23 Junho 2019
Chocado com os relatos das atrocidades contra nativos amazônicos no auge do boom da borracha do início do século XX, a primeira encíclica do Papa Pio X em 1912 foi intitulada Lacrimabili statu indorum (“Sobre o deplorável estado dos índios”). Pio X pediu que a Igreja fizesse uso de todos os meios “para libertar os índios da escravidão de Satanás e da dos homens perversos, onde a necessidade que os sufoca for maior”, e acrescentou a esperança de que, já que os missionários há muito tempo trabalhavam para espalhar o Evangelho na região, “por fim, germine uma grande messe e ótimos frutos de civilidade cristã”.
O comentário é de Austen Ivereigh, publicado por Commonweal, 18-06-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Pio X pode ter ficado um pouco perplexo com uma parte da linguagem do documento de trabalho para o Sínodo da Amazônia de outubro, com suas advertências ao “neoextrativismo” e ao “paradigma tecnocrático” e seu apelo à “inculturação” e à “interculturalidade”. Mas ele certamente veria nele a “grande messe” que ele esperava: um esforço maciço da Igreja Católica na região para repensar e fomentar sua presença pastoral lá, primeiro ouvindo atentamente as necessidades e desejos dos povos amazônicos, e, segundo, estando disposto a “reconfigurar” a si mesma, até ao ponto de ordenar homens idosos em áreas remotas, a fim de possibilitar uma “Igreja samaritana”, uma “Igreja com um rosto amazônico” que é do povo e está com ele, que está ao seu lado para defender suas vidas e suas terras.
Embora as manchetes após o lançamento do documento tenham se concentrado, inevitavelmente, na possibilidade de que o “Vaticano permitirá padres casados na Amazônia”, a história maior é a releitura eclesiológica que permite que tal possibilidade seja levada em consideração, uma releitura que propositalmente leva a ouvir a periferia.
O Instrumentum laboris do Sínodo, “Amazônia: novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral” [disponível aqui, em português], baseia-se em um enorme exercício de escuta realizado pela rede pan-amazônica da Igreja, a Repam, após o anúncio do sínodo por parte do Papa Francisco ainda em 2017 e sua visita à Amazônia peruana em janeiro de 2018.
Desde então, de acordo com o secretário-executivo da Repam, Mauricio López, houve pelo menos 260 “momentos de escuta” com comunidades espalhadas pelas nove nações (e sete Conferências Episcopais) que incluem a bacia amazônica dentro de suas fronteiras.
Em uma recente visita a Londres, López explicou o que a consulta envolveu: “assembleias territoriais”, reuniões entre 80 e 200 pessoas de 150 nacionalidades indígenas; pesquisas e discussões sobre 40 “fóruns temáticos”; e inúmeros encontros com líderes e agentes de pastoral. López, um leigo mexicano que mora no Equador, avalia que, ao todo, cerca de 64 mil pessoas foram consultadas, incluindo quase todos os bispos da Amazônia. Pode ser apenas uma fração do número total de indígenas na região – entre 3 e 20 milhões, dependendo da sua definição –, mas, para os padrões de consulta da Igreja Católica, é algo impressionante.
De qualquer forma, o fato de haver mais escuta só reforça as mensagens recebidas em alto e bom som. O que o povo de Deus na Amazônia quer e precisa é a Igreja: a sua presença, seus sacramentos, seu testemunho profético. Ela precisa que a Igreja esteja presente 24 horas por dia, sete dias por semana, e que não passe apenas uma vez por ano. Em uma época de secularização, quando os católicos estão indo na direção das portas de saída, essa é uma mensagem que não pode ser ignorada.
A escassez dos sacramentos é um problema com o qual os bispos têm lidado há muito tempo. “Trata-se da presença da Igreja”, disse-me López, “mas também de como manter o ministério da Palavra e da Eucaristia juntos. Sem a Eucaristia, o que nos diferencia dos evangélicos?”.
O Instrumentum laboris refere-se apenas ao “vertiginoso crescimento das recentes Igrejas evangélicas de origem pentecostal, especialmente nas periferias”, sem mais comentários, mas essa é uma das grandes preocupações subjacentes do Sínodo: que o povo da Amazônia se afaste da Igreja porque ela não está presente. Quando não há sacramentos para acompanhar os nascimentos, os casamentos e as mortes, quando não há Confissão nem Eucaristia, o que é a Igreja Católica? Não é de se admirar que os padres que visitam as comunidades uma vez por ano muitas vezes as encontram “convertidas” pelos pentecostais.
Esperem-se muitas dessas histórias dos bispos amazônicos no Sínodo de outubro, junto com testemunhos vívidos da devastadora destruição de vidas, de meios de subsistência e do ecossistema do qual eles dependem. A presença da Igreja é uma questão de vida ou morte: quem mais, globalmente, pode se levantar pelos povos amazônicos?
No entanto, as enormes distâncias envolvidas e a falta de infraestrutura significam que esse “problema pastoral grave”, como afirma o Instrumentum, “não se pode resolver unicamente com instrumentos mecânicos e tecnológicos”. Também não haverá um súbito afluxo de clérigos de fora, mesmo que isso seja compatível com a inculturação.
O documento, que foi preparado em espanhol, fala da passagem de uma “pastoral de visita” para uma “pastoral de presença”. Mas como? A resposta é: dando à luz aquilo que já está crescendo no ventre da Amazônia: uma Igreja indígena.
Essa “Igreja com um rosto amazônico” exigirá, diz o Instrumentum laboris, “voltar a configurar a Igreja local em todas as suas expressões: ministérios, liturgia, sacramentos, teologia e serviços sociais”. Na liturgia, isso significa a dança e a música locais, e vestes “em comunhão com a sociedade e com a comunidade”. Significa reconhecer e validar a religiosidade popular (devoções, santuários, peregrinações e assim por diante). Mas significa principalmente olhar de novo para aquilo que já está lá.
O povo de Deus já está presente e ativo localmente 24 horas por dia, sete dias por semana; já há uma “pastoral de presença”, uma Igreja que “acompanha e está presente através de ministros provenientes de seus próprios habitantes”. Não é apenas uma questão de criar novos ministérios (especialmente para as mulheres), diz o Instrumentum, mas sim de “reavaliar o que já está sendo feito”.
O documento pede que o sínodo observe que já existem fortes estruturas de liderança entre os povos amazônicos, junto com altos níveis de colaboração e participação (“e por isso não se aceita o clericalismo em suas diferentes formas de manifestação”, observa o documento laconicamente). Em vez de privar as comunidades da Eucaristia, “os critérios para selecionar e preparar os ministros autorizados para celebrá-la” devem ser alterados. As vocações nativas precisam ser encorajadas. Os tipos de “ministério oficial” que podem ser exercidos pela mulher devem ser identificados, “tendo em consideração o papel central que hoje ela desempenha na Igreja amazônica”, diz o instrumento, que pede à Igreja que “recupere o espaço que Jesus deu às mulheres”.
A liderança dos leigos, “sujeitos da Igreja em saída”, precisa ser reconhecida, e uma “formação integral” precisa ser oferecida para que eles possam ser “animadores de comunidades com credibilidade e corresponsabilidade”. E, embora se reconheça que o celibato é um dom para a Igreja, o Instrumentum “pede-se que [...] se estude a possibilidade da ordenação sacerdotal de pessoas idosas, de preferência indígenas, respeitadas e reconhecidas por sua comunidade, mesmo que já tenham uma família constituída e estável”.
Não são dados mais detalhes, mas é o suficiente. O Papa Francisco já falou sobre as ideias do bispo emérito Fritz Lobinger, da África do Sul, que há muito tempo propõe que faculdades especiais de ordenação sejam dadas aos viri probati, os idosos locais, apenas para esse lugar. Esta seria uma versão um tanto reduzida da ordenação: dos três munera (dons ou poderes) conferidos pelo sacerdócio, apenas o munus santificandi, o poder de santificar, e não os poderes de governar (regendi) ou ensinar (docendi), seria concedido pelo bispo a esses idosos locais.
Mas o novo documento não faz referência a Lobinger, evita o termo viri probati e deixa a questão em aberto. Isso permite que os bispos brasileiros proponham as ideias do teólogo Antônio José de Almeida, cujo livro “Procuram-se padres” [disponível aqui], aprofunda essa questão a partir de todos os ângulos: teológico, espiritual, pastoral e canônico.
Os detalhes precisarão ser esclarecidos no fim, mas Francisco não quer abrir um debate teológico sobre o celibato sacerdotal do tipo que os bispos alemães estão ansiosos para ter. Isso provavelmente tiraria o foco dos povos da Amazônia e criaria outra disputa para os liberais e conservadores do Norte rico. O cardeal Cláudio Hummes, arcebispo emérito de São Paulo, que será o relator do sínodo de outubro, já lamentou que “atribui-se muita importância e prioridade ao perfil do ministro ordenado, antepondo-o à comunidade que deve recebê-lo”. Deveria ser o contrário, diz ele: “A comunidade não é para o seu ministro, mas é o ministro pela sua comunidade”.
As manchetes já estão cheias de comentários sobre a reforma do sacerdócio, mas o papa já deixou claro, no voo de volta do Panamá em janeiro, que o celibato sacerdotal, em si mesmo, não está em discussão. O que se proporia no sínodo é uma faculdade especial concedida naqueles que ele chamou de “lugares muito distantes”, como as Ilhas do Pacífico ou a Amazônia.
Em algum momento antes do sínodo, o cardeal Walter Kasper estará se reunindo com outros especialistas para preparar uma espécie de documento teológico para o sínodo, que pode ou não ser divulgado. Desse modo, o sínodo pode evitar se atolar na questão abstrata do celibato sacerdotal e manter o foco nos próprios povos amazônicos, enquanto eles enfrentam múltiplas ameaças: o assassinato de suas lideranças, o desmatamento, o tráfico de drogas, a contaminação da água e os ataques aos seus modos de vida.
No entanto, há pouca dúvida de que, se o sínodo chegar a um consenso tranquilo em relação à proposta de ordenar os anciãos a fim de promover o acesso regular aos sacramentos – o que é muito provável –, Francisco não recusará. Como ele deixou claro em seu documento do ano passado sobre o processo sinodal, Episcopalis communio, ele verá isso como o Espírito Santo apontando o caminho a seguir – pelo menos para periferias remotas como a Amazônia.
E depois disso? Isso levanta a fascinante questão de como o centro se relacionará com a periferia no sínodo. Francisco disse à equipe da Repam que prepara o sínodo que leve em mente três prioridades. Eles devem manter seu foco na Amazônia e em suas necessidades concretas, olhando para a região com um olhar de fé. Eles devem permitir que a periferia modele o centro, mas sem se tornar o centro. E eles devem estar abertos às coisas novas que o Espírito está tentando dizer à Igreja.
Por definição, ter um sínodo na Amazônia é transformar uma periferia – um lugar de pobreza e vulnerabilidade terríveis, o quintal da América Latina – em um centro, mesmo que apenas o centro das atenções e mesmo que apenas temporariamente. A Amazônia é um território, e não uma região: já houve sínodos anteriores sobre regiões (o Oriente Médio, a África e assim por diante), mas esta é a primeira vez que um território é destacado desse modo.
Os bispos desse território serão o principal órgão com direito a voto no sínodo, junto com um grupo muito menor de representantes das regiões episcopais do mundo (Europa, Ásia etc.), junto além de algumas autoridades da Cúria Romana. Os outros serão auditores sem direito a voto e especialistas convidados, incluindo representantes das comunidades indígenas.
Os bispos da Amazônia e seus povos, em outras palavras, terão não apenas um veículo para trazer mudanças para a sua área, mas também uma plataforma universal diante do olhar da mídia universal. Durante três semanas, o mundo ouvirá diretamente o coração da Amazônia, e a Igreja do centro rico terá uma aula magna sobre ecologia integral. Eles vão ouvir, nas palavras do povo colombiano Guaviare citado no Instrumentum, que “a terra tem sangue e está sangrando, as multinacionais cortaram as veias da nossa Mãe Terra”.
Os católicos de todo o mundo ficarão sabendo que a Amazônia não é apenas uma área geográfica, mas também um lócus teológico, o lugar onde o mundo enfrenta uma encruzilhada entre a tecnocracia e a ecologia integral. Eles verão como os povos amazônicos estão presos entre as poderosas indústrias extrativistas, por um lado, e um conservacionismo ecológico bien-pensant que os ignora, por outro. Eles verão como os católicos da Amazônia esperam que a Igreja use a sua influência e as suas redes para protegê-los de projetos internacionais de “desenvolvimento” e de oficiais locais corruptos. Talvez eles verão, como crê o povo de Deus da floresta tropical, que o sínodo é um kairós, um momento que prova que o Senhor ouviu o seu clamor, assim como, uma vez, ouviu o clamor de Israel no Egito.
O sínodo terá um enfoque resoluto na Amazônia, mas, se sua visão de reforma não tiver repercussões para o restante da Igreja, então, diz López, uma importante oportunidade terá sido desperdiçada – uma oportunidade para mostrar como as periferias da Igreja podem moldar o seu centro. Mas parece improvável que o Papa Francisco deixe isso acontecer.
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O que esperar do Sínodo da Amazônia em outubro. Artigo de Austen Ivereigh - Instituto Humanitas Unisinos - IHU