Compreender a economia como um conjunto de regras de econometria e de cálculos que permitem alcançar um resultado quantitativo é insuficiente quando se trata de resolver crises econômicas que têm implicações sociais. Entendê-la e operá-la deste modo “é uma tentativa de retirar os conteúdos social, político e humano da economia, como se ela fosse um campo à parte do conjunto das Ciências Sociais e do conjunto das Ciências Humanas”, afirma o economista Paulo Kliass na entrevista a seguir, concedida por telefone para a IHU On-Line.
Membro da Associação Brasileira de Economistas pela Democracia, Kliass argumenta que a intervenção estatal para garantir o desenvolvimento é a alternativa que deveria ser perseguida pelo Brasil neste momento. “As sugestões para reverter essa questão são feitas a partir de uma dimensão essencial, que é a do desenvolvimento. Trata-se da ideia de que não basta só a economia crescer; é preciso dar elementos de qualidade para o crescimento para fazer com que os frutos do crescimento econômico sejam compartilhados por uma parcela maior da população e para que a qualidade de vida das famílias também tenha um ganho”, pontua.
Segundo ele, nos países desenvolvidos têm se difundido a ideia de que o Estado deve gastar em momentos de crise. “Começa a se praticar aquilo que os desenvolvimentistas, os chamados keynesianos e os economistas de esquerda de várias orientações, sempre falaram”. O Brasil, lamenta, apesar da mania de importar os modismos dos países centrais, não adotou essa iniciativa. “O sistema financeiro no Brasil está ganhando tanto dinheiro com a política do austericídio, que não houve espaço para adotar essa nova moda”. Entretanto, defende, “no caso que estamos vivendo, ao contrário de ter um respeito quase ‘religioso’ ao determinante, por exemplo, da Lei de Responsabilidade Fiscal ou da chamada PEC do Fim do Mundo — Emenda Constitucional 95 —, deveríamos flexibilizá-las, ainda que isso signifique o aumento do endividamento num primeiro momento, porque lá na frente, com a retomada do crescimento econômico, o Estado volta a ter arrecadação, o emprego volta a normalizar, as pessoas passam a recolher tributos, voltam a consumir e a roda da economia volta a funcionar”.
Kliass sugere ainda que é preciso colocar em prática o Plano Nacional de Desenvolvimento, estabelecido na Constituição de 88. “Está passada a hora de recuperarmos essa dimensão. Quando se fala em desenvolvimento, está claro que esse não é um processo em que simplesmente as leis e os mercados vão atuar, de jeito nenhum, porque a lógica do capital é de curto prazo e de maximização de rentabilidade; ele não está preocupado com a qualidade das pessoas ou com o futuro do país. Por isso é necessário que o Estado tenha instrumentos para pensar, primeiro, a relativização desse rendimento extraordinário de curto prazo e a questão da sustentabilidade, isto é, criar um desenvolvimento que tenha suas dimensões econômica, social e ambiental”, argumenta.
Paulo Kliass (Foto: Filipe Calmon - ANESP)
Paulo Kliass é graduado em Administração Pública pela Fundação Getulio Vargas – SP, mestre em Economia pela Universidade de São Paulo - USP e doutor em Economia pela Université de Paris 10, e especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental. Atualmente está lotado na Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia - Diest do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea.
IHU On-Line — O senhor critica o fato de muitos economistas analisarem a situação econômica apenas a partir da economia e não da economia política. Por que, na sua avaliação, uma análise estritamente econômica não é suficiente para compreender a situação econômica do país?
Paulo Kliass — Não sou eu quem faz essa distinção. Pensadores “clássicos da economia”, como Adam Smith, David Ricardo e Karl Marx, pensaram isso há 200, 300 anos. Eles tratavam de um campo de conhecimento que em todas as línguas era conhecido como economia política, mas num determinado momento da história do pensamento econômico, principalmente em meados do século XX, as tradições inglesa e americana mudaram a denominação. Assim, o que era conhecido como Political economy passou a ser conhecido como economics, em inglês. Foi retirado o adjetivo “política” da economia e, dessa forma, se firmou o campo do conhecimento denominado “economia”.
Isso não acontece de uma maneira gratuita. Na verdade, é uma tentativa de retirar os conteúdos social, político e humano da economia, como se ela fosse um campo à parte do conjunto das Ciências Sociais e do conjunto das Ciências Humanas — essa foi uma operação aparentemente muito bem-sucedida. Aqueles que como eu e uma série de outros professores, pensadores e economistas, tentam recuperar essa tradição histórica importante, defendem que a economia não é uma ciência exata; a economia tem uma natureza de ciência social e de ciência humana. Claro que é um campo específico de trabalho, mas ela não pode perder essa outra dimensão e ser pensada apenas como uma planilha, como um conjunto de regras de econometria e de cálculo que sempre, necessariamente, vai chegar a um resultado quantitativo objetivo; de jeito nenhum. Por isso a minha insistência de recuperar essa dimensão histórica que esse campo do conhecimento sempre teve.
IHU On-Line — Quais são os ganhos de analisar a situação econômica a partir da perspectiva da economia política?
Paulo Kliass — Um dos principais ganhos, além da questão filosófica de como encarar o fenômeno econômico, é a possibilidade de fazer uma discussão concreta sobre o que estamos passando no Brasil nas últimas décadas. Existe uma ideia de que há uma única resposta econômica para uma questão colocada em determinado momento. Por exemplo, o Brasil está passando por uma crise fiscal e se diz que só existe uma única saída para essa crise porque a economia é uma ciência quantitativa, é uma ciência que não pode se sujeitar às “impurezas” do campo da política e das outras ciências sociais. Temos que ser muito rigorosos com essa visão ortodoxa do tratamento da questão econômica.
As pessoas também dizem que o Banco Central tem que ser “independente” porque ele não pode ser “contaminado” pela política. Isso é uma loucura, porque está se criando um novo poder além dos três poderes, o qual comandaria a economia. O que significa dizer que o Banco Central não pode ser contaminado pela política. É como se ele tivesse uma aura de neutralidade e de imparcialidade, e que pessoas competentes e que estivessem à frente do Banco Central iriam tratar as questões estritamente de forma econômica. Porém, isso não existe. O Banco Central é uma instituição subordinada ao Ministério da Fazenda — agora ao Ministério da Economia — e seu presidente não foi eleito. Ele está subordinado a um poder da República, que é o Poder Executivo. O presidente da República foi eleito para comandar um conjunto de políticas públicas, entre elas a política econômica. Então, não tem sentido falar em “contaminação pela política”.
Outro ganho é debater a reforma da Previdência. Na visão da economia, não importa se grande parte da população de baixa renda depende do benefício previdenciário para sobreviver, porque existe um problema fiscal que não suporta essa política pública importante. Com relação ao salário mínimo, a mesma coisa. Os defensores dessa visão estrita de economia afirmam que não podemos fazer uma lei de revalorização do salário mínimo como estava valendo na época do ex-presidente Lula, porque o nosso orçamento não comporta. Sempre que há alguma demanda social, política ou humana dos setores que não pertencem à elite, se reivindica a neutralidade da economia como campo do conhecimento.
Agora, o fato de que os presidentes do Banco Central, em geral, são banqueiros, não é considerado um problema político, porque eles são “competentes”, como se eles fossem desenvolver uma política econômica e uma política monetária à frente do Banco Central que fosse neutra; não existe isso. Eles vão defender os interesses que respondem àquilo que eles defendem na sociedade, que no caso é o interesse do sistema financeiro.
IHU On-Line — O senhor tem criticado as propostas de ajuste fiscal do governo como sendo a única saída para reorganizar as contas públicas e a economia. Que alternativas existem ao ajuste?
Paulo Kliass — Ninguém em sã consciência pode dizer que a situação econômica que a sociedade brasileira atravessa, do ponto de vista fiscal e monetário, é tranquila, de maneira nenhuma. Em 2004, 2005, 2006, o quadro era totalmente diferente.
Primeiro ponto: estamos passando por uma grave crise; estamos há dois anos em uma profunda recessão. Desde 2015 o PIB praticamente ficou no chão e está “andando de lado”, porque cresceu muito pouco. O problema é que a partir de 2008 e 2009, quando ocorre a grande crise econômica e financeira no coração do sistema econômico mundial do capitalismo nos Estados Unidos e na União Europeia, aconteceu uma grande reviravolta na forma como a própria doutrina econômica conservadora encarou o fenômeno econômico. Até então o mundo todo estava sendo regido — os principais países, os ministérios das finanças, o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional - FMI e a União Europeia — por aquilo que era conhecido como o Consenso de Washington que, entre outros aspectos, reforçava a ideia do rigor fiscal, da austeridade absoluta na conduta das contas públicas, e qualquer problema de endividamento ou déficit era considerado uma loucura.
A partir de 2009, quando o próprio sistema capitalista foi colocado em xeque, a resposta foi pragmática, isto é, o próprio sistema percebeu que se continuasse fiel a esse “doutrinarismo” neoliberal, o sistema iria falir. O que aconteceu foi isto: precisaram fazer um “cavalo de pau” com o carro andando e promoveram uma mudança importante. Com isso, os Estados Unidos entraram gastando, o Estado norte-americano acabou gerando dispêndios enormes, e a mesma coisa aconteceu no Japão, na União Europeia e nos países desenvolvidos do mundo capitalista. Isso teve que ter uma reposta do ponto de vista ideológico e doutrinário, e esse processo ainda está em crescimento.
Nos países desenvolvidos está sendo criado um campo que tem sido chamado de MMT, sigla em inglês de Modern Monetary Theory (Teoria Monetária Moderna), que é uma tentativa — preservando o próprio sistema capitalista, não é nada revolucionário ou socialista — de dizer que o Estado tem que gastar na crise. No fundo essa é a essência desse pensamento. Ou seja, começa a se praticar aquilo que os desenvolvimentistas, os chamados keynesianos e os economistas de esquerda de várias orientações, sempre falaram.
O problema é que o Brasil, apesar de nossa grande mania de importar os modismos dos países centrais, não importou essa nova moda. O sistema financeiro no Brasil está ganhando tanto dinheiro com a política do austericídio, que não houve espaço para adotar essa nova moda. Mais recentemente, alguns economistas do campo conservador estão tentando trazer essa autocrítica para o Brasil, como, por exemplo, o economista André Lara Resende. Eles dizem: não se preocupem tanto com a questão fiscal no sentido do endividamento porque, no momento da crise, ao contrário do que propõem os austericidas, o Estado tem que sair gastando, pois a única forma de a crise ser superada é com a retomada do crescimento econômico geral da economia. E, num momento de crise aguda como o que estamos vivendo, se o Estado não dá sinalização, se não é protagonista na recuperação da atividade econômica, a economia continua na inércia da estagnação.
Concretamente no caso que estamos vivendo, ao contrário de ter um respeito quase “religioso” ao determinante, por exemplo, da Lei de Responsabilidade Fiscal ou da chamada PEC do Fim do Mundo — Emenda Constitucional 95 —, deveríamos flexibilizá-las, ainda que isso signifique o aumento do endividamento num primeiro momento, porque lá na frente, com a retomada do crescimento econômico, o Estado volta a ter arrecadação, o emprego volta a normalizar, as pessoas passam a recolher tributos, voltam a consumir e a roda da economia volta a funcionar.
IHU On-Line — A Carta de Princípios da Associação Brasileira de Economistas pela Democracia chama atenção para a “reafirmação do papel histórico dos economistas brasileiros no processo de desenvolvimento nacional”. Visões econômicas de quais economistas brasileiros poderiam ser recuperadas neste momento como uma alternativa para enfrentar a crise que o país vive?
Paulo Kliass — Estamos tendo várias sinalizações nos últimos anos da necessidade de haver uma mudança dessa visão mais tacanha a respeito do fenômeno econômico. Nesse sentido, a constituição da Associação Brasileira de Economistas pela Democracia cumpre dois papéis: de um lado, acompanhar o movimento de outras categorias no sentido de mostrar que o país está passando por um momento muito crítico da sua história, uma vez que a questão democrática está sendo colocada em xeque, e, de outro, apresentar sugestões para reverter esse quadro. As sugestões para reverter essa questão são feitas a partir de uma dimensão essencial, que é a do desenvolvimento. Trata-se da ideia de que não basta só a economia crescer; é preciso dar elementos de qualidade para o crescimento para fazer com que os frutos do crescimento econômico sejam compartilhados por uma parcela maior da população e para que a qualidade de vida das famílias também tenha um ganho.
Isso não tem nada de novo: estamos tentando recuperar 30, 40 anos que foram perdidos pela adoção de uma agenda neoliberal, recuperando algo que já esteve presente na nossa sociedade, que é justamente a ideia do desenvolvimento. Há pensadores históricos importantes no Brasil, como Celso Furtado, mas também Ignácio Rangel e Rômulo Almeida, que tinham uma visão de país e da contribuição que a economia poderia oferecer para esse sonho de país dos anos 1950 e 1960. Infelizmente, eles foram barrados pela ditadura de 1964, e quando conseguimos superar o processo do regime militar, isso veio num momento em que o mundo todo estava caminhando na direção contrária, na direção do Estado mínimo, da negação das políticas públicas, da “supremacia absoluta” do mercado e das livres forças de oferta e de demanda. Em 1988 a Constituinte falou da necessidade de um Plano Nacional de Desenvolvimento e lá se vão 31 anos sem que isso nunca tenha sido implementado, junto com outras propostas, como, por exemplo, o imposto sobre grandes fortunas.
Está passada a hora de recuperarmos essa dimensão. Quando se fala em desenvolvimento, está claro que esse não é um processo em que simplesmente as leis e os mercados vão atuar, de jeito nenhum, porque a lógica do capital é de curto prazo e de maximização de rentabilidade; ele não está preocupado com a qualidade das pessoas ou com o futuro do país. Por isso é necessário que o Estado tenha instrumentos para pensar, primeiro, a relativização desse rendimento extraordinário de curto prazo e a questão da sustentabilidade, isto é, criar um desenvolvimento que tenha suas dimensões econômica, social e ambiental.
IHU On-Line — Por que a reforma da Previdência não garante a sustentabilidade fiscal, tal como afirma o manifesto dos economistas?
Paulo Kliass — Agora que começaram os trabalhos da Comissão Especial da Câmara, os economistas, especialistas e técnicos que sempre denunciaram a falácia do argumento da reforma, estão tendo a oportunidade de esclarecer para os parlamentares e para o conjunto da sociedade a nossa visão. Isso já aconteceu na época do Temer, quando participamos de um movimento amplo coordenado pelas centrais sindicais, pelo Dieese, pela associação nacional dos fiscais da previdência, em que demonstrávamos exatamente isto: o argumento de que é necessária uma reforma da Previdência porque, do contrário, o país quebra, não para em pé. As despesas que o governo federal vai ter para 2020, 2021, 2022 e 2023 já estão dadas, quer dizer, as pessoas já estão aposentadas, já estão recebendo seus benefícios. Estão tentando criar um clima de catástrofe que não corresponde com a realidade, porque a reforma não vai afetar em nada as despesas para o ano que vem e os próximos. O que está se pretendendo com isso é criar um clima para destruir o atual regime de previdência social, o Regime Geral de Previdência Social - RGPS, porque esse regime, até 2015, antes do início da recessão, estava equilibrado. Mas o sistema previdenciário é constituído à base de receitas e despesas. Como a receita depende do emprego, porque é uma contribuição que o trabalhador retira da sua folha de salário e a empresa retira da folha de pagamento, quando se tem a recessão, drasticamente cai o número de contribuições recolhidas, e se passa a ter aquilo que não é um déficit estrutural, mas um déficit de necessidade de financiamento. Mas na hora em que a economia voltar a crescer, de alguma maneira haverá recuperação das receitas e o sistema voltará a se equilibrar.
Isso significa que não precisa fazer nenhuma mudança? De maneira nenhuma. Os sistemas previdenciários do mundo são sistemas permanentemente alterados, seja pela questão econômica, de buscar novas fontes de financiamento que não apenas o salário, seja por função demográfica, mas isso não se resolve com uma emenda constitucional como esta que foca apenas no corte de despesas, que foca no corte de despesa da população mais carente e que, ao contrário do que o governo diz, deixa os privilegiados de fora. Os verdadeiros privilegiados na sociedade, o 1% do topo da pirâmide, não dependem da aposentadoria do INSS e nem são funcionários públicos. Eles são pessoas que têm um nível de renda e de patrimônio elevadíssimo e que vão garantir a sua aposentadoria por outros meios, como o mercado financeiro, ações, patrimônio etc. Esses que nunca contribuíram para o nosso sistema previdenciário têm que começar a contribuir.
IHU On-Line — Quais são os problemas que a Associação Brasileira de Economistas pela Democracia vê no regime de capitalização da previdência defendido pelo governo? O manifesto dos economistas menciona a possibilidade de esse regime gerar impactos sociais e fiscais. Pode nos dar alguns exemplos de que impactos seriam esses?
Paulo Kliass — O regime de capitalização não é uma criação genial do Paulo Guedes, pelo contrário, ele participou da equipe que há 45 anos foi para o Chile depois do golpe contra o presidente Salvador Allende. Nessa ocasião foi feito o primeiro experimento de romper da economia política para a economia. Os alunos e doutorandos da Universidade de Chicago foram chamados pelos militares para resolver os problemas econômicos no Chile. Uma das primeiras medidas adotadas foi acabar com o regime da seguridade social e substituí-lo por um regime de capitalização. Algumas décadas depois — e esse é o problema da seguridade, porque se sentem os efeitos geracionalmente — o sistema faliu. Os bancos ganharam muito dinheiro no momento da capitalização, mas quando chegou a fase de pagar as pensões, nada havia sido pensado. Recentemente, como a população idosa está passando por problemas graves de índices de pobreza, o Estado foi chamado a reestatizar o sistema de capitalização e a transformá-lo de novo num sistema de previdência social. A Organização Internacional do Trabalho - OIT fez um estudo analisando os trinta países que entraram nessa onda neoliberal nas últimas décadas e 18 deles já voltaram atrás, inclusive países como Rússia e outros que eram socialistas até a época da queda do Muro de Berlim.
No Brasil, a história já está prevista desta maneira: para destruir, como é a pretensão, o Regime Geral da Previdência Social, se apresenta a capitalização como alternativa. Então, se deixa de ter a previdência social como uma política pública, como um direito de cidadania, e ela passa a ser mais uma mercadoria do mercado financista. Daqui a 35 anos o seu João vai chegar no banco e dizer que não era aquilo que tinha negociado. Mas 35 anos atrás era o ano de 1984 e de lá para cá foram criados quantos planos de estabilização econômica e tiveram quantas mudanças na moeda? O Plano Cruzado, Cruzado II, Plano Collor, Plano Bresser, e em cada um deles a população foi perdedora e o sistema financeiro se apropriou desses planos. Quem tivesse começado a poupar há 35 anos teria visto seu dinheiro virar pó.
A capitalização é uma panaceia: ela não garante que a renda vitalícia vai se constituir e permite que o sistema financeiro lance mão, passe a ser “proprietário” da gestão do fundo bilionário da previdência social, que faz a gestão de aproximadamente 700 bilhões por ano. Imagine o quanto isso não vai se reverter em lucro para as instituições financeiras caso a medida seja aprovada.
IHU On-Line — Qual é a proposta da Associação Brasileira de Economistas pela Democracia para combater as desigualdades sociais no país e garantir o estado de bem-estar social? Que reformas ou políticas defendem nesse sentido? Muitos propõem uma reforma tributária como fundamental. O senhor também aposta nessa linha?
Paulo Kliass — Para dar conta da tarefa de reorganizar a sociedade, reduzir o nível de desigualdade, retomar o crescimento econômico, é preciso objetivamente ter recursos para desenvolver políticas públicas de inclusão e redução das desigualdades. Temos alguns exemplos de como isso foi possível: na medida em que retoma o crescimento e o Estado passa a recolher mais tributos, tem como criar mecanismos de redistribuição na área de políticas de educação, saúde, saneamento, meio ambiente. É necessário realmente que se faça uma reforma tributária para que setores da sociedade que nunca contribuíram do ponto de vista da arrecadação de tributos, possam contribuir.
O nosso sistema tributário é o que no economês se chama de sistema regressivo. Isso significa que a população de baixa renda, que menos recebe, contribui muito mais do que a população do topo da pirâmide. Uma das medidas seria promover uma readaptação do sistema tributário para fazer essa mudança. O tributo que uma pessoa paga quando compra um litro de leite depende de se o cidadão ganha um salário por mês, se está desempregado, ou se é um acionista do banco Itaú e tem uma renda anual de um milhão de reais. Se você acende a luz da sua casa, você paga um tributo de energia elétrica. O preço do quilowatt independe da renda. A ideia é que não se tribute apenas a produção e o consumo, mas se passe a tributar mais a renda e o patrimônio. No Brasil, lucros e dividendos são isentos de imposto — FHC introduziu essa medida no final da década de 1990. Os três maiores bancos privados tiveram um lucro de quase 30 bilhões no ano passado e esse valor se transforma em lucros e dividendos para os donos e acionistas, que não pagam um centavo. Ainda no plano do simbólico, pessoas que têm carro pagam IPVA, mas quem tem jatinho, iates e helicópteros, não paga impostos. Não é isso que vai resolver o problema tributário, mas dá a dimensão de como é possível fazer mais justiça tributária. Hoje existem mecanismos de georreferenciamento para saber quem é proprietário agrícola e cobrar imposto sobre a propriedade, mas não se cobra.
O último estudo que fiz há alguns anos mostrava que o IPTU da cidade de São Paulo equivalia a seis vezes o valor total do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural - ITR que era cobrado do Brasil inteiro. É preciso fazer um conjunto de medidas que dê condições para o Estado brasileiro ter recursos para desenvolver uma política de desenvolvimento com inclusão. O mais importante não é a disputa tributária, mas a retomada do crescimento, porque enquanto não tivermos a economia crescendo, não conseguiremos ter recursos para desenvolver essa política.
IHU On-Line — Teria sido mais pertinente iniciar as reformas com uma reforma tributária?
Paulo Kliass — Essa é uma questão que a oposição vai ter que se colocar, porque uma reforma tributária significa, entre outras coisas, uma reforma constitucional, mas não só, pois algumas mudanças podem ser feitas através de lei ordinária. Mas será que o Congresso estaria disposto, na sua composição, a fazer uma reforma tributária que caminhasse nessa linha? O que percebemos é que a maioria dos parlamentares acha que é preciso fazer uma reforma tributária para reduzir a carga tributária, porque existe essa falácia de que a carga tributária é excessiva no Brasil, o que é uma ilusão. O Brasil não tem uma carga tributária mais excessiva do que a média dos países desenvolvidos da OCDE. Fazer uma reforma tributária para reduzir o nível da carga é o pior dos mundos.
É preciso ter um processo de conscientização da população e o estabelecimento de um debate nacional mais amplo para mostrar que a reforma tributária não deve ser feita para diminuir a carga, mas para promover justiça tributária. Não cabe, em uma situação como a que estamos vivendo, promover redução de imposto. Ao contrário, precisamos redistribuir mecanismos tributários para diminuir a carga sobre consumo e produção que incide sobre a população de baixa renda, e fazer com que os setores que têm mais recursos, renda e patrimônio contribuam para a nossa sociedade.
Temos uma tradição histórica, social e cultural das nossas elites, que nunca deram nenhuma contribuição para a sociedade e para o Estado, e que sempre se beneficiaram junto às esferas de poder para conseguir isenção, desoneração e para não serem punidas por causa da sonegação. Todos os anos o Ministério da Fazenda promove uma coisa chamada Refis, que é o perdão da sonegação. Ou seja, a Receita Federal financia em até 15 anos dívidas bilionárias das grandes empresas, mas o problema fiscal é o seu João que recebe o Benefício de Prestação Continuada - BPC de um salário mínimo mensal; a coisa está virada de cabeça para baixo.
IHU On-Line — A carta também menciona a necessidade de combater as desigualdades regionais. Que tipo de desenvolvimento é possível para o Brasil, considerando suas diferenças e peculiaridades regionais?
Paulo Kliass — Essa é uma questão essencial. Estamos voltando 60 anos, às décadas de 1950 e 1960, que foram os primeiros momentos em que a questão regional passou a ganhar relevo em nosso debate. Ali foi criada, por exemplo, a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste - Sudene, a Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia - Sudan e a Superintendência do Desenvolvimento do Centro-Oeste - Sudeco. Ao longo dos tempos, logo depois das formulações do Celso Furtado, aconteceu o golpe militar e, com isso, uma deturpação completa da orientação do desenvolvimento regional. A ideia inicial era ter recursos, um fundo constitucional de desenvolvimento regional para o Nordeste, Norte e Centro-Oeste, e ter instrumentos no âmbito da administração pública para direcionar esses recursos para projetos que sejam de apoio à população local, à economia regional, os quais pudessem dar algum retorno para o conjunto do desenvolvimento brasileiro. O problema da Sudene na época da ditadura é que ela virou simplesmente uma forma de ajudar grandes empresas a se instalarem na região para produzir, para ganhar dinheiro, mas sem nenhuma preocupação com a dimensão regional. Com a Sudan aconteceu a mesma coisa; ela praticamente ficou reduzida à Zona Franca de Manaus. A Sudeco quase deixou de existir. Há uma série de pesquisadores e estudiosos do tema identificando os nós e as potencialidades do desenvolvimento regional e isso é muito importante. Porém, até hoje, para uma pessoa como o Paulo Guedes, isso é uma heresia, porque é um “dirigismo”, é o Estado dizendo o que o setor privado pode ou não fazer. Entretanto, se observarmos a expansão agrícola no Brasil, veremos que todas as regiões do Cerrado e da Amazônia estão sendo ocupadas segundo a lei selvagem do mercado, que é a destruição da selva, a venda da madeira, a expansão da soja, sem preocupação efetiva com o desenvolvimento sustentável na região e para o conjunto.
A ideia de desenvolvimento sugere criar empregos, promover processos de distribuição de renda e de fixação da população local na própria região, além de levar saúde, educação e ciência e tecnologia; as tarefas são enormes. Para tanto, é preciso vontade política — o Estado tem que ter uma presença organizadora nesse espaço territorial — e disposição de aplicar recursos para orientar esse desenvolvimento.
IHU On-Line — A Associação Brasileira de Economistas pela Democracia pretende estabelecer algum diálogo com o governo, a fim de propor alternativas para enfrentar a crise atual? Sim, não, como e por quê?
Paulo Kliass — Temos um diálogo permanente entre os colegas. A minha visão a respeito disso é que ninguém deve se furtar ao diálogo. Se o governo — seja o Paulo Guedes, o próprio presidente Bolsonaro, os líderes do governo no Congresso e os demais interlocutores — tem interesse em conversar, ninguém deve se furtar ao diálogo. É importante dizer que, ao se estabelecer o diálogo, tem que ter a disponibilidade, de outro lado, de ouvir argumentos e estar disposto a promover mudanças na sua orientação.
Todos os dias a Comissão Especial está discutindo a reforma previdenciária, vários economistas já foram chamados e eu provavelmente vou falar na próxima semana também, e na Comissão se discute não só a reforma previdenciária, mas a necessidade de mudar a agenda da economia para incorporar essas coisas todas que conversamos. Acho difícil que alguém com o perfil do Paulo Guedes e com o compromisso que ele tem, aceite uma mudança tão grande na gestão do Ministério da Economia. Particularmente acho que a primeira questão é desmembrar a concentração que a equipe econômica fez e voltar para o Ministério do Planejamento. Como vão fazer política de desenvolvimento se não existe um Ministério do Planejamento? É preciso voltar a ter o Ministério da Fazenda, o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio e é preciso ter instrumentos no âmbito da administração pública para desenvolver essas políticas públicas que queremos implementar.
IHU On-Line — O papa Francisco tem defendido em seus pronunciamentos que é preciso pensar uma nova economia. Em 2015, no Encontro Mundial dos Movimentos Populares, em Santa Cruz de la Sierra, disse que é preciso dizer “não a uma economia de exclusão e desigualdade, onde o dinheiro reina em vez de servir”. Nesta semana, o papa disse que os jovens economistas precisam “estudar e praticar uma economia diferente, que faz viver e não mata, inclui e não exclui, humaniza e não desumaniza, cuida da criação e não a depreda”.
Paulo Kliass — Para toda a população do mundo, para as elites, governos, instituições e para as pessoas em geral, a figura do papa está sendo uma grata surpresa no debate mundial. Ele está reforçando a questão da fraternidade, da paz, do combate à miséria e à pobreza e isso é de uma riqueza fenomenal. Neste momento em que a humanidade está vivendo essas dificuldades, vem uma voz dizendo que existem injustiças e existem recursos que precisam ser compartilhados numa perspectiva mais humana e fraterna. Na questão econômica, ele cai como uma luva neste debate que estamos fazendo. Uma figura com a responsabilidade e a importância do papa, que diz que os economistas precisam mudar a sua forma “economicista” de ver a economia e apresentar a dimensão humana e fraterna do processo econômico, é fundamental, porque ele toca no ponto da ferida da qual estamos falando. Quer dizer, a sociedade contemporânea produz demais, é exuberante na sua capacidade de produção, mas no momento da distribuição, seja dos salários, seja dos empregos ou da capacidade de consumo, ela é injusta e desigual. Então, é importante que pessoas com essa liderança tragam esse tipo de reflexão, porque isso faz com que os demais atores comecem a refletir sobre a necessidade de mudança.