o trabalho de um conhecido e renomado estudioso. Ele prepara uma base sólida para que outros possam, em diferentes contextos, apoiarem-se. No entanto, é também a obra madura de alguém que cresceu durante a ascensão de Hitler ao poder, foi testemunha de grandes mudanças na Igreja, e foi um líder na promoção da unidade dos cristãos e da reconciliação com o judaísmo.
Com uma sabedoria nascida de muita experiência, Kasper não procura simplesmente informar, mas transformar e fazer isso já. Ele conclui o capítulo mais longo do livro com uma espécie de coda que não reflete um cansaço de um octogenário, mas uma urgência que a Igreja e o mundo precisam ouvir: "A experiência da misericórdia divina encoraja e obriga-nos a ser testemunhas da misericórdia no mundo ... misericórdia humana ... é a forma concreta da misericórdia divina no mundo".
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Livro de Kasper: a misericórdia foi ''criminosamente negligenciada'', o que é uma situação ''catastrófica'' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU