17 Setembro 2019
[...] Atualmente, existe um forte grupo que se opõe à Igreja de Francisco. Leigos, teólogos, bispos e cardeais, que gostariam da demissão do papa ou, pelo menos, que ele logo desaparecesse da cena da Igreja na espera um novo Conclave ao qual caberia mudar o curso atual da Igreja.
O artigo é de Victor Codina, padre jesuíta e teólogo, em artigo publicado por Settimana News*, 13-09-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eu não quero fazer uma investigação histórico-sociológica aqui, nem conduzir um programa televisivo estilo bang-bang, contrapondo mocinhos e bandidos. Então, prefiro não nomear os opositores que estão “depenando” vivo Francisco. Em vez disso, gostaria de discutir o contexto teológico dessa oposição sistemática a Francisco, para entender, afinal, o porquê dessa controvérsia.
As críticas endereçadas a Francisco têm duas dimensões: uma teológica e outra de natureza mais sócio-política; embora, como veremos mais adiante, essas duas linhas frequentemente convirjam entre si.
A crítica teológica baseia-se na convicção de que Francisco não seja um teólogo, mas vem do sul do globo, do fim do mundo. Essa falta de profissionalismo teológico, em forte contraste com a perspicácia de João Paulo II e, obviamente, de Bento XVI, seria a explicação daquelas que os seus opositores consideram serem as imprecisões ou, inclusive, os erros doutrinários de Francisco.
De acordo com essa visão, a falta de competência teológica de Francisco explicaria a perigosa posição sobre a misericórdia de Deus em sua bula Misericordiae Vultus de 2015, sua tendência filo-comunista de apoiar o povo e os movimentos populares e sua noção de piedade popular como lugar teológico em sua exortação apostólica Evangelii Gaudium de 2013.
Sua inadequação no campo da teologia moral se manifesta ao abrir as portas de acesso aos sacramentos da penitência e da eucaristia, em alguns casos (após um discernimento pessoal e eclesial), a católicos separados e recasados - de acordo com a exortação pós-sínodo Amoris Laetitia de 2016.
Sua encíclica Laudato Si', sempre de 2016, "sobre o cuidado de nossa casa comum", revela uma falta de competência científica e ecológica. E sua ênfase excessiva sobre a misericórdia divina em Misericordiae Vultus é escandalosa porque diminui a graça e a cruz de Jesus.
Diante de tais acusações, gostaria de recordar a afirmação clássica de São Tomás, que distingue entre a sede magisterial, própria dos teólogos e dos professores universitários, e a sede pastoral atribuída aos bispos e pastores da Igreja. O cardeal J.H. Newman retomou essa tradição, afirmando que, embora às vezes possam ocorrer tensões entre essas duas sedes, no final, há convergência entre elas.
Essa distinção se aplica a Francisco. Embora ele tenha estudado e ensinado teologia pastoral em San Miguel de Buenos Aires como Jorge Mario Bergoglio, agora suas palavras pertencem à sede pastoral do bispo de Roma.
Ele não aspira a cumprir a tarefa que lhe foi atribuída como teólogo, mas como pastor. Como foi dito com certo humor sobre ele, é preciso passar do Bergoglio da história para Francisco da fé. O que realmente incomoda seus detratores é que sua teologia deriva da vida real: da realidade da injustiça, pobreza e destruição da natureza; e da realidade do clericalismo eclesial.
Tudo bem em abraçar crianças e pessoas doentes; mas torna-se totalmente insuportável quando ele vai a Lampedusa, quando circula entre refugiados e migrantes em campos de refugiados como o de Lesbos. Incomoda as pessoas quando diz que não deveríamos construir muros contra os refugiados, mas pontes de diálogo e hospitalidade. Incomoda quando, seguindo os passos de João XXIII, ele diz que a Igreja deve ser pobre e existir para os pobres; que os pastores devem cheirar como as ovelhas; que a Igreja deve se mover e sair de si mesma para alcançar as periferias do mundo; e incomoda muito quando diz que os pobres são um lugar teológico, uma fonte de revelação.
Incomoda quando afirma que o clericalismo é a lepra da Igreja e quando enumera as quatorze tentações da Cúria do Vaticano – que variam da pretensão de ser indispensáveis e necessários à gana por riqueza, até viver vidas duplas e sofrer de um Alzheimer espiritual.
E a irritação aumenta quando ele acrescenta que essas também são tentações das dioceses, das paróquias e das comunidades religiosas. Incomoda ouvir que a Igreja deve ser concebida como uma pirâmide invertida, com os laicos em cima e o papa e os bispos embaixo; como incomoda ouvi-lo dizer que a Igreja é um poliedro e sinodal. Isso significa que todos nós temos que percorrer o mesmo caminho juntos, que devemos ouvir uns aos outros e dialogar entre nós [...].
Incomoda aos grupos conservadores o fato de Francisco agradecer a Gustavo Gutiérrez, Leonardo Boff, Jon Sobrino e José María Castillo por sua contribuição teológica, anulando a suspensão a divinis de Miguel d'Escoto e de Padre Ernesto Cardenal. Ficaram furiosos quando Hans Küng escreveu para ele reafirmando a necessidade de repensar a infalibilidade e Francisco respondeu chamando-o de "caro coirmão" e dizendo que levaria em consideração os comentários de Küng e estava disposto a abrir um diálogo sobre a infalibilidade.
E muitos ficam incomodados pelo fato que Francisco tenha canonizado São Óscar Romero, bispo salvadorenho mártir, rotulado por muitos como comunista e útil fantoche nas mãos da esquerda - depois que sua causa tinha permanecido trancada por anos.
Incomoda o fato de que Francisco diga "quem sou eu para julgar?". Incomoda quando diz que a Igreja é feminina e que, se as mulheres não forem ouvidas, a Igreja se torna mais pobre e facciosa. [...]
Obviamente, o problema não é que Francisco não seja um teólogo, mas sim que sua teologia seja pastoral. Francisco parte do dogma para o kerygma, dos princípios teóricos ao discernimento e à mistagogia pastoral. E a sua teologia não é colonialista, mas vem do sul global do mundo para incomodar o norte.
Passando para o confronto crítico com aqueles que acusam Francisco de ser um terceiro-mundista e um comunista, devemos afirmar que sua mensagem está em perfeita continuidade com a tradição profético-bíblica e com a doutrina social da Igreja.
O que incomoda é sua clarividência profética: Francisco diz não a uma economia da exclusão e da desigualdade; não a uma economia que mata e faz vítimas; não a uma economia sem rosto humano; não a um sistema social e econômico injusto que nos aprisiona em estruturas sociais injustas; não à globalização da indiferença; não à idolatria do dinheiro; não ao dinheiro que governa em vez de servir; não à desigualdade que produz violência; não a quem tenta se esconder por trás de Deus para justificar a violência; não à insensibilidade social que nos anestesia diante do sofrimento dos outros; não às armas e à indústria militar; não ao tráfico humano; não a toda forma de morte provocada.
Francisco nada mais faz que cumprir o mandamento "não matar", defendendo o valor da vida humana do começo ao fim, e repropõe hoje a pergunta de Deus a Caim "onde está o teu irmão?".
Sobre Francisco também incomoda a sua crítica ao paradigma antropocêntrico e tecnocrático, que destrói a natureza, polui o meio ambiente, corrói a biodiversidade e exclui os pobres e as populações indígenas de uma vida humana digna. As multinacionais não apreciam quando ele critica as empresas de desmatamento, extração de petróleo, hidrelétricas, mineração, que destroem o meio ambiente, danificam as populações indígenas daquelas terras e ameaçam o futuro de nossa casa comum. Incômodas também são as suas críticas aos líderes políticos que são incapazes de tomar decisões corajosas.
O anúncio do iminente Sínodo sobre a Amazônia (outubro de 2019), que amplificará a necessidade de proteger o meio ambiente e salvar as populações indígenas das áreas amazônicas do genocídio, já começou a ser muito incômodo. Alguns altos prelados da Igreja disseram que o instrumentum laboris é herético e panteísta, negando, entre outras coisas, a necessidade de salvação em Cristo.
Outros comentaristas se concentraram exclusivamente na proposta de ordenar homens indígenas casados para celebrar a Eucaristia nas partes mais remotas da Amazônia, mas não disseram absolutamente nada sobre a denúncia profética que esse documento preparatório faz contra a destruição causada pelo extrativismo realizada na Amazônia. Como nada disseram sobre a questão da pobreza e da exclusão das populações indígenas, que certamente nunca foram tão ameaçados como agora.
Sem dúvida, há convergências entre as críticas teológicas e aquelas sociopolíticas, com grupos eclesiásticos reacionários alinhados com poderosos grupos políticos e econômicos, especialmente no norte do mundo.
A oposição a Francisco é uma oposição ao Vaticano II e à reforma evangélica da Igreja desejada por João XXIII [...].
Francisco ainda tem muito a fazer para chegar a uma reforma evangélica da Igreja. Não sabemos qual será sua trajetória futura nem sabemos o que acontecerá no próximo Conclave.
Os papas vêm e vão, mas o Senhor Jesus está sempre presente e anima a Igreja até o fim dos tempos. É o mesmo Jesus que era visto como um glutão e um beberrão, um amigo de pecadores e prostitutas, dos possuídos por demônios, dos loucos - aquele Jesus subversivo e blasfemo. Nós acreditamos que o Espírito do Senhor, que desceu sobre a Igreja nascente no dia de Pentecostes, nunca abandonará a Igreja e, a longo prazo, não permitirá o triunfo do pecado sobre a santidade.
Enquanto isso, como sempre pede Francisco, desde que apareceu pela primeira vez na sacada de São Pedro como bispo de Roma até hoje, oremos ao Senhor por ele. Oremos para que ele não perca a esperança e que possa fortalecer a fé de seus irmãos e irmãs. E se não pudermos orar, ou formos não crentes, ainda assim vamos enviar a ele nossos melhores pensamentos, votos e energia - como Francisco diz "me mande buena onda".
*Extraído da tradução do Settimana News do artigo em inglês Why do some Catholics oppose Pope Francis?, publicado em 13 de setembro na revista online dos jesuítas estadunidenses America.
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Francisco, um papa que incomoda. Artigo de Victor Codina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU