30 Outubro 2019
“Por que deveríamos ser responsáveis, se a técnica nos propõe um desaparecimento orgástico generalizado em uma sociedade onde esse é precisamente o ideal?”, questiona Claudio Zulian, artista, músico, escritor e cineasta italiano.
“A possibilidade de uma política na sociedade de algoritmos passa muito mais pela introdução de um franco deslocamento do gozo e uma forte negatividade, capaz de abrir brechas e criar opacidades na transparência do cálculo. Trata-se, em suma, de conseguir ser incalculáveis”, avalia Zulian.
O artigo é publicado por Público, 25-10-2019. A tradução é do Cepat.
O futuro tecnológico é inimaginável. Ou, ao menos, disto nos advertem quase todos os textos prospectivos que tentam hipóteses sobre os próximos tempos. Harari, por exemplo, em seu best-seller Homo Deus, avisa-nos: “As revoluções paralelas em infotecnologia e biotecnologia poderão reestruturar não apenas economias e sociedades, mas também nosso próprio corpo e mente”.
A técnica é apresentada nesses textos como um campo caracterizado por um desenvolvimento imparável e autônomo, cujos efeitos não podemos sequer formar uma ideia. A humanidade é sem dúvida um agente desse desenvolvimento, mas o advento da técnica é uma fatalidade, não é governável, tem razões internas que não é possível contradizer. Na melhor das hipóteses, podemos tentar canalizar para nosso proveito, mas nada mais.
No entanto, a técnica é um produto humano, não existiria se não tivesse sido criada pela humanidade. A própria palavra nos aponta: técnica deriva do grego techné, que significava “fabricar” em todas as suas acepções (por exemplo, um filho era um technon, no sentido de “fabricado” por seus pais). A técnica é, consequentemente, o campo das coisas fabricadas pelos seres humanos e as formas de fabricá-las.
Como um conjunto de objetos e modos de produzi-los, a técnica sempre foi, irremediavelmente, uma expressão da sociedade em seus diferentes momentos históricos. Lewis Mumford, em seu clássico (e esplêndido) Técnica e civilização, nos mostra, por exemplo, como as primeiras “técnicas” de produção capitalista não se basearam na invenção de novas máquinas que permitiram uma produção em massa, mas, ao contrário, no controle dos espaços e de horários de trabalho. Não houve no começo nenhuma inovação tecnológica.
Os primeiros capitalistas se limitaram a obrigar os operários a trabalhar em recintos fechados onde pudessem ser controlados (e não em suas casas onde trabalhavam por encomenda e eram recompensados por peça. Nesses recintos, as primeiras fábricas impulsionaram um controle do horário e do ritmo de trabalho). Foi somente após essa operação de controle, “gestão” (como é dito hoje) e serialização do trabalho, que a ideia de automatizar a produção começou a se desenvolver. As máquinas são fruto da organização do trabalho e não o contrário.
Ao longo do século XIX, a nova ideia de “progresso” (que, no sentido moderno, começou a se desenvolver apenas no século XVIII) incorporou o desenvolvimento tecnológico como um de seus fundamentos. É notável, além disso, que, no início, existisse quase uma sinonímia entre progresso tecnológico e progresso industrial. Em Comte, por exemplo, são equivalentes. É no âmbito nebuloso e mutável do que indicava e indica a palavra “progresso”, que a técnica começou a ser concebida como autônoma. A humanidade, desse modo, avança inevitavelmente em direção a uma melhoria em suas condições de vida. Não é uma escolha, mas um destino (e o desenvolvimento técnico é um de seus pilares).
Desde então, o progresso tem uma aura de fatalidade que reverberou tanto na cultura popular, como na filosofia. Basta que pensemos na imagem sinistra do Anjo da História de Benjamin, a quem “o vendaval empurra sem parar o futuro para o qual vira as costas, ao passo que diante dele o acúmulo de ruínas cresce em direção ao céu. Essa tempestade é o que chamamos de progresso”. Um “vendaval”, um elemento da natureza que escapa ao controle da humanidade e é, inclusive, ameaçador.
A sinonímia entre os adjetivos “técnico” e “industrial” no século XIX nos indica claramente que a ideia de progresso técnico pertence, já na origem, completamente ao âmbito capitalista. Não teria ocorrido esse desenvolvimento fantástico, se não fosse o modo historicamente particular de exploração da força de trabalho. Ao considerá-la dessa maneira abstrata e quantitativa, que Marx analisou tão detalhadamente, a porta se abriu para a mecanização generalizada e a todos os seus avatares subsequentes (como a robotização e o “algoritmo”). O corpo concreto da pessoa concreta capaz de executar uma tarefa concreta, em sua totalidade, deixou de ser o fundamento do trabalho.
No capitalismo, os corpos são intercambiáveis porque só interessam certos gestos serializados e repetidos da maneira mais precisa possível, a fim de garantir a maior produção possível. Esses foram os pressupostos que tornaram as primeiras gerações de trabalhadores, entre o último terço do século XVIII e a primeira metade do século XIX, os seres humanos mais infelizes da história da humanidade. Crianças de sete anos de idade podiam ter que trabalhar em lugares incômodos e perigosos, durante 16 horas por dia. Eram puras reservas de genérica força de trabalho, cujas pequenas extremidades eram muito apreciadas.
Ao considerar que o desenvolvimento era um destino da humanidade e que a indústria era uma expressão desse desenvolvimento, o capitalismo se naturalizava. Já não era o concreto desejo de lucro de uma elite burguesa o que fazia as fábricas se multiplicarem, mas uma lei da natureza humana. Era inconcebível, portanto, se opor a ela. Muitos discursos devotos sobre o desenvolvimento tecnológico atual continuam com essa função. O algoritmo (última reencarnação da interessada confusão sobre o progresso) é usado como uma melhoria na “gestão” e seus fundamentos técnicos como uma prova de sua neutralidade. Já sabemos, há tempo, que toda neutralidade proclamada por instâncias de poder é apenas uma tentativa de mascarar um projeto de dominação.
No entanto, nossa reflexão não pode parar aqui. Ficaria sem explicar a eficácia desse projeto e sua extensão mundial. Algo do que é propriamente humano está em jogo e foi transformado pelo capitalismo a ponto de se tornar uma questão antropológica (como intuiu brilhantemente Heidegger em seu famoso texto sobre a técnica).
O capitalismo foi antes financeiro e consumista do que industrial. A primeira “bolha” de ações explodiu na Holanda, em 5 de fevereiro de 1637. Nessa especulação, já apareceram muitos dos elementos do funcionamento atual da Bolsa: o “mercado de futuros”, por exemplo, que recebeu então o preciso e poético nome de “negócios do ar”. Por outro lado, já em 1637, a especulação se concentrou em algo efêmero, algo que durava algumas semanas, senão dias: as tulipas. Os bulbos de tulipa atingiram preços astronômicos antes de perder todo o seu valor em um dia.
A financeirização e o consumismo são, portanto, dois lados da mesma moeda. O desejo e o gozo, próprios da vida humana, se desprendem do que até esse momento os haviam sustentado (o corpo, a terra, a roupa, os ornamentos, as casas, os animais) e se tornam abstratos e absolutos graças ao dinheiro. A abstração do desejo através do dinheiro tem sua contrapartida no consumo. Como a palavra nos aponta, é algo destinado a um rápido desaparecimento, algo dedicado a nada. Arriscar tudo em uma bolha de tulipas: difícil encontrar uma imagem mais precisa do gozo proposto pelo capitalismo.
O gênio do capitalismo reside nessa capacidade de apresentar à humanidade uma certa essência de si mesma, certa verdade, e gerar um tipo particular de domínio a partir disso. Somos habitados por um desejo de quietude, de desaparecimento, de retornar ao nada do qual imaginamos que viemos. Freud chamou isso de “pulsão de morte”. Jacques Lacan o relacionou, justamente, ao gozo: aquela sensação de ausência de nós mesmos que tem no orgasmo sexual seu primeiro e mais comum exemplo, mas que pode ser rastreado em muitos outros comportamentos. O capitalismo colocou o gozo em seu centro e agenciou um “mandato para gozar”.
O desenvolvimento tecnológico moderno aconteceu inteiramente no marco do capitalismo consumista. É a sua criação e está intimamente relacionado com o seu núcleo. Dispor de algo ou de alguém tecnicamente é uma forma de consumo. É reduzi-lo ao que serve para um fim e depois se descarta, é reduzi-lo a nada. Já vimos o que aconteceu com os pobres operários do século XIX: não eram pessoas, eram força de trabalho (mãos pequenas, braços fortes, olhos com boa visão. No capitalismo, é possível ser consumidor, mas também consumido).
A cultura popular deu um bom relato desse medo de ser consumido pela técnica. Do monstro Frankenstein até o supercomputador HAL, a máquina tem sido vista como um perigo para os seres humanos. Com sua habitual perspicácia, Ridley Scott, em Alien, introduziu um elemento fundamental que estava ausente nas especulações da ficção científica: por trás do desenvolvimento técnico, há uma corporação, um poder industrial (para o qual até os androides prestam contas).
A ideia de ser consumido pela técnica não produz apenas medo, mas também exerce um poderoso fascínio. Gozar é desaparecer e a técnica promete isso (doce e cuidadosamente, nos garante que irá se responsabilizar pelo gozo com muito mais precisão, assim como nasce dele e é orientado para ele). Assim, o objetivo final da máquina do gozo não pode ser outro a não ser fazer os humanos desaparecerem. Não surpreende que o fascínio e até o anseio pela técnica pós-humana se difundam por toda a sociedade consumista e habitem a fantasia do futuro.
Essa relação entre técnica e capitalismo consumista costuma ser pouco visível. Mesmo em textos que mantêm uma forte tensão crítica ao desenvolvimento técnico e as débeis fantasias transumanistas, como a de Eric Sadin, em La realidad aumentada, se pode ler: “A condição antropológica entrelaça, de maneira crescente, organismos humanos e artificiais ao introduzir um novo termo na configuração intersubjetiva constituído pelo binarismo homem/mulher e descobre uma terceira presença determinante e incorpórea. Essa fricção entre os gêneros não remete, de fato, a estruturas de conflito ou de dominação...”.
Ao não levar em conta a dimensão política (ou melhor, biopolítica) do desenvolvimento técnico, qualquer apelação à crítica, como a que o próprio Sadin faz no final de seu livro, precisa se sustentar em genéricas chamadas a uma responsabilidade cujos fundamentos não se vislumbram. Por que deveríamos ser responsáveis, se a técnica nos propõe um desaparecimento orgástico generalizado em uma sociedade onde esse é precisamente o ideal?
A possibilidade de uma política na sociedade de algoritmos passa muito mais pela introdução de um franco deslocamento do gozo e uma forte negatividade, capaz de abrir brechas e criar opacidades na transparência do cálculo. Trata-se, em suma, de conseguir ser incalculáveis.
Nota da IHU On-Line: O Instituto Humanitas Unisinos - IHU promove o seu XIX Simpósio Internacional. Homo Digitalis. A escalada da algoritmização da vida, a ser realizado nos dias 19 a 21 de outubro de 2020, na Unisinos Campus Porto Alegre. Confira abaixo as presenças já confirmadas:
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Política do Algoritmo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU