14 Janeiro 2016
"Esses megaeventos estão associados a projetos de reestruturação das cidades nas quais eles são realizados, e os gastos efetivamente empregados não correspondem às necessidades requeridas estritamente pelos jogos em questão”, afirma o sociólogo.
Foto: Comitê Popular Rio Copa e Olimpíadas / EBC |
A gestão adequada das metrópoles, pontua, depende também da criação de “políticas para esses aglomerados metropolitanos de forma a enfrentar os desafios no campo da gestão das políticas públicas”. Entre os aspectos mais urgentes a serem considerados para tornar as metrópoles espaços mais justos e democráticos, Santos Junior frisa a necessidade de “promover a regularização fundiária das áreas informais, garantir investimentos públicos onde eles não existem, universalizar o acesso à moradia, criar restrições à especulação imobiliária para que a moradia seja usada como um bem fundamental à existência humana”.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, o sociólogo também comenta os impactos dos megaeventos, a exemplo das Olímpiadas que irão ocorrer entre os dias 5 e 21 de agosto deste ano. Segundo ele, há uma “inverdade propagada pelo poder público de que a Olímpiada é majoritariamente financiada pelo setor privado”.
Ele explica: “Os estudos que temos realizado mostram que, no cálculo da prefeitura do Rio de Janeiro, 57% dos recursos gastos nas Olímpiadas, em torno de 22,21 bilhões de reais, seriam de responsabilidade do setor privado, enquanto 42,6%, ou seja, 16,46 bilhões, seriam de responsabilidade do poder público, totalizando o custo da Olímpiada em 38,67 bilhões de reais. No entanto, esse cálculo não inclui itens vinculados à construção dos equipamentos esportivos, não inclui a contrapartida pública na Parceria Público-Privada - PPP do Porto Maravilha, não inclui contraprestação pública em dinheiro da PPP do Parque Olímpico, não inclui contraprestação pública em terrenos de 800 mil metros quadrados da PPP do Parque Olímpico e não inclui isenções e renúncias fiscais.”
Orlando Alves dos Santos Junior explica que esses itens não divulgados pelo poder público alteram completamente o valor do custo das Olimpíadas e a porção de recursos públicos e privados que serão destinados à realização do evento. “O total de recursos gastos na Olímpiada, segundo os cálculos do Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas, alcança 39,12 bilhões de reais, sendo 14,81 bilhões, ou seja, apenas 37,9%, vinculados ao setor privado, e 24,31 bilhões, ou seja, 62,1%, de responsabilidade do setor público”, afirma.
Ele frisa também que nas cidades em que os megaeventos implicaram uma reestruturação urbana, “os projetos de modificação das cidades em geral estão associados a um processo de mercantilização e elitização de certas áreas” e as intervenções estiveram “associadas a processos de remoção, à violação do direito à moradia”, suscitando conflitos e violações dos direitos humanos.
Orlando Alves dos Santos Jr. possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense - UFF, mestrado e doutorado em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Atualmente é professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional – IPPUR da UFRJ e pesquisador da Rede Observatório das Metrópoles. É autor e organizador de mais de dez livros, dentre os quais citamos As Metrópoles e a Questão Social Brasileira (São Paulo: Revan, 2007).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Que balanço o senhor faz dos investimentos do Estado brasileiro em megaeventos desde os Jogos Pan-Americanos até este momento em que o país se prepara para receber os Jogos Olímpicos de 2016? Qual é o legado de um evento como a Copa do Mundo, por exemplo, para o Brasil?
Foto: Agência Brasil - EBC
Orlando Alves dos Santos Junior – Olhando os investimentos que foram realizados desde os Jogos Pan-Americanos, passando pela Copa do Mundo e agora com o último megaevento deste ciclo, que são as Olimpíadas, nós podemos observar, em primeiro lugar, que esses megaeventos estão associados a projetos de reestruturação das cidades onde eles são realizados, e os gastos efetivamente empregados não correspondem às necessidades requeridas estritamente pelos jogos em questão, sobretudo no que diz respeito à Copa do Mundo e à Olimpíada.
Os Jogos Pan-Americanos tiveram uma proporção muito pequena e, apesar de poderem ser observados impactos, eles não têm a mesma dimensão e amplitude que os reflexos associados à Copa do Mundo e às Olimpíadas. No caso desses dois últimos, esses megaeventos acionam a ideia de um legado. Esse pensamento precisa ser desconstruído e questionado, porque na verdade a noção de legado vem para legitimar o conjunto das intervenções que são realizadas. Entretanto, essa ideia de legado é usada para a legitimação de um projeto de intervenção que não é discutido efetivamente com a sociedade. Tais intervenções aparecem, de um lado, como requerimento para a realização desses megaeventos e, de outro, como um benefício que seria deixado para as cidades. Assim, trata-se de uma construção social vendida pelos patrocinadores, organizadores e governos para que haja aceitação e legitimidade das intervenções realizadas. Então, efetivamente, o orçamento e os investimentos empregados não correspondem às necessidades e aos requerimentos do megaevento esportivo em si mesmo.
Em segundo lugar, pelo fato de esses megaeventos estarem associados a projetos de reestruturação das cidades, há que se questionar: Que projeto é esse? O que está em jogo e em discussão realmente? Observando os investimentos que foram e estão sendo realizados no caso das Olimpíadas, percebe-se que a maior parte desse montante está associada à infraestrutura de mobilidade urbana, ou seja, são obras de grande envergadura que intervêm sobre a estrutura urbana da cidade e em geral são associadas a três movimentos:
1) Reforço de centralidades já existentes nas cidades-sede;
2) Revitalização de centralidades decadentes;
3) Criação de novas centralidades.
“Os projetos de reestruturação urbana em geral estão associados a processos de mercantilização e elitização de certas áreas” |
Rio de Janeiro
Um exemplo desses três movimentos é o caso emblemático do Rio de Janeiro. Há investimentos nas centralidades já existentes da zona Sul da cidade, onde vive a elite, a classe mais alta. Depois, há um projeto de revitalização de uma centralidade considerada decadente, que é a zona portuária. E, por fim, a criação de uma nova centralidade com investimentos na Barra da Tijuca. Em cada cidade-sede pode haver um desses três movimentos, ou até mais de um deles combinados.
Nem sempre os investimentos realizados na Copa do Mundo, por exemplo, representaram mudanças nos projetos que já vinham sendo realizados. Muitas vezes essas aplicações vieram para reforçar intervenções que já estavam em curso. Mas, em outros casos, os investimentos representaram uma inflexão no projeto urbano que estava sendo desenvolvido naquela cidade. Se observarmos o mapa das cidades-sede da Copa do Mundo, eu diria, numa análise dos investimentos, que nos casos do Rio de Janeiro, de Recife e de Cuiabá ocorreu essa inflexão, onde os projetos da Copa do Mundo e das Olimpíadas implicaram uma mudança naquilo que vinha sendo realizado até então. Tanto é assim que os projetos urbanos que foram desenvolvidos se associaram diretamente a esses megaeventos. Temos a Cidade da Copa, no caso de Recife, a Copa do Pantanal, em Cuiabá, e a Cidade Olímpica, no Rio de Janeiro.
Nas cidades de São Paulo, Porto Alegre, Curitiba, Fortaleza, Natal e Salvador, observa-se muito mais uma intervenção que vem na direção de legitimar e reforçar investimentos e projetos urbanos que já estavam de alguma maneira em curso nesses municípios. Falando de São Paulo especificamente, os investimentos relacionados à Copa do Mundo não são tão vultosos comparados com outros projetos em curso dentro da cidade, a qual é uma metrópole com uma magnitude muito grande. Dessa forma, os investimentos da Copa não impactaram tanto, mas vieram no sentido de reforçar planos já em andamento, como o movimento em direção à região de Itaquera.
Também há cidades onde a Copa não influiu em nada, como é o caso de Brasília e Manaus, nos quais a escolha desses municípios provavelmente se deveu muito mais à legitimação simbólica do evento — “Copa na Amazônia”, “Copa na capital do país” — do que efetivamente um novo projeto de reestruturação urbana.
Eu diria ainda que, onde a Copa do Mundo implicou uma restruturação urbana, os projetos de modificação das cidades em geral estão associados a um processo de mercantilização e elitização de certas áreas. As intervenções na maior parte das cidades estiveram associadas a processos de remoção e à violação do direito à moradia. Não foram resultado de uma discussão democrática e transparente com a sociedade, e sim impostas como requerimento e necessidade para a realização da Copa do Mundo, e por conta dessas razões suscitaram muitos conflitos e mobilizações das comunidades atingidas, que resistiram aos processos de violações dos direitos humanos.
Então, temos um quadro bastante complexo no qual mais uma vez, como já aconteceu em outras cidades que já experimentaram a recepção de megaeventos esportivos, vemos esses eventos atendendo muito mais a interesses econômicos do que efetivamente a interesses da população que vive nas cidades. Há muito mais processos de violação de direitos do que um processo de construção de cidades mais justas e democráticas.
IHU On-Line - É possível elencar quais foram os principais impactos desse tipo de iniciativa desde que ela começou no país e qual é o custo social dessas iniciativas?
Orlando Alves dos Santos Junior – Os impactos são enormes e gravíssimos sob vários aspectos. Em relação ao setor urbano, as intervenções realizadas estão concentradas em algumas cidades e, mais do que isso, dentro desses municípios também estão concentradas espacialmente. Em geral, não são investimentos que estão construindo maior justiça socioterritorial nessas áreas.
Mais uma vez o exemplo do Rio de Janeiro se aplica. Os investimentos não só estão centralizados na cidade do Rio de Janeiro, mas também estão direcionados para determinadas áreas urbanas. O Rio é o polo da segunda maior metrópole brasileira. Porém, o que está sendo investido em infraestrutura de mobilidade na integração metropolitana do Rio de Janeiro com o seu entorno, como a Baixada Fluminense, o leste metropolitano? Nada. Então, é evidente, do ponto de vista do planejamento, que estes sistemas de mobilidade que estão sendo construídos vão gerar efeitos perversos em um curto prazo, pois eles não preveem uma integração metropolitana, nem a melhoria do sistema de transporte na metrópole. Pelo contrário, eles atendem ao projeto de certos interesses econômicos vinculados a determinadas áreas da cidade, nesse caso a Barra da Tijuca, a zona portuária e a zona sul. Isso também se verifica em outras cidades.
Além disso, nessas áreas de interesse econômico e da especulação imobiliária, havia uma barreira para que elas fossem efetivamente objeto de investimento, mercantilizadas e passassem a atender as exigências do mercado imobiliário e de outros interesses financeiros que estavam em disputa. Qual era essa barreira? A existência de classes populares vivendo nessas áreas. Nós temos, no caso do Brasil e de outros países latino-americanos, uma forte presença de assentamentos informais próximos das áreas mais ricas das cidades. A incorporação dessas áreas no mercado imobiliário, a disputa desses espaços pelos interesses econômicos requeria que as classes populares fossem relocalizadas. Portanto, o poder público promoveu diversas remoções visando liberar essas áreas para os investimentos que estavam sendo previstos. Acompanhando esses investimentos, percebemos que em muitas cidades houve um processo de relocalização dos pobres para as áreas mais periféricas. Isso é um enorme custo social, porque temos como resultado cidades mais desiguais, e não o que seria ideal, que são cidades mais justas socioespacialmente.
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“Em muitas cidades houve um processo de relocalização dos pobres para as áreas mais periféricas” |
Desrespeito à legislação local
Muito mais grave do que isso, também temos uma forte ameaça à gestão democrática das cidades. A nossa legislação, o Estatuto das Cidades, é bastante progressista e prevê que qualquer projeto urbano deve ser discutido com as comunidades atingidas e as soluções devem ser pensadas junto a esses grupos. Nós temos visto o oposto nos investimentos que têm sido feitos. Os projetos foram elaborados e impostos sem qualquer discussão democrática, sem a existência de qualquer esfera de participação mais ampla e isso é muito grave do ponto de vista da gestão democrática. Foi um megaevento, o qual se colocou acima das populações locais, que legitimou esse tipo de intervenção.
É uma situação muito séria haver um procedimento que não respeita a legislação local. Sobre esse ponto, cito a Lei da Copa, que é a expressão de uma lei de exceção que passa por cima da legislação nacional, dos estados e dos municípios, cria áreas de comércio exclusivas para a Federação Internacional de Futebol – FIFA e oferece privilégios e isenções fiscais.
Tudo isso mostra o poder dessas organizações como a FIFA e o Comitê Olímpico Internacional – COI, que se dizem sem fins lucrativos, mas que sabemos que na verdade movimentam bilhões e têm muitos interesses por trás. As exigências que esses organismos fazem às cidades, estados e países precisam ser questionadas e é necessário dar um basta, porque a FIFA e o COI não podem se colocar acima dessas instâncias e devem respeitar as legislações existentes em cada contexto.
No Brasil, mais uma vez, nós vimos os desmandos se repetindo, pois a realização dos megaeventos esportivos está associada à criação de regulações especiais que beneficiam essas organizações, desrespeitam nossa legislação e não passam por nenhum mecanismo de controle e transparência democrática.
IHU On-Line - De que modo estão acontecendo os projetos de intervenção urbana nas metrópoles brasileiras hoje? Quais são as características e finalidades desses projetos? Além dos megaeventos, que outras iniciativas movimentam esses projetos?
Orlando Alves dos Santos Junior – Agora estamos vivendo uma crise econômica no país e uma das suas consequências é difundir, primeiro, um ambiente de competição entre as cidades e, segundo, um certo modelo de gestão — ambas as coisas são muito perigosas. Então, esse contexto internacional onde vigoram com força as ideias neoliberais e o cenário de crise econômica no qual o Brasil se encontra favorecem a difusão de um modo de governança empreendedorista, no qual os governos locais se colocam na perspectiva de competir, de buscar oportunidades e eventos que sejam extraordinários, que sejam capazes de atrair empresas e recursos para seus municípios.
Isso é muito grave porque caminha na direção oposta a uma governança solidária. Assim, governar uma cidade torna-se quase como gerenciar uma empresa ou, fazendo uma metáfora com o futebol, quase um campeonato, onde os municípios competem para saber quem será o primeiro, o segundo ou terceiro lugar. Pouco importa qual é o município melhor ou pior, importa é que somos um país onde todos devem ter direito à qualidade de vida e a viver em uma cidade que ofereça todos os benefícios necessários para se ter uma vida digna, como moradia, transporte e mobilidade, trabalho, saneamento, meio ambiente, lazer e cultura. Então, não se trata de uma questão de estar em primeiro, segundo ou em décimo lugar, trata-se de criar mecanismos de solidariedade através dos quais todos possam ter acesso ao que é necessário para se ter uma vida decente. Isso é o oposto da noção de competitividade, mas infelizmente se difunde a ideia de que as cidades estão disputando entre si, de que é preciso buscar a realização de grandes eventos.
Nesse contexto, o mercado acaba sendo o elemento legitimador das intervenções. Tudo é justificado pela intenção de atrair recursos e competir. Assim, a democracia das pessoas está sendo substituída pela ditadura do mercado, que determina o que deve ou não ser feito, quais são as áreas capazes de atrair interesses econômicos. Esse modelo de governança é muito perigoso, porque ele está fundado em um mecanismo que não é democrático e, também, porque ele traz no seu bojo uma maior desigualdade entre as cidades e entre as diferentes áreas de cada cidade.
As PPPs e a gestão privada da cidade
Dentro dessa lógica, o que se percebeu com a realização da Copa do Mundo e agora com a preparação para as Olimpíadas no Rio de Janeiro foi a difusão de um perigoso mecanismo de gestão municipal que é a Parceria Público-Privada - PPP. Infelizmente, sobretudo na Copa do Mundo, tivemos uma brutal difusão desse mecanismo. A maior parte dos estádios foi repassada para o controle de empresas privadas, que os transformaram em arenas com shoppings, em templos de consumo. Assim, os estádios deixaram de ser espaços populares, onde o ato de ir a um jogo de futebol era uma prática identitária cultural brasileira, e agora passaram a dar lugar a uma espetacularização do esporte. Hoje assistir a uma partida de futebol tornou-se uma experiência de consumo em que as pessoas vão às arenas, sentam-se na área VIP em cadeiras confortáveis. A maneira de torcer muda e os valores que se paga também mudam. Nesse espaço há lojas, restaurantes e lanchonetes de grife. E assim a própria experiência de torcer vai sendo transformada nesse processo de mercantilização da cidade e dos seus lugares públicos.
Não foram só os estádios que passaram para a gestão privada, mas também os aeroportos, os sistemas de transporte, como o BRT no Rio de Janeiro, e os próprios espaços urbanos, como é o caso do Porto Maravilha, que é gerido por um consórcio privado através de uma PPP, e também o Parque Olímpico, o qual está associado à construção de um megaempreendimento imobiliário voltado para as elites. Então, hoje se tem a própria gestão do espaço urbano passada para a iniciativa privada por meio das PPPs e a consequência disso é subordinar tudo à lógica do mercado, ou seja, o acesso a esses lugares e aos serviços oferecidos será regulado a partir da capacidade de pagamento dos usuários. Quem tiver dinheiro terá acesso ao melhor, quem tem uma renda média vai usufruir de espaços e serviços médios e quem não tiver recursos será excluído de tudo. Mais uma vez estamos diante do risco de construirmos cidades mais desiguais, mais excludentes. O que se verifica no Rio de Janeiro é exatamente isso, pois estamos diante de um projeto olímpico excludente. Este é o slogan que o Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas tem denunciado: Rio 2016, a Olimpíada da exclusão!
“A cidade é para as pessoas e não para os negócios” |
IHU On-Line - Que investimentos essenciais às metrópoles estão ficando à margem por conta dos investimentos em megaeventos e grandes empreendimentos?
Orlando Alves dos Santos Junior – Quem deve definir os investimentos é a população. Nós técnicos e estudiosos temos que ter o cuidado de não substituirmos a voz daqueles que devem efetivamente decidir em que e como os investimentos devem ser realizados. A primeira coisa para a qual devemos chamar a atenção é que esses projetos urbanos devem corresponder às necessidades que as pessoas sentem. Certamente haverá investimentos em mobilidade, saneamento ambiental, moradia, saúde, educação, cultura, em espaços públicos, mas onde e de que forma, deve ser decidido de maneira participativa e democrática. A cidade é para as pessoas e não para os negócios. Os negócios devem estar a serviço das pessoas. Porém, o que se observa é uma inversão nessa lógica.
Por outro lado, não podemos fazer uma análise maniqueísta e dizer que nenhum investimento realizado na Copa do Mundo e nas Olimpíadas atendeu à população. É claro que alguns desses investimentos trouxeram benefícios, porque eles não podem deixar de atender certas demandas, e algumas comunidades específicas foram amparadas. O que está em discussão, e o fato para o qual queremos atentar, é a lógica desses investimentos, que constrói e promove cidades mais desiguais.
É evidente que o Parque de Madureira atendeu à comunidade de Madureira, que o BRT atendeu algumas das comunidades que estão no trajeto para a Barra da Tijuca, mas nesse último caso, especificamente, o questionamento que faço é: Por que se construíram tantos BRTs na Barra da Tijuca? Para responder a essa questão quero fazer uma interpretação muito importante. A criação dessa nova centralidade na Barra da Tijuca supõe que ela seja um centro econômico, e para que isso se concretize é necessário que existam trabalhadores nesse espaço. Porém esses trabalhadores não podem morar nessa área, eles são excluídos desse lugar. Então o sistema de transporte é fundamental para garantir a ida e a volta dos trabalhadores à Barra da Tijuca, porque eles não estão integrados; ao contrário, uma enorme quantidade de trabalhadores foi removida para a periferia do Rio de Janeiro. Mas essa população é fundamental para viabilizar a Barra da Tijuca como centro econômico e, portanto, é fundamental que haja um transporte para que ela possa ir e vir, dado que ela não pode permanecer na Barra da Tijuca.
Se observarmos o fluxo dos BRTs que já estão funcionando, vamos perceber que pela manhã as pessoas estão indo para a Barra da Tijuca, e no final da tarde elas estão saindo de lá. Portanto, não se trata de um sistema de transporte para atender as pessoas que moram nos condomínios da Barra da Tijuca, porque estas não usam o BRT. Efetivamente quem usa o transporte são os trabalhadores que moram na periferia. É evidente que o sistema de transporte beneficia de forma tangencial algumas comunidades, mas a lógica desses investimentos não é ordenada para atender as demandas da população.
Cidades fundamentadas no medo
Então, diria que a cidade deve realizar investimentos em todos os campos, mas eles devem ser decididos de forma democrática e transparente, com a diretriz de que se tenha maior integração na cidade, com espaços e serviços públicos que possam ser compartilhados pelas diferentes classes. A cidade não pode ser composta de áreas homogêneas, da exclusão do outro; isso, sem dúvida nenhuma, faz com que a cidade seja fundada no medo do outro. Apesar disso, cada vez mais o medo e a violência legitimam políticas de segurança, de controle, e os espaços públicos deixam de ser espaços de convivência. Os investimentos devem ser realizados em todas as áreas, gerando processos de mútua convivência e maior justiça socioespacial.
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“Os Planos Diretores só se tornarão instrumentos de planejamento de cidades mais justas e democráticas se politizarmos os planejamentos e tornarmos os Planos Diretores pactos socioterritoriais” |
IHU On-Line – Nesse sentido, quais são os principais desafios dos Planos Diretores das grandes metrópoles? O que eles deveriam levar em consideração para garantir melhor mobilidade urbana?
Orlando Alves dos Santos Junior – Muitas cidades brasileiras têm de revisar seus Planos Diretores. Em primeiro lugar, percebe-se que poucos instrumentos dos Planos Diretores foram efetivamente implementados. Então, o desafio é efetivamente aplicar os instrumentos do Estatuto das Cidades na perspectiva de ter cidades mais justas e democráticas do ponto de vista socioespacial.
O desafio é promover a regularização fundiária das áreas informais, garantir investimentos públicos onde eles não existem, universalizar o acesso à moradia, criar restrições à especulação imobiliária para que a moradia seja usada como um bem fundamental à existência humana etc. Os Planos Diretores têm instrumentos para isso, como o IPTU progressivo, por exemplo; mas o que se verifica é que eles se tornaram, mais uma vez, leis que não saíram do papel.
Efetivamente os Planos Diretores foram aplicados apenas naquilo que diz respeito aos interesses do mercado. Em geral os agentes imobiliários conseguiram aprovar índices mais elevados nas áreas de seus interesses, e em muitas cidades o principal instrumento que está sendo utilizado é a operação urbana, que promove a parceria do poder público com o setor privado. Os demais instrumentos que garantem a função social da cidade não saíram do papel. Então, o desafio é dar vida a esses instrumentos. Diria que os Planos Diretores só se tornarão instrumentos de planejamento de cidades mais justas e democráticas se politizarmos os planejamentos e tornarmos os Planos Diretores pactos socioterritoriais, em que efetivamente se consiga visibilizar quem são os agentes que constroem a cidade e quais são os interesses que estão sendo disputados. Além disso, quem decide os investimentos?
No Brasil temos uma tradição, ou tecnocrática ou mercadológica, de submeter os interesses das cidades ao mercado. Precisamos romper com essa lógica e transformar o planejamento num processo vivo e politizado no bom sentido da palavra, para que os sujeitos das cidades se reconheçam e possam pensar seus antagonismos.
IHU On-Line - O que é essencial quando se trata de discutir a questão social nas metrópoles?
Orlando Alves dos Santos Junior – A questão da metrópole no Brasil foi banalizada pelo fato de os governos estaduais poderem criar metrópoles sob quaisquer critérios. Agora, o Estatuto da Metrópole freia, de certo modo, esse movimento, mas ele ainda é limitado. A Constituição Federal brasileira acabou deformando o conceito de metrópole ao atribuir aos governos estaduais a sua criação. Então, é preciso, em primeiro lugar, definir o que se entende por aglomerado metropolitano, porque eles são espaços que têm mais do que interesses comuns. Muitos aglomerados urbanos têm interesses comuns na gestão do saneamento, de resíduos sólidos, de mobilidade, mas as metrópoles, mais do que isso, conformam uma centralidade e têm uma dinâmica econômica, social e política diferenciadas. Por isso, é preciso definir o que é metrópole, porque nem todo o município que hoje está dentro de uma região metropolitana tem, efetivamente, uma dinâmica metropolitana.
O que é uma metrópole?
Precisamos, então, criar critérios para decidir o que é um aglomerado metropolitano e, em segundo lugar, criar políticas para esses aglomerados metropolitanos de forma a enfrentar os desafios no campo da gestão das políticas públicas. É possível que os moradores da Baixada Fluminense resolvam seus problemas de moradia sem uma política metropolitana integrada? É possível ter uma distribuição de emprego na metrópole do Rio de Janeiro sem uma política integrada de construção de polos econômicos e de investimentos na área da tecnologia e da educação de forma descentralizada? Isso vale para São Paulo, Recife e outras metrópoles, para as quais ter essa perspectiva metropolitana é perceber que as dinâmicas políticas, econômicas e sociais são diferenciadas: há uma integração na metrópole, porque as pessoas vivem numa multiplicidade de espaços para além dos municípios em que elas residem. Por essa razão é preciso ter uma política metropolitana.
O Estatuto das Metrópoles deu um passo nessa direção, mas ainda não resolveu esse problema. E isso não será construído sem uma política de cooperação entre os estados, municípios e o governo federal.
IHU On-Line - Durante a Copa, o Brasil assistiu a uma série de manifestações contra o evento antes de ele ocorrer, e, ao longo do ano passado, muitos manifestantes protestaram por conta das remoções da Vila Autódromo. Como estão as manifestações na cidade do Rio de Janeiro, tendo em vista os jogos para este ano e a atual crise do SUS no estado?
Orlando Alves dos Santos Junior – Nós vivemos um momento muito especial durante a Copa do Mundo, porque tratava-se de um evento nacional, e manifestações como as de 2013 no Brasil não acontecem cotidianamente; são fatos que ocorrem como resultado de uma confluência de fatores e há uma disputa na interpretação dessas manifestações. Por isso, gosto de ter cautela ao analisar essa questão. Em primeiro lugar, diria que o fato de termos um evento nacional contribuiu muito para que elas ocorressem. Depois, havia um símbolo em cada uma das cidades-sede, que eram os estádios e, em terceiro lugar, havia uma insatisfação com o sistema político, por conta do hiato entre as demandas da população e as ações dos políticos.
Em relação às Olímpiadas, a situação é um pouco diferente porque há uma reação muito ruim do poder público, tanto no sentido de reprimir as manifestações contra as Olímpiadas, quanto de discutir a lei antiterror. Além disso, as Olímpiadas não são um evento nacional, e sim um evento local, e elas não têm um símbolo, mas uma série de modalidades esportivas, sendo algumas muito populares e outras muito elitizadas. Podemos esperar manifestações, sim, mas certamente elas não terão a mesma proporção que tiveram na Copa das Confederações. As manifestações vão reunir os movimentos sociais críticos que denunciam esse projeto de cidade excludente, mas é improvável que elas tenham a mesma dimensão das manifestações de 2013, que são manifestações que ocorrem em raros momentos da história.
As manifestações, seja do tamanho que forem, cumprem um papel de reverberar no espaço público a opinião sobre esse projeto de cidade e despertar a sociedade a refletir de modo mais crítico sobre as modificações que estão ocorrendo na cidade do Rio de Janeiro.
“Há uma integração na metrópole, porque as pessoas vivem numa multiplicidade de espaços para além dos municípios em que elas residem” |
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Orlando Alves dos Santos Junior – Quando você me perguntou sobre os recursos, gostaria de ressaltar que no caso das Olímpiadas há uma questão fundamental, que é a necessidade de desconstruir a inverdade propagada pelo poder público de que a Olímpiada é majoritariamente financiada pelo setor privado; isso é uma inverdade. Os estudos que temos realizado mostram que, no cálculo da prefeitura do Rio de Janeiro, 57% dos recursos gastos nas Olímpiadas, em torno de 22,21 bilhões de reais, seriam de responsabilidade do setor privado, enquanto 42,6%, ou seja, 16,46 bilhões, seriam de responsabilidade do poder público, totalizando o custo da Olímpiada em 38,67 bilhões de reais.
No entanto, esse cálculo não inclui itens vinculados à construção dos equipamentos esportivos, não inclui a contrapartida pública na Parceria Público-Privada - PPP do Porto Maravilha, não inclui contraprestação pública em dinheiro da PPP do Parque Olímpico, não inclui contraprestação pública em terrenos de 800 mil metros quadrados da PPP do Parque Olímpico e não inclui isenções e renúncias fiscais. Então, isso altera completamente o valor tanto do custo da Olímpiada quanto a proporção de recursos públicos e privados.
O total de recursos gastos na Olímpiada, segundo os cálculos do Comitê Popular da Copa e das Olímpiadas, alcança 39,12 bilhões de reais, sendo 14,81 bilhões, ou seja, apenas 37,9%, vinculados ao setor privado, e 24,31 bilhões, ou seja, 62,1%, de responsabilidade do setor público. Isso demonstra a ausência completa de transparência do poder público em relação aos gastos nas Olímpiadas. Há uma retórica do poder público e a população fica sem ter noção de qual é o impacto do custo das Olímpiadas no orçamento do estado e do município do Rio de Janeiro.
Por Leslie Chaves e Patricia Fachin
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Megaeventos e a mercantilização das metrópoles brasileiras. Entrevista especial com Orlando Alves dos Santos Junior - Instituto Humanitas Unisinos - IHU