Por: Patricia Facchin | 20 Novembro 2018
A criação de um superministério da Economia, como proposto pelo novo governo, “não é um problema”, mas “o que se declara que será sua estratégia e política, além da demonstração de profundo desconhecimento, vide a recente declaração do ‘superministro’ desconhecendo que o orçamento federal de determinado ano é decidido no ano anterior”, diz o economista Marcelo Carcanholo à IHU On-Line.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, ele comenta algumas das propostas da nova equipe econômica, como a venda de estatais para abater parte da dívida pública e garantir a diminuição do pagamento de juros. “Se os mecanismos que levam ao crescimento da dívida pública não forem revertidos, a venda de estatais para abater parte da dívida apenas — e no melhor dos casos — aliviará o problema no curtíssimo prazo. Depois disso, com os mesmos mecanismos, a dívida pública voltará a explodir, ficando a pergunta: o que restará para vender? Alugaremos para visitação turística as dependências do Palácio do Planalto?”, ironiza. Segundo ele, “privatizações só serão efetivas se forem vendidas estatais que tenham resultados econômico-financeiros positivos”. E questiona: “É racional vender empresas superavitárias para abater, momentaneamente, parte de uma dívida que possui outros mecanismos de constituição? Não por outra razão, em algumas partes do mundo, o movimento atual é exatamente o contrário”.
Nesta entrevista, Carcanholo também comenta a trajetória macroeconômica dos governos petistas, que recorreram ao neoliberalismo como “estratégia de desenvolvimento de todo o período”. As alternativas a esse modelo, sugere, “devem passar pela contraposição a essa agenda neoliberal. A primeira mais óbvia é a modificação da política econômica austera. O princípio básico aqui seria a redução das taxas de juros para um patamar inferior às taxas de retorno do capital produtivo que, uma vez incentivado, retomaria produção, emprego e renda”.
Ele propõe ainda que o descontrole das contas públicas seja tratado de forma distinta. “Se as despesas públicas superam suas receitas, há duas formas de tratar o problema, que podem vir combinadas: elevar as receitas e/ou reduzir as despesas. A primeira forma é sempre descartada pelo falso argumento de que a carga tributária no Brasil já é excessiva, mas na verdade o que se omite (mistifica) é que a estrutura tributária brasileira é ineficiente e, o pior de tudo, reforça o caráter concentrador da renda e riqueza. Por que não rediscutir quem, de fato, paga imposto no Brasil? Mais além do básico combate à evasão fiscal, deve-se aumentar a tributação das altas rendas, taxar grandes fortunas, voltar a cobrar sobre lucros e dividendos, por exemplo”.
Marcelo Dias Carcanholo | Foto: UFF
Marcelo Dias Carcanholo é graduado em Ciências Econômicas pela Universidade de São Paulo – USP, mestre em Economia pela Universidade Federal Fluminense – UFF e doutor em Economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Atualmente é professor de Economia da UFF, membro do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Marx e Marxismo – NIEP-UFF, pesquisador do Núcleo de História Econômica da Dependência Latino-americana – HEDLA-UFRGS e professor da Escola Nacional Florestan Fernandes – ENFF-MST. Entre seus livros publicados, destacamos Dependencia, Superexplotación del Trabajo y Crisis: una interpretación desde Marx (Madrid: Maia Ediciones, 2017) e Neoliberalismo: a tragédia do nosso tempo (São Paulo: Cortez Editora, 2008).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Que balanço faz da trajetória macroeconômica brasileira entre 2003 e 2017? Quais foram os erros e acertos da política macroeconômica?
Marcelo Carcanholo – Perguntar-se sobre a trajetória macroeconômica brasileira entre 2013 e 2017 é perguntar-se sobre essa trajetória durante os governos do PT e as razões que levaram ao golpe de 2016. Por outro lado, costuma-se analisar essa questão apenas do ponto de vista da política macroeconômica, em específico, da instrumentalização das políticas monetária, fiscal e cambial, quando na verdade essa instrumentalização depende, além da conjuntura específica que se enfrenta, da estratégia de desenvolvimento à qual ela está atrelada.
Deve-se começar pelo segundo. Duas mistificações são muito rotineiras quando se trata o assunto. A primeira é achar que os governos do PT aplicaram estratégias de desenvolvimento antineoliberais, e que o neoliberalismo se restringiria aos governos anteriores (Collor e FHC) e posteriores (pós-golpe). Isso é um equívoco rotundo. A segunda, que até explica em parte a primeira, é que se confunde o neoliberalismo com políticas econômicas ortodoxas, isto é, com políticas de controle da demanda agregada com o objetivo de combate à inflação, sem nenhum tipo de interferência do governo sobre algum preço.
Essa estratégia é implementada no Brasil desde os anos 90 e provoca sérios problemas de estoque (crescimento do passivo externo líquido e da dívida pública), de fluxo (déficits no balanço de pagamentos, elevação dos serviços da dívida pública e do passivo externo líquido), redução da autonomia de política econômica, baixo crescimento, piora nas distribuições de renda e riqueza e uma forte instabilidade cambial que, no limite, nos levou à crise cambial de 1999. Após essa crise, modifica-se apenas formalmente a instrumentalização da política, com base em um regime de metas inflacionárias e fim do regime de bandas cambiais. Na prática, a política econômica seguiu as mesmas diretrizes de combate à inflação (com contenção da demanda agregada), compromisso (embora não preanunciado) com determinado valor da taxa de câmbio e obtenção de elevados superávits primários para pagamento do serviço da dívida pública.
Os pífios resultados da economia, dentre outras causas, levaram à eleição de Lula em 2002. Uma vez eleito, o que seu governo faz? Altera a política econômica? Não. Ela é mantida sob o falso argumento de que se deveria gerar credibilidade nos mercados. Rompe-se com a estratégia neoliberal de desenvolvimento? Ao contrário, ela é aprofundada, com a sequência das reformas estruturais pró-mercado.
Esse foi o erro de todo o período. Uma economia periférica adotou e aprofundou a estratégia neoliberal de desenvolvimento, o que acentuou seus problemas econômicos estruturais.
As modificações pontuais da política econômica se relacionam apenas a alterações nas distintas conjunturas vivenciadas ao longo do processo.
IHU On-Line – Por que a economia brasileira foi de um boom econômico a uma das suas maiores crises econômicas entre 2003 e 2017?
Marcelo Carcanholo – Ainda que os governos do PT tenham aprofundado o neoliberalismo e as políticas econômicas dos governos anteriores, por que os resultados econômicos foram distintos? De fato, a taxa média de crescimento da economia no período 2002-2007 foi bem superior à do período anterior. Permitiu-se uma política de relativo crescimento do salário real e da redução da desigualdade no país. Foram acumuladas reservas internacionais para além da nossa necessidade de financiamento externo, o que nos permitiu, inclusive, emprestar algum dinheiro ao FMI e sonhar (apenas no discurso, pois na prática inviabilizamos a proposta) com um Banco do Sul. Parece claro e indiscutível que os governos do PT foram distintos (ao neoliberalismo).
Como toda mistificação tem uma base real e concreta, esses resultados econômicos e sociais são verdadeiros. O que não é verdadeiro é que elas decorram de uma ruptura com o neoliberalismo. Já vimos que a ruptura não foi a estratégia. Mas o que explica esse resultado do período? A específica modificação do cenário externo, que nos foi extremamente favorável no período 2002-2007.
Nesse período, a economia mundial cresceu relativamente bem, mas as economias que mais cresceram foram justamente economias que, para tanto, necessitavam importar produtos primários e baseados em recursos naturais que, em função até dos efeitos do neoliberalismo, a América Latina tinha voltado a produzir e exportar. O crescimento no quantum exportado e a elevação do preço das commodities fizeram com que as exportações da região subissem fortemente. Isso, aliado à alta no ciclo de liquidez internacional, que nos permitia captar recursos externos abundantes e a taxas baixas de juros, levou a resultados positivos no balanço de pagamentos e ao acúmulo considerável de reservas internacionais. As baixas taxas de juros internacionais ainda permitiam uma margem para a redução das taxas de juros internas, que incentivavam a demanda agregada interna. Com crescimento da demanda externa e elevação da demanda interna, a produção doméstica pôde obter as taxas de crescimento que apresentamos. A forte entrada de recursos externos ainda permitiu que esse crescimento ocorresse em um contexto de apreciação cambial e, portanto, sem maiores pressões inflacionárias.
Como a arrecadação estatal está relacionada ao nível de atividade da economia, isso permitiu o crescimento das receitas estatais. Mesmo com uma política fiscal de forte arrocho para sustentar o pagamento do serviço da dívida pública, ainda se conseguiu alguma folga para políticas públicas compensatórias que, junto ao relativo crescimento do salário real, possibilitaram a redução da desigualdade característica da nossa sociedade.
Mesmo nesse período de cenário externo favorável, algumas ponderações devem ser feitas. Em primeiro lugar, isso ocorreu para toda a América Latina. Se comparadas, nesse mesmo período, a economia brasileira só apresentou uma taxa média de crescimento superior à haitiana. Em segundo lugar, as armadilhas estruturais foram aprofundadas, não apenas, mas também por conta do crescente processo de reprimarização das exportações. A seu turno, as políticas sociais compensatórias (focalizadas, pontuais e não estruturantes) seguiam a cartilha das propostas, por exemplo, do Banco Mundial. Tanto é assim que países que claramente não compunham o que se chamou de governos progressistas também as instituíram. Os casos colombiano e peruano são emblemáticos. O crescimento do salário real ocorreu em um contexto de redução do salário relativo (comparado com remuneração de juros, aluguéis e lucros). Por último, os indicadores de igualdade normalmente utilizados dizem respeito a rendimentos do trabalho, excluindo aquelas outras remunerações. Além disso, a maior igualdade significa apenas que a dispersão entre os distintos rendimentos do trabalho diminuiu, o que não significa, necessariamente, que, em média, esses rendimentos tenham aumentado.
Enfim, há vários (e outros) apontamentos para relativizar o chamado sucesso da estratégia dos governos do PT. O fato concreto é que, qualquer que seja a perspectiva que se tenha sobre isso, a condição necessária para esse processo era o cenário externo extremamente favorável. O estouro da crise mundial em 2007-2008 reverteu completamente esse cenário.
Com a crise, as armadilhas estruturais — agravadas pelo neoliberalismo — explicitaram seu agravamento com a nova conjuntura. Como o governo da época reagiu? Após um primeiro momento de negação da crise, a resposta no segundo governo Lula foi de elevação das taxas domésticas de juros, justamente em um momento em que o mundo inteiro procurava responder à crise reduzindo as suas taxas. Em 2009, a redução das taxas domésticas de juros ainda se fez em um ritmo inferior ao que se via na média da economia mundial. Na virada para 2010, voltou-se a elevar as taxas domésticas de juros, quando as taxas internacionais estavam estabilizadas em um baixo patamar, chegando a apresentar valores reais negativos. De uma forma ou de outra, o diferencial entre os juros domésticos e os externos se ampliou, restringindo o crescimento do mercado interno e pressionando por uma valorização cambial que limita a ampliação da demanda líquida externa.
A chamada nova política econômica (neodesenvolvimentista) que se seguiu baseava-se em dois pontos. Por um lado, elevação do crédito para consumo das famílias. Por outro, desoneração tributária dos setores que produziam bens e serviços que seriam demandados por essa parcela da demanda com crédito ampliado. Apostou-se no respiro do mercado doméstico, enquanto os mercados externos continuavam turbulentos. O sentido dessa política anticíclica era claramente “ganhar tempo”, até que a economia mundial se restabelecesse. Isso não ocorreu até agora! Além disso, os limites da política econômica eram claros. De um lado, o endividamento das famílias que, a partir de determinado momento, passaram a contrair empréstimos apenas para pagar empréstimos pretéritos, sem nenhum efeito mais sobre consumo. Por outro lado, o crescimento dos déficits fiscais do governo, determinados pela armadilha fiscal estrutural, típica do neoliberalismo (em que pese seu discurso), e agravados pela política de desoneração.
Todos — excetuando talvez os ingênuos e alguns lulistas — sabiam que, independente de quem ganhasse as eleições de 2014, seria aplicado um programa econômico fortemente recessivo, com ajuste fiscal nos moldes europeus e ampliação das reformas. Os novos tempos exigiam uma política econômica ortodoxa, alinhada com a ampliação das reformas estruturais neoliberais. O início do segundo governo Dilma demonstrou isso.
Se o ajuste ortodoxo viria de qualquer forma, por que o Golpe? Neste ponto, várias hipóteses poderiam ser discutidas. Apontamos apenas duas que fazem parte da explicação. Como se exigia uma nova rodada de privatizações, e dada a forma como elas costumam ser “conduzidas”, faz diferença quem está comandando o bloco no poder. O governo pode, de variadas formas, determinar os grupos que controlarão esses espaços econômicos e, portanto, quem se beneficiará dos processos de privatização. Adicionalmente, as economias, mesmo as periféricas, possuem trajetórias de médio e longo prazo cíclicas. Isso significa que, em algum momento (parece distante!), a economia mundial pode se recuperar, o que aliviaria o cenário externo da nossa economia e possibilitaria alguma recuperação. O que os novos tempos (Golpe e pós-golpe) nos mostram é que não há mais espaço (econômico, político e social) para uma política de conciliação de classes, característica dos governos do PT. Por isso o Golpe a qualquer custo foi necessário. Não se aceita mais nem uma mísera conciliação de classes. Nesse sentido, a eleição de Bolsonaro é uma continuação do Golpe.
IHU On-Line – O que caracterizou o desenvolvimento econômico adotado entre 2003 e 2017? Quais foram os pontos positivos e negativos do modelo de desenvolvimento adotado nesse período?
Marcelo Carcanholo – Como já mencionado, a estratégia de desenvolvimento de todo o período foi o neoliberalismo. Não há pontos positivos nessa estratégia de desenvolvimento, a não ser para aquelas camadas sociais que se beneficiam com a piora na concentração de renda e riqueza e se apropriam do crescimento dos serviços da dívida pública e do passivo externo. O problema todo é que não se costuma saber o que significa o neoliberalismo.
O neoliberalismo se define, basicamente, por duas características. Em primeiro lugar, como condição necessária, defende-se a obtenção de uma estabilização macroeconômica (da inflação e das contas públicas), como forma de garantir horizontes de cálculo de longo prazo mais estáveis. Isso é uma condição necessária, mas não suficiente. Em segundo lugar, defende-se a implementação de reformas estruturais que ampliem a mercantilização da sociedade, uma vez que, com maior concorrência, sustenta-se que será elevada a produtividade e, portanto, o crescimento da economia, além de elevar a remuneração real dos fatores de produção. Por isso é que o neoliberalismo tem como mantra todo o processo de privatização, abertura e liberalização comercial e financeira, desregulamentação e flexibilização das leis trabalhistas, dentre outras reformas.
O característico do neoliberalismo é a segunda característica, desde que a primeira seja obtida — por isso é uma precondição. De que forma a precondição deve ser obtida? A estabilização macroeconômica requer uma política econômica ortodoxa ou heterodoxa? Isso é indiferente! Na realidade, o que a define é a conjuntura específica que se enfrente. Por isso é que o neoliberalismo não teve nenhum problema em defender políticas de estabilização com âncora cambial nos anos 90 do século passado. Trata-se de políticas extremamente heterodoxas. Nenhum ortodoxo aceitaria o controle de um preço-chave, como a taxa de câmbio. Mas era o que o contexto internacional exigia naquele momento.
Outro exemplo foi a mudança na política econômica no segundo mandato de Lula, na tentativa de responder aos efeitos da grave crise na economia mundial, após crer-se que não traria nenhum efeito (a chamada marolinha). A política econômica anticíclica, chamada por alguns de novo-desenvolvimentismo, não modificou em nada os marcos estruturais da estratégia de desenvolvimento. O tal novo-desenvolvimentismo, ao se restringir a modificações pontuais de política econômica, aceitando os marcos estruturais do neoliberalismo, explicita-se apenas como uma variante deste, e não como uma real alternativa.
Os efeitos estruturais que essa estratégia aprofunda em uma economia periférica (restrição externa estrutural ao crescimento, armadilha financeira nas contas externas, armadilha fiscal, armadilha financeiro-cambial, crescimento do tipo stop and go, reprimarização da produção e das exportações etc.) só foram agravados. Eles apenas ficaram amortecidos durante breve tempo em função do cenário externo extremamente favorável que se vivenciou entre 2002 e 2007. Após o estouro da crise da economia mundial, a conjuntura voltou a refletir o agravamento dos problemas estruturais.
IHU On-Line – Considerando a atual situação da economia brasileira, que ações são fundamentais para retomar o crescimento neste momento?
Marcelo Carcanholo – As alternativas devem passar pela contraposição a essa agenda neoliberal. A primeira mais óbvia é a modificação da política econômica austera. O princípio básico aqui seria a redução das taxas de juros para um patamar inferior às taxas de retorno do capital produtivo que, uma vez incentivado, retomaria produção, emprego e renda.
Fraseada em seu aspecto mais geral, no entanto, ela pode se confundir com a própria agenda neoliberal. Dentro desta, também é possível identificar que a redução das taxas de juros é necessária para a retomada dos investimentos privados. Mas o seu diagnóstico parte do pressuposto de que as taxas reais de juros são elevadas por conta do déficit público e, portanto, o ajuste fiscal (austeridade) seria obrigatório.
A contraposição a esse argumento convencional não pode desconsiderar o real descontrole das contas públicas, mas deve desmistificar o tratamento rasteiro que se faz da questão. Se as despesas públicas superam suas receitas, há duas formas de tratar o problema, que podem vir combinadas: elevar as receitas e/ou reduzir as despesas. A primeira forma é sempre descartada pelo falso argumento de que a carga tributária no Brasil já é excessiva, mas na verdade o que se omite (mistifica) é que a estrutura tributária brasileira é ineficiente e, o pior de tudo, reforça o caráter concentrador da renda e riqueza. Por que não rediscutir quem, de fato, paga imposto no Brasil? Mais além do básico combate à evasão fiscal, deve-se aumentar a tributação das altas rendas, taxar grandes fortunas, voltar a cobrar sobre lucros e dividendos, por exemplo.
Do ponto de vista das despesas, o discurso oficial da austeridade procura embasar a proposta de limitação/teto dos gastos públicos, já em vigência, e as recorrentes reformas da Previdência. Em primeiro lugar, o combate ao mito do déficit da Previdência deve ser radical. Se todas as receitas do sistema, previstas constitucionalmente, fossem contabilizadas, se observaria um superávit da Previdência, embora decrescente até por conta da recessão prolongada. Em segundo lugar, se o controle das contas públicas requer redução das despesas, por que o controle deve vir sempre do lado das despesas não financeiras (funcionalismo, educação, saúde etc.)? Por que não controlar as despesas financeiras? Embora o argumento seja o de que o serviço da dívida pública deve ser garantido para gerar credibilidade nos mercados, na realidade esse tipo de despesa é preservado por um compromisso político com parte da sociedade, o que reforça ainda mais o caráter regressivo da concentração de renda e riqueza. Controlar as despesas financeiras significa alterar tanto o estoque da dívida pública como as taxas de juros, seu principal mecanismo de correção.
As altas taxas de juros, portanto, antes de serem provocadas pelo déficit público, incidem diretamente sobre o estoque da dívida pública, o que amplia as despesas financeiras e, claramente, eleva o déficit público! Este último é muito mais causado pelas altas taxas de juros do que o contrário. E como reduzir as taxas de juros? Não se trata, apenas, de vontade política. Há pré-requisitos para isso.
A redução das taxas de juros tende a produzir um crescimento da demanda agregada que poderia pressionar a inflação. Ao contrário do que se pensa, esse risco inflacionário não é um problema de demanda diretamente. Como as taxas de investimento são medíocres desde o final do século passado, a capacidade instalada da economia é restrita e qualquer pequena pressão de demanda termina por ser precificada. O problema estrutural da economia brasileira é a baixa capacidade instalada, e não o crescimento da demanda agregada em si. Assim, é uma condição que se promova uma ampliação da capacidade instalada produtiva. Para isso, como os investimentos privados são baixos, justamente pelas altas taxas de juros, exige-se um forte programa público de investimentos, preferencialmente em infraestrutura, que tem maiores efeitos multiplicadores/aceleradores na economia.
Por outro lado, a redução da taxa doméstica de juros pode gerar um forte processo de fuga de capitais, e no limite uma crise cambial. Portanto, uma segunda condição para a política econômica distinta é a implementação de algum tipo de controle de câmbio, que impeça a saída de capitais especulativos.
Essa política econômica radicalmente distinta já contraria muitos interesses estabelecidos no bloco de poder brasileiro durante muito tempo, mas uma verdadeira estratégia alternativa não pode se limitar a modificações no nível apenas da política econômica. O primeiro argumento já foi dado. É impossível a redução das taxas domésticas de juros a níveis requeridos para a retomada do crescimento sem, pelo menos, medidas sérias de controle de câmbio. Mas não é apenas por isso.
Todas as armadilhas estruturais típicas de uma economia dependente (restrição ao crescimento, armadilha fiscal, vulnerabilidade externa, desnacionalização, reprimarização, desindustrialização etc.) são aprofundadas pelas reformas estruturais propostas pelo neoliberalismo. Deve-se, portanto, revertê-las: reduzir o grau de abertura externa da economia (comercial e financeira), renacionalizar setores estratégicos, anular reformas trabalhista e da Previdência, e isso só para começar.
Uma efetiva alternativa ao neoliberalismo implica, portanto, tanto uma modificação radical da política econômica de austeridade como uma reversão séria das reformas neoliberais. Mais do que uma mera modificação de estratégia econômica, isso pressupõe uma radical alteração do bloco de poder no país. Economia e política nunca se apresentam separadas, embora alguns beneficiados procurem dizer que sim.
IHU On-Line – O novo governo propôs a criação de um superministério da Economia. Algumas instituições já se pronunciaram, como a Confederação Nacional da Indústria - CNI, que se opôs à proposta, e a Firjan, que publicou uma nota de apoio. Como avalia a proposta do novo governo de criar um superministério da Economia? Por que na sua avaliação as instituições econômicas divergem acerca da proposta?
Marcelo Carcanholo – A proposta de um superministério da Economia, que aglutine algumas das pastas preexistentes, em si, não é um problema. Evidentemente, isso pode gerar problemas de gestão, se aliada com a efetivação da redução do quadro operacional do funcionalismo, uma vez que questões importantes dessas pastas requerem um mínimo de quadros com conhecimento necessário para encaminhá-las. Mas, em si, não seria um problema.
A contrariedade que algumas instituições demonstraram — curioso que elas representem frações importantes do bloco de poder dominante, desde sempre, no país — diz respeito à necessidade que se tem de acomodar essas distintas frações na constituição do novo governo. A fusão de várias pastas em uma só pode deixar de fora partes importantes dessas frações do bloco de poder que, em virtude disso, podem apresentar maiores dificuldades de encaminhar seus pleitos específicos.
O grave na sinalização do novo governo não é o tal superministério, mas o que se declara que será sua estratégia e política, além da demonstração de profundo desconhecimento, vide a recente declaração do “superministro” desconhecendo que o orçamento federal de determinado ano é decidido no ano anterior.
IHU On-Line – Em suas declarações recentes, o novo ministro da Economia, Paulo Guedes, descartou a possibilidade de renegociação da dívida pública brasileira. Sua proposta, ao contrário, é vender algumas estatais para poder abater parte da dívida e diminuir o pagamento de juros. Como avalia esse tipo de medida?
Marcelo Carcanholo – Se os mecanismos que levam ao crescimento da dívida pública não forem revertidos, conforme a argumentação anterior, a venda de estatais para abater parte da dívida apenas — e no melhor dos casos — aliviará o problema no curtíssimo prazo. Depois disso, com os mesmos mecanismos, a dívida pública voltará a explodir, ficando a pergunta: o que restará para vender? Alugaremos para visitação turística as dependências do Palácio do Planalto?
As privatizações só serão efetivas se forem vendidas estatais que tenham resultados econômico-financeiros positivos. É racional vender empresas superavitárias para abater, momentaneamente, parte de uma dívida que possui outros mecanismos de constituição? Não por outra razão, em algumas partes do mundo, o movimento atual é exatamente o contrário.
A camisa de força ideológica do neoliberalismo é tão forte que não se pergunta o óbvio. Por que não renegociar o estoque da dívida antes? Por que não discutir, democraticamente, as formas de fazê-lo? Por que não reduzir as taxas de juros domésticas, dados os pré-requisitos para isso? A resposta também é óbvia. Porque há um compromisso político em manter os rendimentos de quem se beneficia com o serviço da dívida pública, passando a conta para o Estado.
IHU On-Line – Do ponto de vista econômico, o que é possível esperar da nova equipe econômica com base nas declarações dadas até o momento?
Marcelo Carcanholo – O pior. Serão mantidas as políticas (i) monetária com base no regime de metas inflacionárias, como se a política monetária não afetasse a determinação do nível real de atividade econômica; (ii) fiscal, de fortes superávits primários (com redução das despesas não financeiras), apenas para honrar os pagamentos (interesses) do serviço da dívida pública; (iii) cambial, de acordo com as anteriores; (iv) e tudo isso dentro do aprofundamento da estratégia neoliberal de desenvolvimento.
Ainda poder-se-ia argumentar que a qualidade técnica dos quadros do governo na aplicação dessas propostas poderia garantir alguma coerência e estabilidade ao longo do período do novo governo. Entretanto, o que se vê nas declarações dadas até o momento é que nem a qualidade requerida, nem a coerência no projeto — se é que ele está claro para os integrantes da transição — estão presentes. O cenário que se avizinha é de aplicação atabalhoada da pior estratégia econômica possível.
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A nova equipe econômica e a continuidade do neoliberalismo. Entrevista especial com Marcelo Carcanholo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU