11 Setembro 2019
O papa tem muito menos controle sobre o seu rebanho do que a maioria das pessoas imagina. Sempre foi assim: nenhum líder na história, muito menos alguém responsável por um bilhão de pessoas em todo o mundo, foi capaz de reivindicar uma obediência absoluta.
O comentário é do historiador estadunidense James Chappel, professor da Duke University, em artigo publicado por La Croix International, 07-09-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Isso é especialmente verdade, porém, em relação ao Papa Francisco e especialmente verdade nos Estados Unidos. Aqui, a negligência em relação às questões-padrão das missivas papais coincide com um esforço bem financiado para conquistar a esfera pública católica em nome do conservadorismo clerical e da economia libertária.
Ao longo dos séculos, os papas tiveram que lidar com todos os tipos de desafios ao seu governo, incluindo militares. E, embora alguns deles tenham sido devastadores para a Igreja, talvez nenhum desafio foi tão corrosivo quanto esse para o mundo que a Igreja chama de lar.
Uma das mais proeminentes dessas organizações conservadoras é o Instituto Napa, fundado e financiado por um advogado e empresário milionário chamado Timothy Busch.
Seu 9º congresso de verão ocorreu em julho, e sua lista de 17 conferencistas contribui para uma leitura interessante. Dezesseis deles eram brancos; dezesseis deles eram homens.
Lindsey Graham e Scott Walker, que não são católicos, mas certamente são conservadores, falaram, assim como o cardeal Raymond Burke, líder da resistência conservadora a Francisco dentro da Igreja.
De todos os políticos e lideranças da Igreja que participaram do congresso, no entanto, George Weigel se destaca. Ele está filiado a um think tank, e não a um partido político, e provavelmente é o conferencista com a melhor reputação fora dos círculos católicos conservadores.
Seus livros são publicados pelas principais editoras, e não pelas operações cristãs que publicam obras como “The Homosexual Agenda”, de Alan Sears, para citar outro dos luminares que subiram ao palco do encontro do Napa.
Weigel é mais conhecido pela sua biografia de 1999 do Papa João Paulo II, que é claramente hagiográfica, mas também é um estudo competente que se esforça para situar essa figura-maior-do-que-a-vida nos muitos contextos históricos que ele percorreu.
Weigel importa porque o catolicismo conservador que ele representa importa. Especialmente na Suprema Corte dos EUA, mas também em outros lugares, essa estranha mistura católica reúne o conservadorismo de gênero e a economia libertária de um modo que parece estranho aos Evangelhos, mas que se sente perfeitamente à vontade na direita contemporânea.
Daí a importância do novo livro de Weigel, “The Irony of Modern Catholic History” [A ironia da história católica moderna], que representa a sua primeira tentativa de dar uma explicação completa de como a Igreja Católica evoluiu nos últimos séculos. O livro de Weigel afirma ser escrito para não católicos e não conservadores.
Novo livro de George Weigel (Foto: Divulgação)
Ele se baseia em historiadores seculares, inclusive eu, e mantém as lamentações em um nível mínimo possível. Tudo é agradavelmente escrito e tem um ar de plausibilidade. E é isso que o torna tão perigoso.
“A ironia da história católica moderna” pretende ser uma obra acadêmica de história, por isso vou tratá-la nesses termos, antes de me voltar para aquela que me parece ser a sua verdadeira intenção, que é fornecer uma história utilizável pela marca “Napa” de catolicismo conservador.
Como uma obra da história popular, o livro é razoavelmente bem-sucedido e, às vezes, até empolgante. Ele é, essencialmente, um relato polêmico da Igreja Católica desde a Revolução Francesa até o presente, focado no papado e no último meio século (o Vaticano II é alcançado perto da metade do caminho).
A tese básica é de que a Igreja Católica e a “modernidade” (não claramente definida) estiveram em desacordo em boa parte dos séculos XIX e XX. Os católicos suspeitavam da ciência secular e do Estado secular, enquanto os não católicos eram cautelosos em relação à Igreja como uma estufa de dogma e intolerância.
Embora houvesse algumas lideranças e teólogos da Igreja que mantinham um diálogo mais construtivo entre o catolicismo e o mundo secular, eles eram a minoria, e a intransigência de anticlericais violentos tornava o tempo prematuro para eles.
Desde os anos 1960, no entanto, isso mudou. Especialmente durante o pontificado de João Paulo II, o catolicismo e o mundo se abriram um ao outro, de uma maneira que Weigel considera saudável ou, pelo menos, potencialmente saudável para os dois.
Esse argumento básico é inquestionável, senão até um pouco banal. A “modernidade” é definida de um modo tão vago que é desafiador apresentar o argumento de Weigel de uma forma que seja aceitável para os historiadores; como não há nenhum argumento causal claro em ação, não há muito em que se agarrar.
Em um nível básico, porém, ele está claramente certo sobre o amplo movimento da história.
Não existem muitos livros que traçam a história da Igreja desde o início do período moderno até o presente, ou que integram as histórias norte-americanas e latino-americanas às histórias bem trilhadas da Europa. “A ironia da história católica moderna”, em certo nível, é exatamente esse livro, e não é ruim.
Antes de avançarmos para os verdadeiros propósitos de Weigel, vale a pena ressaltar que essa claramente não é uma inovadora história da Igreja. A história católica tem sido um campo em expansão nos últimos anos, também e especialmente para os não católicos, e, embora Weigel às vezes os cite, ele não lida seriamente com as suas descobertas.
Mais do que a maioria dos historiadores, ele acredita que a história do papado é essencialmente a mesma coisa que a história da Igreja.
E, mais do que a maioria dos historiadores, ele não está interessado na longa herança católica do antissemitismo; ele é risivelmente superficial sobre a profundidade da atração católica à ditadura e ao fascismo nos anos 1930 e 1940, que é abordada em apenas alguns parágrafos.
Seu róseo relato de Pio XI, que reinou de 1922 a 1939, absolutamente não lida com as conclusões de “O papa e Mussolini”, de David Kertzer, um livro muito menos caridoso que, tendo conquistado o Prêmio Pulitzer de 2014, não é exatamente obscuro.
Um grande trabalho nas últimas décadas foi feito para descentrar os homens europeus na história católica, mas isso não gera nenhuma ondulação no livro de Weigel. Até onde eu sei, a única mulher mencionada pelo nome nesse longo livro é Maria. As mulheres no resumo são mencionadas uma vez como fundadoras de escolas e uma vez como um público ao qual um papa se dirigiu.
Como uma tese puramente histórica sobre a Igreja Católica, então, o argumento de Weigel não é especialmente objetável, embora seus pecados de omissão sejam pouco menos do que perdoáveis.
Porém, essa não é o modo mais interessante para se refletir sobre esse livro, que, afinal, não é escrito por um historiador formado e não se destina a um público de historiadores.
O verdadeiro propósito de Weigel é mais moral do que histórico. A imprecisão e a banalidade de suas reivindicações históricas combinam-se com reivindicações nítidas e controversas sobre o estado do mundo hoje.
Comecemos listando aqueles que Weigel vê como os graves perigos que enfrentamos em geral, antes de nos voltarmos para os seus pensamentos mais específicos sobre os perigos enfrentados pela Igreja Católica.
Como veremos, em ambos os casos, a posição de Weigel é tão bizarra a ponto de ser absurda. Embora isso normalmente condenaria um livro à merecida obscuridade, estes não são tempos normais. O bizarro e o absurdo têm se tornado cada vez mais comuns entre os conservadores, dentro e fora da Igreja.
Em geral, Weigel acredita que o nosso momento atual, que ele chama de “pós-modernidade”, define-se pela praga do individualismo desenfreado, que tem componentes intelectuais e morais.
Intelectualmente, ele acredita que, especialmente em nossas universidades, abandonamos um compromisso com a racionalidade e a verdade, substituindo esse compromisso com um “vale-tudo” relativista, no qual apenas as reivindicações da nossa identidade subjetiva são importantes.
Moralmente, ele acredita que abandonamos quaisquer reivindicações de verdade objetiva, seguindo nossos impulsos sexuais e consumistas aonde quer que eles nos levem.
Essas são inverdades tão familiares que é fácil passar por cima delas sem perceber o quanto são ultrajantes. Weigel não cita nenhuma evidência sobre nenhuma delas, o que é surpreendente para alguém aparentemente tão comprometido com a investigação racional.
Na verdade, ele está apresentando um estereótipo requentado dos anos 1960, que pode ter refletido com precisão alguns bolsões de uma subcultura estudantil hedonista da época, mas que dificilmente o faz agora.
Ele não mostra nenhuma evidência de familiaridade real com o mundo fora das salas refrigeradas do circuito de palestras, no qual as pessoas estão obviamente e às vezes heroicamente comprometidas em viver uma vida ética, de várias maneiras.
Eu tentei comparar o retrato de Weigel com as pessoas que conheço do meu próprio local de trabalho e da minha própria igreja: pessoas que tentam desesperadamente pagar os boletos médicos e proporcionar uma educação decente para seus filhos em meio a condições que tornam tudo isso quase impossível.
Essas pessoas não habitam o “vale-tudo” relativista da imaginação conservadora. Weigel, como tantos outros, está lidando com a caricatura da Fox News, e não com a realidade observável.
Weigel não está interessado nas muitas maneiras pelas quais as pessoas seculares e religiosas hoje constroem vidas moralmente significativas para si mesmas. E ele não está interessado no papel das universidades nesse processo.
Um tema menor, porém persistente, no livro é a afirmação de que as universidades são fornecedoras de relativismo e não ensinam mais as pessoas a apreender a verdade.
Esse tipo de afirmação tornou-se comum, especialmente na direita: tão comum que não se sente nenhuma necessidade de fornecer um pingo de evidência, mesmo que isso legitime um ataque histórico mundial contra o nosso sistema educacional.
Ninguém que passa o tempo em salas de aula universitárias pode concordar com isso, e Weigel não demonstra nenhuma familiaridade com aquilo que realmente acontece dentro delas.
Ele afirma, absurdamente, que os departamentos de filosofia de Harvard e da Sorbonne abriram mão da verdade e da razão. Dado que esses departamentos estão cheios de pessoas que ensinam lógica e filosofia da mente, somos perdoados por imaginar quem, na verdade, abriu mão da racionalidade.
A má-fé transparente do diagnóstico de Weigel é agravada por aquilo que ele escolhe deixar de fora.
As questões que consomem a maioria de nós – desigualdade, catástrofe climática, o ressurgimento de campos de concentração em solo americano etc. – simplesmente não merecem discussão para ele.
Ele afirma sem evidências que o capitalismo contemporâneo está fazendo um trabalho maravilhoso ao enfrentar a desigualdade nacional, e que o empobrecimento econômico no exterior pode estar relacionado com a corrupção dos governos do Terceiro Mundo. Ele não diz nada sobre as mudanças climáticas nem sobre a crise dos refugiados.
Alguns leitores podem pensar que isso é injusto: Weigel está escrevendo como católico para um público católico, então talvez seja pedir demais para ele abandonar esse quadro.
Porém, é precisamente esse o perigo do livro. Ele ressuscita uma forma antiquada e estreita de catolicismo, em um momento histórico em que o futuro da Igreja está muito em disputa. Muitos intelectuais católicos discordariam quase completamente de Weigel, embora isso dificilmente seja mencionado no texto.
O Papa Francisco, por exemplo, transformou as mudanças climáticas e o cuidado pelos refugiados nos pilares do seu próprio compromisso com a “modernidade”, incluindo cientistas seculares e refugiados não cristãos.
Esses pareceriam ser tópicos razoáveis a serem considerados em um livro supostamente dedicado ao encontro da Igreja com o mundo moderno – no entanto, eles praticamente não são mencionados.
O próprio diagnóstico de Francisco sobre as mudanças climáticas como uma externalidade negativa do capitalismo que Weigel defende é, ao mesmo tempo, transparentemente correta e transparentemente incompatível com o sistema de Weigel.
Em algumas partes do livro, Weigel é admiravelmente franco sobre o seu catolicismo à la carte, mesmo que seja difícil concordar com as suas denúncias de que nós, modernos, acreditamos que podemos construir a nossa própria moralidade.
Essa abordagem altamente seletiva marca o seu trabalho há muito tempo e resultou em algumas das passagens mais estranhas da sua biografia sobre João Paulo II.
Essencialmente, sempre que o papa escrevia ou falava em termos compatíveis com o libertarianismo econômico, ele era julgado como correto; mas, quando não o fazia, ele era julgado como deficitário, e os leitores eram aconselhados a não dar muita atenção para isso.
Esse mesmo modelo é seguido ainda mais radicalmente no livro atual.
Em seu trabalho anterior, Weigel criticou algumas encíclicas papais em favor de outras. Essa é uma tradição católica consagrada pelo tempo: as encíclicas não são necessariamente dogmáticas e realmente constituem pouco mais do que uma carta do papa a seus bispos. Aqui, porém, Weigel mira a Gaudium et spes.
Como afirma a constituição pastoral do Vaticano II, essa é uma questão significativamente maior, e é impressionante como Weigel repele livremente as descobertas anticapitalistas do texto conciliar como características perversas do seu próprio tempo, em vez de um componente da doutrina católica que deve sacudir a consciência libertária.
Isso nos leva àquele que pode ser o aspecto mais chocante do livro: o diagnóstico de Weigel sobre os dois perigos mais graves que a Igreja enfrenta. O primeiro deles é o “galicanismo”, com o qual ele se refere à independência dos sínodos nacionais em relação à orientação papal.
Ele está particularmente preocupado com algumas decisões que os bispos alemães ameaçaram fazer sobre ética sexual e celibato sacerdotal; a ameaça, na opinião dele, é que isso poderia prenunciar uma fratura da Igreja em várias partes – o temido fantasma do anglicanismo, frequentemente invocado pela direita católica.
O segundo deles é o “historicismo”, com qual ele se refere à visão de que os ensinamentos morais, especificamente sexuais e conjugais, deveriam evoluir ao longo do tempo, em vez de serem moldados pela luz universal da razão e da Escritura.
O leitor cético pode se perguntar se algum deles realmente constitui uma grande ameaça. A independência dos sínodos nacionais aumentou e diminuiu com o tempo, e não há nenhum indício de que a Igreja alemã esteja prestes a lançar uma nova Reforma.
Quanto ao “historicismo”, é curioso que Weigel fique tão afetado por isso, pois todo o foco do seu livro parece ser de que a doutrina da Igreja evoluiu e deve evoluir. Pode-se contestar esta ou aquela forma de evolução, mas parece estranho postular que o mero fato da mudança seja um perigo.
Mas até mesmo o leitor compreensivo pode não se convencer de que esses são os dois perigos mais graves diante da Igreja. Converse com qualquer jovem católico hoje (pelo menos fora do Instituto Napa), e eles lhe dirão que a crise dos abusos sexuais está abalando a sua fé.
Recentemente, eu participei de um congresso de jovens católicos e, entre as conferências principais, que mal abordavam o assunto, eles não falavam de outra coisa.
Weigel, para seu crédito, aborda o assunto nas páginas finais do livro. E, embora os resultados ofereçam uma leitura dolorosa, eles também são esclarecedores quanto ao que há de errado no catolicismo do Napa.
Qualquer análise do escândalo dos abusos sexuais, especialmente aquela que pretenda vir de uma perspectiva cristã, deve começar com a experiência e o sofrimento das vítimas. Em todas as páginas de Weigel sobre o tema, ele não tem nada a dizer sobre elas ou para elas, além de apontar para o fato de que eram “inocentes frequentemente vulneráveis”.
Mesmo isso só aparece várias páginas depois: desde o início, sua preocupação é mais com a Igreja como vítima. Ele se refere à crise, por exemplo, como uma “ferida autoinfligida”, em vez de uma ferida infligida contra um grupo de pessoas vulneráveis por outro grupo de pessoas poderosas.
Essa abordagem ao problema o leva à perversa alegação de que a crise foi “um momento de purificação necessária” para a Igreja.
Sua principal preocupação no seu relato da crise é atirar pedras. Trata-se de algo valioso, embora secundário – a questão é para onde elas são apontadas.
Essas pedras devem ter como alvo, como afirmaram muitos estudiosos e historiadores católicos, uma antiga cultura do clericalismo e da nobreza forçada na Igreja. Weigel rejeita essa abordagem, talvez porque ela tende a manchar o legado de João Paulo II.
Em vez disso, ele atribui a maior parte da culpa à “modernidade tardia”, cuja cultura da confusão e da licenciosidade sexuais era tão poderosa que afetou até a Igreja. E a culpa pelo encobrimento é jogada, de forma conveniente e implausível, sobre o Papa Francisco.
A cobertura abreviada e distorcida do escândalo dos abusos sexuais representa o verdadeiro ápice do livro – o ponto em que se torna óbvio que Weigel perdeu o contato com o núcleo vivo da Igreja na sua ascensão ao panteão do Napa. Ele afirma o desejo de recuperar o núcleo evangélico da missão católica, convertendo os modernos rebeldes de volta ao rebanho católico.
Presumivelmente, tal missão envolveria conhecer o mundo como ele é: principalmente jovem e principalmente feminino; com muitos pobres ou encarcerados; com muitos que procuram algum tipo de refúgio dos horrores do capitalismo tardio, mas que se preocupam justificadamente, depois da crise dos abusos sexuais, que a Igreja não possa prover um.
Essa missão, como fez o próprio Cristo, começa pelos oprimidos. Cristo foi ao encontro do coletor de impostos e da prostituta, enquanto os seguidores de hoje podem começar com o prisioneiro, ou o refugiado, ou mesmo a vítima de agressão sexual.
Weigel está tão desinteressado nessa tarefa que nos perguntamos se a evangelização é realmente o seu objetivo.
Ele parece mais interessado em fornecer uma narrativa histórica plausível para um tipo de cristianismo estreito que possui um enorme poder político, em detrimento dos pobres e dos abandonados.
Ele parece mais interessado, também, em apresentar um rosto afável e em oferecer um aparato acadêmico para um projeto reacionário que, independentemente do que pressagia para a Igreja, é desastroso para o mundo comum que compartilhamos. Weigel quer argumentar que a Igreja é necessária para salvar a modernidade de si mesma.
No entanto, ele propõe uma visão da Igreja Católica que celebra e amplifica os mesmos impulsos que estão colocando a todos nós em perigo. Pode ser que precisemos de salvação, e pode ser até que a Igreja Católica esteja pronta para esse trabalho. Mas não desse jeito.
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Fora da realidade: o novo livro de George Weigel e as ''ironias'' da história católica moderna - Instituto Humanitas Unisinos - IHU