15 Mai 2019
Entidade a ser lançada em Brasília sustenta: “pensamento único” será superado. Papel da profissão é pensar caminhos para garantir bem-estar, igualdade e projetos que resgatem país do atraso e dependência.
O artigo é de Paulo Kliass, doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal, publicado por Outras Palavras, 03-05-2019.
Dia sim, outro também, os grandes meios de comunicação oferecem alguma manchete para seus leitores afirmando que “os economistas” pensam isso ou propõem aquilo. Nossos jornalões e as redes de televisão não se cansam de se apoiar na suposta narrativa técnica, neutra e isentona dessa entidade inatingível chamada de “os economistas” para oferecer suporte para medidas de política econômica de inspiração conservadora. Em geral, diga-se de passagem, trata-se de decisões a respeito das quais a maioria do povo nem imagina a natureza e muito menos as consequências.
Já falei e escrevi milhares de vezes a respeito de tal falácia. Não existe apenas uma única visão a respeito do fenômeno econômico. A economia não é uma ciência ou um campo do conhecimento que possa ser tratado como pertencendo ao ramo das chamadas “ciências exatas”. Muito pelo contrário! A economia é uma ciência social, um filão das tais “ciências humanas”, essas mesmas que o capitão considera desnecessárias e que pretende inviabilizar em nossas universidades a partir de agora.
Como muitas vezes a expressão final das movimentos da dinâmica da economia surge sob a forma de números, os mal intencionados tendem a tratá-la como algo unânime e tecnicamente consensual. No entanto, os resultados de variáveis como índice de inflação, taxa de câmbio, mensuração do Produto Interno Bruto (PIB), taxa de salários, reservas internacionais, balança comercial, superávit primário e tantos outros não têm quase nada de técnico em sua definição ou apuração.
Pouco gente comenta, mas os famosos economistas clássicos como Adam Smith, David Ricardo e Karl Marx tratavam sua área de estudo e pesquisa como sendo “economia política”. Ocorre que, aos poucos, a corrente de economistas mais ligados à tradição anglo-americana no século XX promoveu a sutil subtração do adjetivo “política” dessa expressão. Com isso, a antiga “political economy” transformou-se simplesmente em “economics”. Ao retirar o segundo termo imaginavam que tudo ficaria mais fácil, pois essa coisa de “política” só faz complicar a vida das pessoas.
Toda segunda-feira as editorias de economia em nossas terras abrem suas colunas afirmando que “os economistas” preveem menor crescimento do PIB ou maior taxa de inflação. No entanto, quase nunca explicam que se trata de uma pesquisa encomendada pelo Banco Central (BC) junto à nata do dos dirigentes do sistema financeiro para avaliar a política econômica do governo e as expectativas desse seleto grupo para algumas variáveis relevantes da economia. Assim, fica evidente que a Pesquisa Focus não reflete o pensamento dos economistas em seu conjunto. Na verdade, há muito tempo que a maioria desses profissionais reclamamos por mudanças nesse modo de o BC avaliar a política monetária. Por que não incluir, por exemplo, na amostra da pesquisa professores universitários e pesquisadores de centros independentes dos interesses do financismo?
Em geral, os integrantes do “establishment” tem horror ao debate e à polêmica. Assim, preferem ficar isolados na ilha do conservadorismo da ortodoxia e evitam que vozes dissonantes tenham acesso aos meios de comunicação. Esse é o caso dos momentos em que se propõem ajustes fiscais às custas da maioria da população, como se não houvesse outras formas de se promover algumas mudanças nos rumos da economia. São típicos os momentos de busca de apoio desesperado às medidas de política monetária arrochada, onde a nossa taxa de juros ficou no patamar de campeã mundial sem nenhum tipo de espaço para questionamento no interior da nata das finanças.
Manipulação de dados e informações revelou-se como prática rotineira na tentativa de obter algum grau de apoio às medidas antinacionais, antipopulares e antidemocráticas. Ao envelopar o saber econômico com o véu da coisa técnica e inacessível, as elites evitaram a ampliação do debate a respeito dos rumos do país para o conjunto da população. No entanto, acabaram por entregar o poder de decisão a um reduzido grupo de profissionais umbilicalmente vinculados a uma parcela das nossas classes dominantes – os arautos do financismo.
E com isso foram décadas de ausência de discussão a respeito dos rumos do desenvolvimento ou das funções estratégicas a serem implementadas pelo Estado. Os processos de ajuste macroeconômico foram sempre inspirados na doutrina do neoliberalismo, onde a privatização, a liberalização comercial e a desregulamentação da economia foram apresentadas por esse “sábios” como medidas inescapáveis. Trouxeram até uma sigla do inglês, pois esse debate ocorria também na Inglaterra de Margaret Thatcher, nos Estados Unidos de Ronald Reagan e na União Europeia depois dominada pela troika. TINA, bradavam eles. Era o acrônimo de “threre is no alternative”. Ou seja, aceitem pois não existe alternativa às maldades preconizadas pelo Consenso de Washington.
O Brasil atravessou a maior recessão da sai História entre 2015 e 2016. Nos dois anos seguintes, nosso PIB andou de lado, quase parando. Estamos estagnados, com 13 milhões de desempregados, mais de 27 milhões de pessoas em condições de subutilização de sua força de trabalho e na informalidade. Vivemos um processo trágico de desindustrialização e nos especializamos cada vez mais no retorno às tristes eras do colonialismo, travestido de uma pseudo-modernidade de exportação de “commodities”. Como imaginar que todas essas opções equivocadas possam ter sido adotadas apenas por sua natureza “técnica”? Ao contrário do que tentam nos impor, não existe consenso algum entre os economistas a esse respeito.
O suposto apoio registrado pela grande imprensa dos “economistas” ao longo período do austericídio também se revelou uma grande mentira. A maioria dos profissionais havia aprendido nas faculdades, em seus cursos de introdução à macroeconomia, que a combinação explosiva de juros na estratosfera com cortes draconianos nas rubricas sociais e de investimento do orçamento federal só poderia dar no que deu. Recessão é o seu nome! Aqueles que não concordavam com essa alternativa, alertávamos para os riscos embutidos na política longa de sobrevalorização cambial. Era a festa da classe média se achando poderosa no exterior, a ilusão com bens importados baratos aqui dentro e a destruição completa de nosso parque industrial.
O debate mais recente está centrado, mais uma vez, em torno da Reforma da Previdência. Novamente começa ficar claro para amplos setores de nossa sociedade as manipulações em torno dos pressupostos da PEC 06/2019. Como não há nada de “técnico” na construção das hipóteses, o que resta evidente é a intenção de destruição da previdência social e a tentativa esperta de substituí-lo pelo regime de capitalização dominado pelos bancos e demais instituições financeiras.
Paulo Guedes pode até ser economista de formação e de profissão. Ele foi até transformado no todo-poderoso comandante do Superministério da Economia. Mas é preciso que se diga que ele não foi autorizado por ninguém a se expressar em nome dos economistas. Que fale em nome de seus patrões do financismo. E os grandes meios de comunicação deveriam ter a obrigação de dar voz ao outro lado. Sim, pois há muito mais vozes dissonantes no campo dos economistas do que os espaços minguados que as editorias dos jornalões, às vezes, nos oferecem como se fossem uma esmola – um ato de caridade e misericórdia.
Desde o golpeachment perpetrado contra Dilma – processo levado a cabo sem a existência da menor base legal para tanto – que a questão democrática passou a sofrer ameaças em nosso país. O aprofundamento da crueldade das medidas de ajuste econômico se combinou a medidas de cerceamento dos espaços de liberdade e democracia. O movimento que culminou na eleição de Bolsonaro se valeu da condenação e prisão de Lula em processo que carece de qualquer base jurídica. Desde sua posse em janeiro, o governo do capitão tenta levar ao extremo a destruição da ordem democrática e constitucional vigente desde 1988. A intolerância se soma ao elogio à ignorância para desembocar na esfera perigosa do vale-tudo na defesa do desmonte.
Pois, então, chegou o momento de dar um basta. Um conjunto amplo de profissionais decidiu por abrir canais próprios de interlocução junto à sociedade. Inspirado no exemplo dos juristas, dos jornalistas e outras categorias, está em curso uma iniciativa que visa à criação da Associação Brasileira de Economistas pela Democracia (ABED). A Carta de Princípios da entidade chama atenção para aspectos essenciais como: i) reafirmação do papel histórico dos economistas brasileiros no processo de desenvolvimento nacional; ii) questionamento do processo de desenvolvimento desigual entre os países, aprofundado sob a égide da ideologia neoliberal nesse momento de marcada globalização financeira e intensa concentração de renda, riqueza e poder; iii) combate às profundas desigualdades presentes no país, de matizes sociais e regionais, realimentadas diuturnamente tanto por um pensamento e um sistema econômico excludente; iv) defesa da manutenção do espírito originário dos Constituintes de 1988 que, enfrentando nossa histórica desigualdade, construíram um robusto sistema de proteção social; v) luta incessante a favor da estabilidade das instituições democráticas nacionais; vi) integração às lutas contra o fascismo e o neoliberalismo em âmbito nacional e internacional; entre tantos outros.
Está marcado para o dia 7 de maio um evento de lançamento oficial da nova entidade. O ato será realizado às 10 horas no Salão Nobre da Câmara dos Deputados, em Brasília. O apoio amplo a tal iniciativa permitirá à sociedade brasileira conhecer as outras vozes dos economistas, que não rezam pela cartilha do monocórdio do conservadorismo e do desmonte. A defesa da ordem democrática atualmente sob ameaça é indissociável da luta por uma ordem econômica e social mais justa e sustentável.
Longa vida à ABED!
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Nem todos os economistas se rendem - Instituto Humanitas Unisinos - IHU