24 Julho 2018
Há um elefante na sala da sacristia sobre o qual ninguém fala, pelo menos não de forma saudável.
A reportagem é de Robert Mickens, publicada por La Croix International, 20-07-2018. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
A apenas três dias do início do conclave de 2013, escrevi algumas palavras sobre a decisão do cardeal escocês Keith Patrick O'Brien de não participar da eleição papal.
Poucas semanas antes, ele tinha sido acusado de ter forçado seminaristas e jovens sacerdotes a fazerem sexo com ele (e um dos casos tornou-se um relacionamento) nos anos 80.
O'Brien, que faleceu em março do ano passado, imediatamente renunciou ao cargo de arcebispo de St Andrews e Edimburgo, meses antes de seu 75º aniversário. Ele também anunciou, logicamente por pressão do Vaticano, que não participaria do conclave.
"Não quero chamar a atenção da mídia de Roma - mas sim no Papa Bento XVI e seu sucessor", disse o cardeal.
Pensei – e articulei os motivos para isso alguns anos depois – que O'Brien deveria ter participado do conclave.
"Só alguém muito ingênuo para acreditar que ele é o único dos eleitores que quebrou a promessa solene de permanecer celibatário", escrevi, na edição do dia 9 de março de 2013 do The Tablet. "Deve haver outros. Inclusive outros piores", adverti.
Assim como tantos outros, ouvi histórias sobre outro cardeal, Theodore McCarrick, de Washington, que ficou conhecido pelo hábito de levar seminaristas para uma casa na praia de Jersey Shore e escolher um deles para compartilhar a cama.
Ele chamava os jovens do grupo de "sobrinhos". Eu até conhecia alguns deles, mas eles sempre se mantiveram fiéis aos seus superiores e ninguém os denunciava nem declarava publicamente o que tinham feito. Claro, agora já sabemos que McCarrick fazia até pior. Pelo menos duas pessoas se apresentaram – uma nesta semana – acusando o cardeal não apenas de ter bom gosto para rapazes, mas que também gostava de bolinar adolescentes menores de idade.
Eu já tinha ouvido boatos sobre outros cardeais – e alguns bispos que queriam vestir o chapéu vermelho – que supostamente tinham relações sexuais frequentes com outros homens.
Um deles vivia em uma espécie de parceria doméstica com um homem mais jovem que ele ajudou a ser bispo. Outro tinha uma relação séria com idas e vindas com um ex-padre, que tinha começado na época do seminário.
Também houve boatos sobre certos cardeais em Roma que costumavam dar em cima de guardas suíços ou tiveram “amizades exclusivas” nada castas com jovens sacerdotes que trabalhavam para eles ou eram secretários particulares.
Apesar de a maioria desses casos envolver outros homens (principalmente sacerdotes), falava-se ainda que o líder de um grande escritório do Vaticano havia se envolvido com uma mulher a quem todos sarcasticamente chamavam "a esposa".
A triste saga do cardeal Keith Patrick O'Brien retornou à minha mente por diversas vezes depois das recentes revelações do passado sexual predatório do cardeal McCarrick, o abuso que se revelou no clero no Chile e, agora, a renúncia de um bispo em Honduras. Todos estão de alguma forma relacionados ao abuso sexual de seminaristas e jovens sacerdotes.
Fiquei espantado com a quantidade de pessoas da Igreja que fingiram surpresa ou ficaram revoltadas pelos que afirmam que má conduta sexual desse tipo no alto clero pode ser "galopante". Quantos casos é muito ou pouco para justificar ou rejeitar esse termo?
Também foi decepcionante, embora não seja um grande mistério, que a maioria das pessoas ainda se recuse a ver que há uma questão subjacente a estes casos de abuso ou assédio sexual clerical. Quase todos são praticados contra homens – adolescentes, pré-adolescentes ou jovens.
E apesar de nenhum adulto em boas condições de saúde psicossexual atacar os mais vulneráveis, não se pode negar que a homossexualidade é um componente chave na crise de abuso sexual clerical (assim como na crise de assédio sexual).
Vou ser muito claro: homens gays psicologicamente saudáveis não estupram meninos nem abusam de outros homens sobre os quais exercem algum poder ou autoridade.
Mas não estamos falando de homens psicossexualmente maduros. E os bispos e funcionários do Vaticano se recusam a reconhecer isso. Acabam perpetuando o problema e até mesmo piorando a situação.
Eu apontei esse problema há mais de três anos atrás, em um artigo chamado “In Defense of Cardinal O’Brien… Sort of” (Em defesa do Cardeal O’Brien... de certa forma, tradução livre).
Argumentei que havia boas razões para participar do conclave de 2013. O artigo, publicado em 24 de março de 2015 pela antiga revista Global Pulse Magazine, foi publicado dias depois que o Vaticano anunciou que o cardeal tinha renunciado, por livre e espontânea vontade, "dos direitos e privilégios" — mas, estranhamente, não o título — de cardeal.
Mais estranho ainda foi que autoridades da Igreja disseram que ele podia continuar usando o traje de cardeal, mas apenas em privado.
O cardeal, de 77 anos de idade (ou agora devemos chamá-lo de “cardeal titular" ou "cardeal emérito"?), perdeu o mais importante privilégio e responsabilidade que vem com o chapéu vermelho: votar em um conclave (ele chegou a participar no conclave que elegeu Bento XVI, em 2005).
Naturalmente, não se sabe se O'Brien renunciou porque quis ou se foi pressionado. Mas as pessoas mais sensatas já descobriram. Há outros problemas, ainda mais complexos, em torno desta "renúncia" estranha. (...)
Ninguém parece tocar em alguns aspectos do caso. O primeiro é a homossexualidade no sacerdócio.
Por muito tempo, esse foi um elefante na sala da paróquia.
Eu sei.
E muitas outras pessoas também sabem que Keith O'Brien não é o único cardeal que foi sexualmente ativo durante o sacerdócio.
E não é o único que se envolveu sexualmente com outros homens...
Se estivesse no conclave de 2013, ele poderia ter olhado no olho de vários companheiros, também de vermelho, que também "não estavam dentro dos padrões".
Não é para justificar sua conduta, mas sim para dizer que é preciso acabar com a hipocrisia. Incrivelmente, ainda existem sacerdotes e bispos que negariam ou diriam não saber que existem homens homossexuais no ministério ordenado — mesmo os que permaneceram celibatários. Eles são deliberadamente ignorantes ou apenas descaradamente desonestos?
O cardeal O'Brien e muitos outros sacerdotes e bispos que se envolveram sexualmente com outros homens provavelmente nem diriam que são gays. São produtos de uma casta clerical e um sistema de formação sacerdotal que desestimula e, em alguns lugares, até mesmo os proíbe de serem honestos sobre sua homossexualidade. Infelizmente, muitos destes homens desprezam a si mesmos e são ou se tornaram homofóbicos. Alguns deles tornam-se moralizadores públicos e delatores da homossexualidade, principalmente do mal do chamado "lobby gay" perpetrado na sociedade.
Infelizmente, o cardeal O'Brien, por vezes, era um dos mais descarados deles.
O Vaticano sabe muito bem que muitos sacerdotes e seminaristas são homossexuais. Mas em vez de incentivar uma discussão saudável sobre como os homossexuais podem se comprometer a uma vida de castidade de forma integral, as políticas e a doutrina oficiais da Igreja levam-nos a entrar ainda mais no armário.
E como em qualquer outro lugar escuro e abafado, isso impede o desenvolvimento normal e gera mofo, umidade, distorção e doença. Nada que fica no escuro floresce ou fica saudável.
Ainda em 2005, poucos meses após a eleição de Bento XVI, o Vaticano publicou um documento que reforçava a política de "permanecer no armário", dizendo que os homens de orientação homossexual não deveriam ser admitidos nos seminários.
(Observação: Um dos principais autores deste documento – o Mons. Tony Anatrella, sacerdote e psicoterapeuta de Paris – recentemente foi destituído de suas faculdades sacerdotais após ser acusado de abusar de seminaristas e outros jovens sob seus cuidados.)
E, porém, apesar de tentativas como essas, há padres gays que encontraram um caminho para uma autoaceitação saudável de sua própria sexualidade. Alguns são sexualmente ativos, mas muitos são celibatários. Sem dúvida, estão entre os melhores padres e mais compassivos que temos na Igreja.
Seus companheiros gays com mais conflitos — na verdade, todos os gays e toda a Igreja — teriam grandes benefícios se estes sacerdotes gays saudáveis pudessem compartilhar suas histórias abertamente. Mas os bispos e superiores religiosos os proibiram de escrever ou falar publicamente sobre este âmbito de suas vidas.
Isso também incentiva mais desonestidade e perpetua um sistema com falhas profundas que vai continuar produzindo sacerdotes sem plenas condições de saúde.
Esses padres são produtos do sistema, mas não necessariamente vítimas.
E isso nos traz a um segundo aspecto do caso do cardeal O'Brien: a confluência de suas ações e do abuso sexual clerical.
O cardeal admitiu que era sexualmente ativo com adultos, mesmo antes de se tornar bispo, em 1985. Mas não foi sugerido que havia abuso sexual a menores.
Além disso, três dos homens que publicamente o acusaram de má conduta sexual parecem ser sacerdotes gays. Um deles supostamente teve um relacionamento com O'Brien em algum momento. O outro, um ex-seminarista que foi bolinado pelo cardeal numa noite, agora é casado. Ele ficou traumatizado com o incidente e rejeitou o futuro cardeal, que parece nunca ter voltado a tentar. Algumas coisas que eles o acusaram podem ser classificadas como assédio sexual. E como ocorreram com pessoas subordinadas a ele quando era bispo ou autoridade do seminário, também são abuso de poder.
Mas não se deve confundir com abuso sexual de menores, coisa que algumas pessoas tentaram fazer.
A propósito, isso é mais uma tentativa de não lidar com a questão da homossexualidade.
Mas vamos terminar este texto com as palavras do artigo de 2015:
Muitos fatores contribuíram para que o cardeal O'Brien agisse da forma como agiu por tanto tempo e com aparente impunidade. Mas no fundo os mais graves estão enraizados na cultura (e no armário) clericalista de negação, segredo e poder.
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Má conduta sexual e o alto clero - Instituto Humanitas Unisinos - IHU