Por: Patricia Fachin | 12 Junho 2018
A crise dos governos progressistas latino-americanos que ascenderam ao poder depois dos anos 2000 está relacionada a processos políticos e momentos históricos anteriores, como a eleição de partidos de esquerda na Europa na década de 1980 e suas políticas pragmáticas, e a derrota da experiência do socialismo real e a hegemonia do capitalismo, poucos anos depois. Essa avaliação é feita pelo economista Paulo Kliass, ao rebater as análises de que os chamados governos progressistas da América Latina não foram de fato governos de esquerda. “Se quisermos pensar os casos dos países latino-americanos nesses últimos anos, é difícil dizer que houve um projeto claro que poderíamos chamar de progressista, o qual era limitado intencionalmente; o processo é o contrário. Não existia um projeto e, por não existir uma clareza, cada país com sua particularidade teve governos limitados justamente pela questão de uma necessidade pragmática de estabelecer o governo”, resume.
Segundo Kliass, os acontecimentos dos anos 1980 e 1990 implicaram em uma “falta total de referência do que seria uma política de esquerda” para os governos futuros e tiveram um “reflexo para o conjunto das forças de esquerda no mundo, uma espécie de perplexidade, uma necessidade de se refundar e de buscar novos caminhos”.
Quase duas décadas depois desde a emergência de governos progressistas na América Latina, a crise da esquerda na região, adverte, pode ser compreendida justamente pela falta de um “embasamento ideológico e clareza política de que projeto queriam, principalmente no que se refere à questão da distribuição de renda e de transformações de natureza estrutural. Mas eles estavam surfando na facilidade das contas externas por causa da venda das commodities, que possibilitou recursos para desenvolverem políticas públicas de natureza inclusiva e, do que chamamos genericamente, desenvolvimentista”.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, Paulo Kliass analisa especificamente a situação do Brasil nesse contexto de crise e pontua que não dá para ignorar a gravidade da crise brasileira. “O próximo governo vai iniciar janeiro de 2019 com uma previsão de déficit fiscal da ordem de 160 bilhões de reais. Então, vai ter alguma dificuldade para administrar essa crise até atingir o momento em que se espera que seja o de retomada do crescimento. Isso para dizer que há uma diferença muito grande em comparação com o momento em que Lula ganhou a eleição em 2003”, conclui.
Paulo Kliass | Foto: Flickr Creative Commons
Paulo Kliass é graduado em Administração Pública pela Fundação Getulio Vargas – SP, mestre em Economia pela Universidade de São Paulo - USP e doutor na mesma área pela Université de Paris 10. Desde 1997 é integrante da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental, vinculada ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.
Confira a entrevista.
IHU On-Line — Qual seu diagnóstico sobre o atual momento político do país, faltando alguns meses para as eleições presidenciais?
Paulo Kliass — Este é um dos momentos mais críticos da situação política que o país está atravessando, porque depois da aventura irresponsável que foi o processo de impeachment da presidente Dilma — sem nenhuma base legal ou jurídica — acabamos entrando em um “vale tudo” do ponto de vista da articulação política e dos encaminhamentos de algum projeto de país. Esse movimento começou antes da posse do segundo mandato de Dilma: houve um questionamento do resultado das eleições, e Aécio Neves entrou no Tribunal Superior Eleitoral – TSE pedindo anulação das eleições. Depois, por mais que a presidente Dilma tivesse feito uma guinada extremamente inesperada à direita, nomeando Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda, criou-se uma situação que estou chamando de “vale tudo”, onde não há mais respeito pela ordem democrática, pela ordem constitucional, nem por um jogo de alguma responsabilidade do ponto de vista das instituições.
Uma parte do grupo que usurpou o poder já estava nos próprios governos dirigidos pelo PT; basta olharmos os ministros que eram do governo de Dilma e de Lula e que ficaram com Temer. Com isso, houve uma tentativa, principalmente por uma parcela do PMDB, liderada pelo ministro Moreira Franco, de fazer uma espécie de programa que tivesse alguma credibilidade junto ao mercado financeiro e à parcela das elites brasileiras. Deste modo, lançaram um programa — Ponte para o Futuro — em que se propõe o aprofundamento do processo de liberalização de todas as regras do plano econômico, o desmonte do Estado e a privatização das empresas estatais, além da reforma trabalhista, no sentido da flexibilização e do desmonte dos direitos assegurados pela CLT, e da reforma previdenciária, retirando direitos também. Eles acreditavam que nesses dois anos antes da eleição haveria tempo suficiente para “arrumar a casa” e se credenciar para, eventualmente, continuar no poder após as eleições que ocorrerão em outubro.
No entanto, deu tudo errado. O aprofundamento da política do austericídio, que é a combinação perversa de uma política fiscal restritiva de corte de gastos, por um lado, com uma política monetária e com uma taxa de juros oficial do governo extremamente alta, sob o argumento equivocado de um risco de retorno da inflação, só poderia provocar o que estamos vivendo: uma recessão estupenda. O Brasil em 2015, 2016 e 2017 passou pela maior recessão da sua história, porque impediu o investimento através das taxas de juros elevadas e continuou estimulando o rentismo. Por outro lado, cortada a capacidade do Estado de recuperar algum protagonismo no meio dos cortes orçamentários, foi reduzida a capacidade da economia de ter algum fôlego ou alguma recuperação.
Este quadro que vivemos, de uma trajetória de ladeira abaixo a partir de 2015, em algum momento iria tocar o “fundo do poço”. Os economistas vinham tentando adivinhar se a economia já havia atingido o fundo do poço a cada nova notícia ruim que era divulgada, mas estava claro que o Brasil não iria passar o resto da eternidade em recessão. Agora, o problema é que a recuperação está sendo muito lenta e estamos tendo números pouco expressivos do ponto de vista do emprego: estamos com 14 milhões de desempregados, segundo a pesquisa mais recente da Pnad Contínua do IBGE. Isso demonstra que a precarização do mercado de trabalho se aprofundou não só pela crise, mas também pela aprovação da reforma trabalhista: pessoas em condições inadequadas de trabalho chegam a quase 25 milhões. Além disso, empresas estão falindo e as pessoas estão torcendo para que as eleições aconteçam o mais rápido possível para acabar com esse pesadelo.
Apesar de o governo atual estar com índices de popularidade rastejante — próximos de zero — não se conseguiu articular uma capacidade de resistência política que oferecesse uma alternativa política institucional. Isto é, o movimento contra o impeachment, o movimento contra a prisão e o julgamento inadequado do presidente Lula também não lograram mobilizar a massa da população para ir para as ruas e se apresentar como uma alternativa ao poder. Toda aquela palavra de ordem do “fora Temer” obviamente perde muito do seu apelo neste momento.
Por mais críticas que se possa fazer aos governos de Dilma ou mesmo de Lula, a maioria da população percebe que perdeu muito com a mudança de governo. Tanto é que o presidente Lula, mesmo preso, continua liderando as pesquisas, porque a população identifica que aquele momento, aquele período e aquele projeto de país dizia muito mais do que o momento que vivemos agora, que é um momento de desmonte e de entreguismo exacerbado. O mais impressionante é que as forças que apoiaram e que apostaram no “golpeachment” — como eu chamo o golpe com o impeachment da presidente Dilma — não estão conseguindo resolver suas questões de arranjo político e eleitoral. Eles acreditavam que tudo seria muito fácil: primeiro tirariam a presidente Dilma, depois colocariam a equipe dos sonhos na economia, com dois banqueiros, Henrique Meirelles na Fazenda e Ilan Goldfajn no Banco Central, e tudo se normalizaria rapidamente, a economia voltaria a crescer, a população se identificaria com o novo cenário e o candidato desse grupo em 2018 ganharia as eleições. No entanto, como se diz no futebol, “faltou combinar com os russos”, e a população não foi chamada a dar sua opinião a respeito disso.
Então, quem é o candidato que se indica na herança do golpe? Ninguém. Meirelles saiu do governo e já está dizendo que não tem nada a ver com Temer. O presidente não pode ousar se candidatar, e [Geraldo] Alckmin representa a parcela tucana do governo Temer, porque o PSDB deu todo seu apoio ao impeachment e participou da formulação em áreas estratégicas do governo.
Nesse cenário, Alckmin não decola. As tentativas de [Luciano] Huck, Joaquim Barbosa e Flávio Rocha não conseguem empolgar o eleitorado. Todos eles fizeram campanha sem pudor, de modo irresponsável do ponto de vista político no combate aos governos desenvolvimentistas, e a resposta eleitoral e política acabou sendo o fortalecimento de uma candidatura da extrema-direita, a de [Jair] Bolsonaro. Ele se apresenta perante o eleitorado como o autenticamente anti-PT, anti-Lula, anti-Dilma e tudo mais que está aí. Rodrigo Maia é outro que também não consegue se eleger. Veja, o presidente da Câmara não consegue ter, minimamente, um percentual de votos para se candidatar a ser o representante dessa direita num eventual segundo turno. Portanto, estão desesperados.
Não descarto, inclusive, de maneira nenhuma, que possamos ter um adiamento das eleições, pois tem sempre uma Emenda Constitucional de plantão para dar voz a esse tipo de sugestão. Cabe às forças democráticas e progressistas denunciarem esse tipo de discurso oportunista de que o Brasil tem muitas eleições, que se para tudo a cada dois anos e que é preciso adiar as eleições de 2018 para 2020. Depois de todo o esforço que fizeram para tirar Dilma, para fazer o golpe, tomar o poder, será que agora vão “passar o bastão” para um projeto ao qual haviam se oposto?
Por mais que, eventualmente, Lula não consiga se credenciar como candidato em função da arbitrariedade e das injustiças presentes no processo e na prisão dele, o fato é que a tendência do eleitorado é retomar o processo de inclusão, de redistribuição de renda e apostar em um projeto que aponte para a necessidade de um protagonismo do Estado. E, se o candidato da direita não empolgar e se o candidato da extrema-direita — Bolsonaro — for para o segundo turno, existe essa possibilidade realmente de uma polarização perigosa. Mas, de alguma forma, isso também aponta para a chance de superarmos essa fase de pesadelo e terror e voltarmos a um projeto de desenvolvimento econômico e social.
IHU On-Line — Por quem esse projeto desenvolvimentista ao qual você se refere poderia ser adotado? Vislumbra essa possibilidade em uma candidatura única entre o PT e Ciro Gomes?
Paulo Kliass — É difícil de fazermos previsão, principalmente na política brasileira e no momento atual. A candidatura de Lula, como ele não está podendo falar, em razão da prisão, tende a reafirmar o que foram os programas do PT no seu período no poder. Então, por mais críticas que possamos fazer ao programa do lulismo, ele era, inequivocamente, um projeto progressista do ponto de vista político e do ponto de vista econômico e social.
A candidatura de Ciro Gomes é uma incógnita, porque o Ciro é uma pessoa muito inteligente e capaz e está sabendo adotar um discurso que empolga uma parcela que poderíamos chamar de os “herdeiros da época do lulismo”. Ciro tem um discurso duro contra a direita, as elites e os golpistas. Ele afirma, claramente, um projeto ancorado mais à esquerda, mas é muito difícil saber o que será o governo do Ciro, principalmente se olharmos o passado político dele: é uma pessoa que já esteve na Arena, no PMDB, no PSB, agora no PDT, ou seja, tem uma trajetória que é muito incerta. Uma incógnita que está colocada é essa história de, eventualmente, o Benjamin Steinbruch ser seu vice. Então, apesar de estar fazendo um discurso mais à esquerda para obter o apoio político e eleitoral dessa parcela, por outro lado, inequivocamente, fará alguma composição com os setores ou da direita ou das elites, e será difícil saber o que aconteceria em um governo seu. Pelo menos, do ponto de vista do discurso, ele está assumindo bandeiras como a da revogação da Emenda Constitucional 95, a qual congelou os gastos por 20 anos, e fala de uma reforma tributária progressiva que passa a taxar patrimônio e renda ao invés de taxar consumo. Mas existe uma dúvida com relação à sua postura acerca da Previdência.
Entre os outros partidos mais à esquerda, tem o PSOL, com a candidatura de [Guilherme] Boulos, que tem um programa também muito parecido com o do desenvolvimentismo e que aposta numa reforma tributária progressiva. A Manoela [D’Ávila], do PCdoB, também tem propostas muito parecidas. Eventualmente o candidato mais votado será o Ciro ou alguma candidatura ligada ao lulismo, talvez o próprio Lula. Esperamos que ele consiga se candidatar, porque seria uma loucura impedir essa candidatura nessas circunstâncias, uma vez que as pesquisas mostram que ele tem uma capacidade muito elevada de transferência de voto. Logo, essa é uma conta simples de padaria: Lula está com mais de 30% das intenções de voto e se ele consegue transferir ao menos 50% ou 60% desses votos, ele já se credenciaria para ser candidato ou credenciaria o candidato que ele ou o PT ou o lulismo indicarem para disputar o segundo turno com Bolsonaro.
IHU On-Line — O senhor já declarou em seus artigos que falta à esquerda uma proposta clara de país. Por que isso acontece neste momento, depois de quase quatro gestões petistas à frente da presidência? Pode nos dar alguns exemplos de como essa falta de clareza se manifesta nos discursos à esquerda?
Paulo Kliass — Essa pergunta é para escrevermos algumas teses de doutorado [risos], mas vou tentar respondê-la. Esta é a grande questão que todos estão, dentro e fora do país, se perguntando: o que aconteceu? Do meu ponto de vista, esses processos políticos não são algo recente, mas têm a ver com momentos históricos anteriores.
Esse processo tem seu início na década de 1980, quando houve, pela primeira vez, a possibilidade da chegada de partidos de esquerda ao poder no espaço europeu. Simbolicamente, por mais que tivéssemos os partidos da social-democracia nos países escandinavos, o que é algo um pouco à parte, o fato de ter havido a eleição de François Mitterrand, do Partido Socialista Francês, a eleição do Partido Socialista Operário Espanhol - PSOE na década de 1980, com Felipe González e, de alguma maneira, a forma como o Partido Comunista Italiano - PCI antecipava o eurocomunismo, liderado por Enrico Berlinguer, se combinou com um momento muito dramático do ponto vista ideológico da hegemonia das ideias do neoliberalismo. O neoliberalismo é aquela ideia de que tem que reduzir o tamanho do Estado. Ou seja, o neoliberalismo parte da proposta de que é preciso ter um projeto de Estado mínimo, de que tem que liberalizar completamente a economia e privatizar as empresas estatais.
Quando esses partidos socialistas e de esquerda chegaram ao poder, havia uma grande expectativa de mudança por parte do eleitorado dos seus países e da população progressista em geral, mas eles optaram por uma política que depois ficou conhecida como social-liberalismo. Tratava-se de uma acomodação à ordem ideológica e a uma espécie de pragmatismo do ponto de vista da condução da política econômica e da política social. Então, socialistas na França e na Espanha implementaram a política do neoliberalismo, do Consenso de Washington: eles privatizaram, promoveram políticas fiscais extremamente draconianas, tiveram uma postura relativamente dócil no que se refere à construção europeia em bases ortodoxas; esse foi um primeiro momento.
Na sequência ocorreu outro fato político importantíssimo, que foi a queda do Muro de Berlim, no final da década de 1980, e a falta total de referência do que seria uma política de esquerda em função do desmoronamento — por mais críticas que pudesse haver — do que se chamava de socialismo real na União Soviética e nos países do leste europeu. Mas aquilo significou, de alguma maneira, também uma derrota política e ideológica para as forças de esquerda. Ou seja, era uma experiência concreta de socialismo que estava sendo abandonada, derrotada e derrubada em alguns países. Cada país fez a sua transição particular, mas a ordem do capital, de algum modo, foi vencedora. Isso acabou tendo um reflexo para o conjunto das forças de esquerda no mundo, uma espécie de perplexidade, uma necessidade de se refundar e de buscar novos caminhos. Ainda que esse processo de autocrítica e de consolidação de uma alternativa não tenha tido efeito, de repente — mas não tão de repente assim — houve um fenômeno de ressurgimento de forças de esquerdas, no início do terceiro milênio, na América Latina. Isso começou no Brasil, depois no Uruguai, na Bolívia, no Equador, na Venezuela, que estavam numa trajetória de partidos mais à esquerda, mas não partidos tão “radicais” como os que mencionei anteriormente. Diante de realidades tão desiguais e díspares como as desses países da América Latina, o discurso mais à esquerda, mais desenvolvimentista e mais progressista ganhou força. Entretanto, a forma como esses governos tentaram tratar a questão da mudança das suas próprias sociedades não estava muito clara, tanto que o único que incorporou a palavra “revolução” com o qualificativo “bolivariano” foi [Hugo] Chávez, que deu origem ao processo venezuelano. Os outros todos não se propunham a ser governos revolucionários.
Não estou fazendo uma crítica, mas apenas afirmando que esses eram governos que se propuseram a reformar suas sociedades nos seus aspectos mais gritantes de desigualdade: a questão da renda, do patrimônio, dos territórios, por exemplo, tanto na Bolívia quanto no Brasil, na Venezuela e também no Equador, a questão da identidade dos povos originários etc. Além disso, na Argentina houve o governo inesperado do kirchnerismo. Néstor Kirchner não foi uma pessoa que tinha um passado de esquerda, como foram Lula, [José] Mujica e Chávez. Mas todos esses países estavam de algum modo nessa onda do que ficou sendo chamado de uma espécie de “bolivarianismo latino-americano”.
Porém faltava a esses governos um embasamento ideológico e clareza política de que projeto queriam, principalmente no que se refere à questão da distribuição de renda e de transformações de natureza estrutural. Mas eles estavam surfando na facilidade das contas externas por causa da venda das commodities, que possibilitou recursos para desenvolverem políticas públicas de natureza inclusiva e, do que chamamos genericamente, desenvolvimentista.
Analisando especificamente o caso do Brasil, como não se realizou nenhuma reforma mais estrutural do ponto de vista das mudanças que se pretendiam fazer, então tudo dependia basicamente da vontade, da liderança e da popularidade do presidente Lula, que conseguiu empolgar setores da burguesia nesse projeto, enquanto ele estava funcionando. Mas depois o “castelo de cartas” desmoronou, e o programa implementado não tinha nenhuma ancoragem institucional, nem mesmo constitucional em aspectos elementares. Por exemplo, não foi feita uma reforma tributária que deixasse a natureza regressiva da nossa tributação para algo mais progressivo, nem uma reforma que mexesse nos meios de comunicação. Não se fez nada porque havia uma ilusão de que seria possível cooptar setores da burguesia uma vez que a economia estava crescendo. Além disso, não se tocou no setor financeiro e o poder das finanças continuou não só inalterado, como foi fortalecido.
A opção política de Lula nos seus dois mandatos fez com que ele chamasse para ser o presidente do Banco Central um indivíduo que era presidente internacional do Bank of Boston [Henrique Meirelles], que era um dos maiores credores da dívida externa brasileira. Do ponto de vista simbólico, foi uma loucura trazer o representante máximo do financismo para ter autonomia completa na condução da política monetária. O governo Lula desenvolveu, durante oito anos, a política monetária mais ortodoxa e conservadora que poderia ter desenvolvido — o Brasil foi campeão mundial da taxa de juros — e não fez absolutamente nada a respeito do sistema financeiro.
Dilma tentou mudar esse cenário no período de um ano, entre 2012 e 2013, mas não aguentou o tranco, porque o jogo é pesadíssimo. Ela recuou e os banqueiros continuaram dominando a política econômica, em especial a política monetária. Esse é outro aspecto de como não se tinha clareza do ponto de vista de um programa de esquerda para tocar as tarefas, que são tarefas básicas de uma sociedade que precisa ser mais justa, menos desigual e mais solidária. Para se conseguir, minimamente, algum avanço era necessário um pouco mais de clareza e de definição do ponto de vista ideológico, porque, apesar de tudo, a luta de classes existe: existe o interesse do capital e o interesse do trabalho. Dentro do capital temos frações diferenciadas com interesses diferenciados, mas é preciso tratá-los do ponto de vista de uma sociedade que é desigual.
IHU On-Line — Alguns autores têm feito uma distinção entre progressismo e esquerda, afirmando que os últimos governos da América Latina foram progressistas e não de esquerda, porque eles têm três características: o fetichismo do progresso, um apego ao Estado e secundarizam as questões ambientais. Como avalia esse tipo de análise à luz do que acabou de mencionar, isto é, que faltou clareza política e ideológica à esquerda após o fim do socialismo real?
Paulo Kliass — Se quisermos pensar os casos dos países latino-americanos nesses últimos anos, é difícil dizer que houve um projeto claro que poderíamos chamar de progressista, o qual era limitado intencionalmente; o processo é o contrário. Não existia um projeto e, por não existir uma clareza, cada país com sua particularidade teve governos limitados, justamente pela questão de uma necessidade pragmática de estabelecer o governo.
Costumo fazer uma anedota com relação à questão do primeiro mandato de Lula, em 2002, quando ele ganhou as eleições, em outubro, e de repente caiu na real e disse: “E agora, como vou fazer para governar este país?”. É como se não estivesse muito preparado, porque o PT sempre foi um partido de oposição. É mais fácil estar na oposição e criticar do que estar na situação e fazer, mas ele não tinha um programa claro no período entre outubro de 2002 e janeiro de 2003, tanto que ficou muito sujeito a circunstâncias muito pouco institucionais; ficou personalizado.
O drama do assassinato de Celso Daniel, que seria, segundo fontes internas do PT, o responsável pelo programa e pela transição, gerou um caos e de repente houve a ascendência de um indivíduo que até então era muito pouco conhecido ou presente no PT, que era o [Antonio] Palocci, mas que já tinha a experiência de ser um neoliberal — ele praticou o neoliberalismo na prefeitura de Ribeirão Preto muito antes de o PT ter se transformado em um partido mais da ordem, mais aceitador das regras impostas pelas classes dominantes. Palocci assumiu após a morte de Celso Daniel e virou o responsável, junto com José Dirceu, pelo programa do PT. Mas foi Palocci quem fez toda a ligação com o sistema financeiro, virou ministro da Fazenda e combinou o jogo com Meirelles.
O PT queria fazer um governo progressista limitado? Não sei se ele queria ou não, mas na prática acabou fazendo isso. Ao não ter as condições políticas para fazer mudanças estruturais ou optar por não fazer mudanças estruturais, o PT acabou abandonando o que seria, teoricamente, um projeto de esquerda. O que seria um projeto de esquerda também é muito polêmico, isso depende de cada interlocutor, pois cada um terá uma visão diferente do que deveria ter sido feito. O governo de esquerda passou a ser aquilo que estamos classificando genericamente como “governos progressistas”, que se apegaram aos três pontos que você mencionou.
Primeiro, há uma coisa genérica do progressismo, que podemos associar a uma ideia do desenvolvimentismo, a ideia de que temos problemas estruturais — recuperando um pouco do desenvolvimentismo clássico de Celso Furtado e de Raul Prebisch — na sociedade latino-americana que precisam ser superados: basicamente, o problema da distribuição de renda, problemas estruturais no setor externo e na superação dos entraves da industrialização.
Por outro lado, esses governos perceberam que sem protagonismo do Estado não se consegue desenvolver políticas públicas para superar essas contradições. Portanto, temos um momento, em relação ao período da década de 1990, de uma espécie de mudança de rota: ali era o momento supremo do apogeu do neoliberalismo, da privatização, do Estado mínimo — tínhamos isso no Chile, na Argentina e no Brasil. Na entrada dos anos 2000 temos uma reversão não no sentido da mudança radical, mas de uma recuperação da capacidade do Estado, seja através de empresas estatais, seja através de recursos fiscais do orçamento.
E, finalmente, o outro aspecto levantado, que realmente não foi tocado, principalmente no caso brasileiro, é a questão ambiental. Nesse caso, se for preciso estabelecer um projeto que incorpore a questão da sustentabilidade em um sentido amplo — sustentabilidade social, econômica e ambiental —, estaremos na contramão de tudo que é minimamente necessário. Como uma das âncoras de sustentação desse modelo foi o agronegócio intocado, ou seja, o agronegócio no modelo e no formato que os dirigentes do agronegócio pretendem, estamos absolutamente em rota de colisão com aquilo que seria minimamente um projeto de sustentabilidade.
Talvez este momento de crise tenha alertado ou chamado a atenção para algumas mudanças do ponto de vista da matriz energética, da substituição das termoelétricas por energia solar ou eólica. Mas, por exemplo, nada foi feito do ponto de vista do acidente da Vale em Mariana (MG). Então, as práticas predatórias do grande capital continuam, para não dizer as práticas predatórias sociais, ou seja, o agronegócio é campeão no uso de trabalho escravo. Isso é considerado um tabu, porque não é possível criticar, investigar ou criminalizar o agronegócio, pois, afinal de contas, esse é o grande setor que está contribuindo para que o Brasil não se aprofunde ainda mais na recessão.
Os processos vividos pelos países da América Latina abandonaram aquilo que eventualmente poderia ter sido, em algum momento, um projeto de esquerda, mas se mantiveram, minimamente, no sentido do progresso, porque contavam com a facilidade da ordem econômica internacional, em que o valor das commodities assegurava aos Estados os recursos necessários para fazer aquilo que chamávamos de política de “ganha-ganha”. Essa foi a expressão máxima do lulismo, em que ele conseguiu contentar todo mundo, ou seja, os setores da burguesia ganharam muito mais do que a grande maioria da população, mas o que a população ganhou, do ponto de vista das políticas, como a do salário mínimo, do Bolsa Família, da agricultura familiar, da distribuição de renda, foi inequívoco. Mas os recursos eram tantos que a desigualdade — se pegarmos o topo da pirâmide — se aprofundou, porque os muito ricos ganharam muito mais dinheiro do que os muito pobres.
IHU On-Line — Os governos ditos progressistas também ficaram conhecidos por serem governos desenvolvimentistas, especialmente no caso brasileiro. Inclusive esse termo tem sido criticado por parte da esquerda, porque o desenvolvimentismo é associado à construção de grandes obras, a exemplo das hidrelétricas que foram feitas. O senhor, de outro lado, vê o desenvolvimentismo, ao menos tal como formulado por Darcy Ribeiro, como positivo para o país. Ainda há espaço para o desenvolvimentismo no Brasil? Se sim, em que ele se diferencia do desenvolvimentismo da Cepal e do lulismo?
Paulo Kliass — Tudo passa por uma questão de definição. O desenvolvimentismo, genericamente, está fazendo 70 anos neste ano. A Comissão Econômica para a América Latina e Caribe - Cepal tinha essa iniciativa desenvolvimentista porque o mundo pós-guerra precisava ser reconstruído. E, de alguma maneira, o Plano Marshall, para reconstrução da Europa, foi um pouco nessa mesma linha. Pensadores como Celso Furtado e Raul Prebisch tinham uma visão particular sobre esse processo no terceiro mundo e nos países latino-americanos. Porém, falar em desenvolvimentismo sete décadas após o surgimento da Cepal faz uma grande diferença, porque o mundo mudou, a América Latina mudou e os países, de alguma maneira, superaram algumas das dificuldades que tinham. Por exemplo, o Brasil na década de 1940 era um país estritamente agrário, mas hoje é um país que passou por um processo profundo de urbanização e industrialização. Nesse processo houve uma atualização dos conceitos associados às correntes históricas do desenvolvimentismo: hoje existe neodesenvolvimentismo, o novo desenvolvimentismo, o social-desenvolvimentismo e o desenvolvimentismo liberal.
Obviamente que cada uma dessas correntes terá uma visão específica de como resolver as questões que o país enfrenta, porque de fato não dá mais para fazermos uma leitura ortodoxa e descontextualizada das proposições de Celso Furtado. Por exemplo, a questão externa mudou muito de natureza, pois quando eles estudavam e pensavam os países latino-americanos, e o Brasil em especial, existia um problema essencial que era a dívida externa. Hoje a dívida externa brasileira — não a dívida pública — não é tão problemática. Os países na década de 40 tinham que superar a questão da industrialização, mas hoje nós temos um parque industrial e o nosso problema agora é o contrário, é o processo de desindustrialização. O campo, que era sempre qualificado como o setor mais atrasado, contraditoriamente, no caso brasileiro, por mais que possamos fazer as críticas necessárias, é o que está dando fôlego para a atividade econômica não ter afundado completamente.
Você me pergunta se existe ainda espaço para um projeto de desenvolvimentismo. Minha resposta é a seguinte: para algum tipo de desenvolvimentismo sempre haverá espaço enquanto a sociedade estiver passando por uma situação de desigualdade estrutural como a que estamos vivendo. Só que os projetos desenvolvimentistas de hoje não são exatamente os mesmos das situações anteriores em que o desenvolvimentismo se colocava à frente dos desafios que se tinha naquele momento. Por exemplo, a questão ambiental é fundamental nos dias de hoje. Portanto, o Brasil precisa, para qualquer projeto futuro de nação, de uma base produtiva para seu funcionamento. Isso significa, concretamente, que é preciso ter energia para gerir sua própria sociedade. Temos a facilidade de que os recursos naturais no país são abundantes e amplos. Então, existem várias opções de matriz energética.
Uma das críticas que se faz ao desenvolvimentismo é a construção das hidrelétricas. Assim, o projeto do desenvolvimentismo é supostamente aquele que envolve grandes obras, mas não necessariamente o projeto desenvolvimentista precisa envolver grandes obras. Entretanto, qualquer país que pretenda se consolidar precisa ter um projeto de integração via transportes, um sistema que produza energia para o funcionamento da própria sociedade; essa é a ideia de progresso. O elemento da sustentabilidade veio para matizar o tipo de opção que se faz. Então, por exemplo, cortar o país de alto a baixo com estradas e fazer com que a soja e os produtos gerados pelo agronegócio saiam de Mato Grosso, atravessem milhares de quilômetros para desembocar em portos de Paranaguá, Santos e Vitória, para serem exportados e fazer esses trajetos em caminhão, é o projeto mais irracional do ponto de vista econômico e ambiental que se possa imaginar.
Essa é uma questão que tem que ser colocada, mas é uma questão difícil, porque a opção pelo rodoviarismo dos anos 50 e 60 ainda está consolidada. À época se dizia: “Governar é abrir estradas”, ou seja, governar era colocar caminhão na estrada. Abandonou-se a ideia de ferrovias, porque se identificava a ferrovia com o atraso, enquanto o moderno era o ônibus e o caminhão; e foi um desastre. No que se refere à geração de energia, as grandes hidrelétricas em evidência, como Belo Monte e outras na Amazônia, acabam gerando um prejuízo ambiental, quando seria possível suprir a necessidade energética com modelos que não seriam tão agressivos ao meio ambiente.
Agora, é importante dizer que um projeto de desenvolvimento, um projeto de inclusão e futuro implica incorporar elementos de melhoria da qualidade de vida da população, e isso significa que tem que se promover mudanças positivas na estrutura social, econômica e política dos países. Do contrário, acabamos assumindo, em relação ao meio ambiente, uma postura de “santuário” que é equivocada: preservar o meio ambiente do jeito que está, de modo que as áreas fiquem inacessíveis e o país deixe de ter uma relação positiva com todo esse potencial. Dizer que a Amazônia deve ser preservada não significa que ela deva ficar inacessível. Existem métodos e técnicas de produção e estabelecimento da relação do ser humano com o meio ambiente que não implicam em ter que reproduzir técnicas de milênios atrás, onde as sociedades eram muito menores do que as que temos hoje. Essa relação dialética do ser humano com o meio ambiente é importante no sentido da preservação, mas não pode ser um elemento de proibição no sentido de que a natureza é intocável. Isso também não contribui.
IHU On-Line - Você tem enfatizado nos seus artigos que o “debate eleitoral deve colocar com mais ênfase a questão das alternativas para a economia de nosso país”. O que é urgente de se pensar em termos econômicos para o país? O que seria um modelo econômico de esquerda para o Brasil?
Paulo Kliass – O primeiro ponto é o seguinte: infelizmente, como não aproveitamos esses 14 anos em que o PT esteve no poder para fazer mudanças estruturais do ponto de vista econômico, tudo aquilo que tinha sido obtido nos períodos de crescimento desapareceu e estamos enfrentando hoje uma crise econômica seríssima. Então, não dá para ignorar a gravidade da crise, a começar pela recessão, o desemprego e a questão fiscal. O próximo governo vai iniciar janeiro de 2019 com uma previsão de déficit fiscal da ordem de 160 bilhões de reais. Então, vai ter alguma dificuldade para administrar essa crise até atingir o momento em que se espera que seja o de retomada do crescimento. Isso para dizer que há uma diferença muito grande em comparação com o momento em que Lula ganhou a eleição em 2003.
É preciso ter dois tipos de preocupação. Uma preocupação conjuntural, de curto prazo, para resolver essas questões básicas da crise mais emergencial e, ao mesmo tempo, lançar as bases para um projeto de médio e longo prazo. Isso significa, num primeiro momento, fazer uma revogação de mudança legal e constitucional das amarras produzidas pelo golpe durante os dois últimos anos. Concretamente é preciso revogar a emenda constitucional 95, sobre o congelamento do gasto, porque isso será um tiro no pé de qualquer governo que chegar, pois ele será acusado de crime de responsabilidade e vai ser objeto de impeachment.
O segundo ponto é a revogação da legislação trabalhista. Banalizamos a questão da precarização, e o que era para ser uma exceção, do ponto de vista do trabalho, vai acabar sendo a regra. Além disso, tem que se promover uma reforma tributária que seja de mudança de orientação. Estamos saindo daquele discurso que a burguesia e o empresariado sempre tiveram, do alto custo Brasil, da carga tributária elevada etc. A carga tributária brasileira, comparada com padrões internacionais, não é elevada, e o pouco que ela tem de significativa é que ela é regressiva, porque quem paga tributo no Brasil é a base da pirâmide, enquanto o topo da pirâmide é basicamente inatingível do ponto de vista da tributação, pois o grosso do nosso tributo é sobre o consumo.
Nos países modernos existe uma opção diferente, a chamada tributação progressiva, que tributa mais quem tem mais renda e patrimônio. No Brasil existem poucos impostos sobre renda e patrimônio. Embora a Constituição preveja desde 88 a regulamentação de um imposto sobre grandes fortunas, isso nunca foi tocado — Fernando Henrique Cardoso apresentou um projeto antes de ser presidente, mas o tema foi esquecido. O Brasil é um dos poucos países do mundo que isenta lucros e dividendos, o que é uma loucura. Além disso, há praticamente uma isenção sobre as atividades financeiras — existe um imposto sobre atividades financeiras, mas ele é ridículo. A CPMF, que era uma possibilidade, apesar das críticas, foi esquecida e não foi substituída. A CPMF ou um modelo parecido de tributação tem a facilidade de identificar o caminho do dinheiro, quer dizer, reduz muito a possibilidade de sonegação e lavagem de dinheiro. Então, esse é um imposto importante do ponto de vista da contribuição, porque permite a transparência em relação aos impostos.
Uma questão simbólica, mas que é muito importante, é a tributação de determinados bens. No caso dos impostos estaduais, tributa-se o uso de veículos automotores através do IPVA, mas a tradição brasileira isentou o imposto de iates e jatinhos. Alguém pode dizer que esse tipo de imposto representa pouco do ponto de vista de recursos, e é verdade, mas é simbólico do ponto de vista da população, para dizer que as elites que têm jatinho, iate e helicóptero também estão pagando o seu tributo. Da mesma forma, o imposto sobre herança: qualquer país capitalista decente tributa herança, até porque, pela lógica da meritocracia, a pessoa que herda uma herança não fez nada; quem fez foi o pai ou a família. Então, a sociedade merece ter uma participação sobre aquela apropriação de patrimônio que não foi fruto daqueles indivíduos.
Existe um setor que foi pouco trabalhado, que é o da exportação. O Brasil tem um imposto de exportação que não precisa nem de lei para entrar em vigor, basta uma medida do Ministério da Fazenda para taxar as exportações. Então, a tonelada de soja poderia receber uma alíquota X, a tonelada de minério de ferro, uma alíquota Y, o barril de petróleo exportado pela Petrobras, uma alíquota Z, ou seja, se tributariam as commodities. Se o Brasil quiser desenvolver um setor exportador, poderia dar algum tipo de benefício tributário para esse setor ter concorrência internacional, mas a soja, o açúcar, o minério de ferro não precisam disso, porque os preços desses produtos são dados pelo mercado internacional. O Brasil teria apenas que solicitar de setores que nunca contribuíram, do ponto de vista do tributo, como é o caso do agronegócio, que agora eles passem a contribuir, porque o dono da empresa do agronegócio retira sua renda em forma de lucros e dividendos, e a sua atividade econômica recebe recursos de crédito agrícola a juros subvencionados. Ou seja, esse é um setor que tem todas as benesses do mundo e não contribui com tributos. Além disso, esse setor não paga nada de um outro imposto que já existe e que só precisa de uma política de georreferenciamento para ser colocado em prática, que é o Imposto Territorial Rural - ITR.
A União recolhe menos ITR do que a cidade de São Paulo recolhe de IPTU. O município de São Paulo recolhe seis vezes mais o valor do que toda a territorialidade do país. Então, esses são elementos de que é possível recuperar a capacidade fiscal do Estado brasileiro. Mas isso precisa ser feito nos primeiros seis meses — Ciro Gomes está usando essa expressão e se diz que o Lula fez uma autocrítica nesse sentido. Porque os primeiros seis meses de um presidente que chega eleito pelo voto popular é um período que se caracteriza por uma janela de oportunidade para fazer mudanças estruturantes, via plebiscitos ou coisas dessa natureza. Essa seria uma oportunidade para, do ponto de vista da tributação, fazer essas mudanças.
Depois é preciso continuar as políticas de recuperação de renda, que serão importantes para ter um mercado interno mais inclusivo. O que terá que mudar essencialmente em relação às políticas anteriores é a política monetária muito ortodoxa e agressiva. O Brasil acabou aprendendo que não precisa ser campeão mundial da taxa de juros para obter equilíbrio macroeconômico. Isso realmente é algo que precisa ser visto com muito cuidado, porque do contrário seremos eternamente vítimas de chantagens do financeiro. Veja o que está acontecendo com o dólar neste momento: não é o mercado, mas poucos e grandes conglomerados do mercado financeiro que fazem chantagem com o governo. Isso é recorrente, nas vésperas das eleições de Lula em 2002 aconteceu o mesmo, e o dólar chegou a quase quatro reais. Depois da eleição o dólar voltou à normalidade. Nas vésperas do impeachment de Dilma o dólar também aumentou e depois voltou à normalidade.
Como os candidatos da direita não se viabilizam eleitoralmente, cria-se a narrativa de que o país está correndo o risco de ser administrado por um Bolsonaro, um Ciro ou por Lula, que são populistas, demagogos e irresponsáveis, e o dólar sobe novamente. Daqui até outubro vai ser essa toada. E qual é a resposta do mercado financeiro para isso? Além da tentativa de desestabilizar o governo, é ganhar muito dinheiro com essa volatilidade praticamente cotidiana e, principalmente, influenciar a política econômica, dizendo que o Banco Central vai ter que voltar a aumentar a Selic. Ou seja, é o mesmo argumento que se utilizou de 2003 a 2012: é preciso manter uma política de juros alta para manter a atratividade para o capital estrangeiro. Então, o operador de recurso externo de uma bolsa de valores olha para o mundo e vê quem está oferecendo melhor rentabilidade. Esse país é o Brasil, que não exige nenhuma quarentena, é possível entrar num dia e sair no outro, não tem tributo e o investidor ainda recebe a maior taxa de juros do mundo. É óbvio que esses investimentos vêm para cá, mas é preciso romper com essa armadilha de dependência desse tipo de capital especulativo e parasita. O Brasil não precisa disso e essa é uma mudança importante a ser feita.
Outra mudança essencial é a questão do sistema financeiro interno. O Brasil é, tradicionalmente, o paraíso dos bancos e das instituições financeiras. Basta ver os grandes bancos no passado e os de agora, que contavam com a matriz brasileira para ter mais de 30% dos lucros acumulados no mundo, como é o caso do Santander, porque aqui realmente as benesses que o sistema financeiro encontra são impressionantes, pois nenhum outro país oferece as condições do Brasil. Então, é preciso uma política de redução do spread, ou seja, não só a taxa de juros geral é alta, mas os bancos têm total liberdade para cobrar o que quiserem de diferencial em relação a suas operações, e as tarifas são caríssimas.
O Banco do Brasil e a Caixa Federal são os dois grandes bancos atuantes no mercado. Então, já que é para fazer valer a tal da concorrência, a sociedade pode dizer, por meio do Estado, que a sua opção de estratégia empresarial para um banco público vai ser esta: reduzir o spread e reduzir as tarifas. Essa foi a tentativa de Dilma num período curto. Ela foi bombardeada e acabou cedendo às pressões do setor financeiro e voltou atrás. Ali se mostrou que o Brasil pode conviver com um spread mais baixo e isso é normal. Os bancos podem oferecer tarifas mais civilizadas e eles não vão quebrar por isso; eles vão apenas deixar de ganhar bilhões de lucros como os que vêm ganhando nas últimas décadas.
Uma das tarefas que temos, enquanto esquerda e forças progressistas, é romper com a dominância do financismo. Temos que ter uma postura perante a sociedade de que o capitalismo não é sinônimo da hegemonia arrasadora do sistema financeiro sobre os demais. Isso significa, por exemplo, uma redução da parcela da dimensão financeira das nossas atividades, mas isso significa também ter uma outra postura no trato da política econômica. Para dar um exemplo: continuamos presos — e nisso os 14 anos do PT não mexeram uma vírgula — na armadilha do superávit primário. Esse foi um instrumento, uma jogada criada pelo sistema financeiro na década de 1980, na época da grande crise das dívidas externas dos países desenvolvidos. Os grandes bancos internacionais que eram credores à época pressionaram o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional – FMI para estabelecer uma nova visão sobre as finanças dos Estados, principalmente dos governos do terceiro mundo. Eles disseram que o mundo estava entrando numa fase de acumulação do capital e queriam ter garantia de que os recursos das dívidas fossem efetivamente pagos. Então, dentre as recomendações do FMI, estabeleceu-se uma regra e criou-se esse conceito de superávit primário para que os Estados fizessem esforço fiscal e esse saldo seria drenado para o pagamento dos compromissos financeiros, ou seja, da dívida externa.
Isso no Brasil foi incorporado a partir dos anos 1980 e, embora a questão da dívida tenha passado, a política de todos os governos desde então incorporou essa ideia na lei de responsabilidade fiscal. Nos últimos doze meses o Brasil cortou gastos sociais, fez reforma da previdência, mas gastou R$ 381 bilhões para pagar juros da dívida, com despesas financeiras do Estado, porque essas despesas estão fora da contabilidade do superávit primário. Isto é uma outra necessidade: o país passa por uma situação fiscal difícil, mas é preciso olhar o conjunto das despesas na hora de estabelecer um pacto para enfrentar o momento de superação da crise. Alguns acham que é preciso retirar recursos da educação, da saúde, da previdência, mas por que não solicitar para o sistema financeiro que ele também dê sua contribuição? Eu fiz as contas: desde que esse cálculo é feito oficialmente pelo Ministério da Fazenda há 21 anos, em valores atuais, o Brasil já transferiu R$ 4,8 trilhões para o pagamento de juros da dívida pública financeira.
IHU On-Line - Qual seu balanço da greve dos caminhoneiros? Por que você avalia que ela tinha uma “reivindicação justa”, diferentemente de outras greves da categoria, em outros momentos? Essa greve tem alguma semelhança com as manifestações de junho de 2013?
Paulo Kliass – Quando a greve começou, as pessoas foram pegas de surpresa, mas o fato é que isso não é novidade, porque de dois em dois anos há tentativas desse movimento por causa da dependência que o país criou pelo modelo rodoviário. Apesar de esse movimento ser pulverizado, com dezenas de milhares de caminhoneiros autônomos, num momento de crise eles têm capacidade de pressão muito grande. Você pode imaginar que há um conservadorismo político na categoria, pode imaginar que 30% dos fretes são patrocinados por grandes empresas de transportes, que têm seus interesses, mas na questão atual da crise generalizada, o que ocorreu foi que a recessão reduziu a demanda por transporte, ou seja, se produz e se consome menos e tem menos demanda por esse tipo de serviço. De outro lado, à medida que se coloca tudo na livre ação das forças de oferta e demanda, se faz com que o frete seja reduzido e o principal custo para o caminhoneiro ou para a empresa de transporte ainda é o combustível. Tanto que esse foi o aspecto mais central na mobilização da categoria. Nas últimas semanas vimos depoimentos de pessoas dizendo que atravessam o país de Norte a Sul e, no final das contas, acabam recebendo muito pouco pelo serviço, porque o gasto com combustível ficou muito mais elevado em razão da política desastrosa que Pedro Parente implementou na Petrobras depois do golpe.
Isso tem a ver com junho de 2013? A única semelhança que podemos imaginar é que estamos numa crise, que existe um sentimento difuso de descontentamento com a política e com o governo de plantão, e numa situação em que não se tem capacidade de interlocução e diálogo. Dilma também deu sua contribuição nesse sentido, na medida em que ela ignorava os movimentos e os riscos associados às mobilizações em 2013. O que aconteceu é que o conjunto da sociedade acabou sendo polarizado por aquilo que estava latente e escondido na base da sociedade, que era um conservadorismo que não conseguia se expressar politicamente e institucionalmente, como ocorreu em 2013. De repente surgiram movimentos como o MBL, o Vem pra Rua e outros do gênero, mas isso não ocorreu tão de repente assim: havia um descontentamento de natureza conservadora na base da sociedade e as forças de esquerda sempre a subestimaram.
Veja o que acontece com o crescimento das igrejas neopentecostais mais radicais: há muito tempo existe uma fermentação de visão de mundo, de pensamento bastante conservador na moral e nos costumes e na religiosidade, a qual acaba transitando para o político: a bancada da Bíblia no Congresso é justamente a manifestação desse tipo de mudança na base da sociedade. Então, em 2013 esses movimentos acabaram tendo espaço para se manifestar e jogaram com um descontentamento geral com a política, com os políticos, pelos escândalos e privilégios. As pessoas identificam na atividade política brasileira o que há de mais perverso, como o enriquecimento ilícito, a utilização de privilégios, a política do fisiologismo, como sendo a regra. Um discurso novo contra tudo o que está por aí ganha muita aceitação, mas quem conseguiu captar esse discurso foram esses movimentos conservadores que começaram a dar sua cara para a sociedade. Não é à toa que um personagem como o Bolsonaro, que conseguiu representar esse tipo de visão, está com 20% das intenções de voto.
Então, 2018 não é exatamente 2013, até porque não houve uma ampliação da abrangência do movimento da greve. Junho de 2013 começou difuso com o Movimento Passe Livre, com os estudantes e de repente começou a criar um descontentamento generalizado com a ordem política, aproveitando uma tentativa de diminuir a força política do PT e de Dilma. Isso foi superado quando ela conseguiu se reeleger. Como teremos eleições daqui a alguns meses, esse descontentamento objetivo que existe não é expresso através de um movimento nas ruas. As pessoas estão na expectativa da mudança a partir de outubro. De todo modo, não temos elementos para afirmar com todas as letras se essa greve dos caminhoneiros foi um movimento orquestrado ou não, mas o governo terá problemas, porque está lidando com esse movimento de forma irresponsável. O presidente foi à televisão, fez um acordo e agora não está cumprindo o acordo.
IHU On-Line - Num dos seus artigos de análise sobre a greve, o senhor afirmou que o desmonte da Petrobras levou o país ao caos. Recentemente foram feitas críticas à gestão de Pedro Parente à frente da Petrobras, à tentativa de privatizar a empresa, e durante os governos petistas foram feitas críticas à política artificial de preços da Petrobras, à compra de Pasadena, à construção da refinaria de Abreu e Lima. Diante desse quadro de críticas, quando avalia que esse desmonte começou? Qual é a atual situação da empresa, na sua avaliação?
Paulo Kliass – O desmonte começou depois da consolidação do impeachment. Quando Temer se consolida na presidência, ele chama o PSDB e outras forças de oposição ao PT para o governo, dá o Ministério das Relações Exteriores e o Ministério da Educação para esses grupos, e Pedro Parente, que era o gestor do apagão na era FHC, foi para a Petrobras com a condição de ter total autonomia para desenvolver a sua política. Nesses 20 anos em que esteve fora do Estado brasileiro, ele trabalhou para grupos privados nacionais e estrangeiros, e chegou na Petrobras, uma empresa estatal, com uma lógica privada e com uma visão absolutamente liberal e entreguista do que deve ser o Estado brasileiro. A gestão dele iniciou com uma mudança nas regras do pré-sal: aquilo que deveria ser exploração exclusiva da Petrobras, exatamente pelos trilhões que ela oferece do ponto de vista do petróleo estratégico, será feito por outras empresas petrolíferas.
Depois da derrota de Alckmin, eles aprenderam que não dá mais para falar da privatização da Petrobras, porque a empresa ainda é vista, no imaginário da população, como um patrimônio importante do país. A política foi transformada sutilmente e não se fala mais em privatização, mas em desinvestimento, que significa vender não o conglomerado, mas empresas que fazem parte da holding, especialmente na área de distribuição e transporte. Em seguida, se orienta a Petrobras a diminuir a quantidade de refino, o que é uma atividade criminosa, porque a Petrobras tem muitas refinarias espalhadas pelo país, com altíssima capacidade tecnológica, mas, mesmo assim, ela passa a importar refinado. Ou seja, se reproduz na Petrobras a lógica aplicada no agregado da economia.
Para fechar, ele vem com essa história de que a política de preços — é um discurso mais ideológico — na época do PT, da Dilma e do Lula, foi uma política de subsídios, equivocada, teve um custo fiscal etc. Nesse sentido, ele propõe fazer a coisa mais moderna do mundo: balizar 100% os preços pelo mercado. Só que ninguém faz isso; balizar o preço na bomba é um absurdo. Se os representantes da Arábia Saudita, do Irã e do Iraque resolverem aumentar o preço do petróleo, no dia seguinte, aqui no Brasil, o preço do combustível nos pontos de varejo será aumentado?
Além de ser uma política equivocada, é um próprio tiro no pé, porque começou a ter uma tendência de aumento de preços do petróleo no mercado internacional combinado com uma desvalorização cambial do real, então, duplamente o preço dos derivados acabou aumentando, tanto que nem os setores mais conservadores estão defendendo essa brincadeira irresponsável de Pedro Parente. Petróleo é um bem público, estratégico e não obedece às regras da oferta e da demanda no sentido ideal de um modelo liberal capitalista, porque esse é um bem escasso no mundo, é concentrado em alguns países, as suas decisões de política de preços são tomadas pela Organização dos Países Exportadores de Petróleo - OPEP, ou seja, cinco ou seis grandes petroleiras no mundo dominam esse mercado. E aí vamos dizer que estaremos sujeitos a essas condições? Não. Tanto que a grande maioria das petroleiras do mundo são estatais, são Estados nacionais que resolvem constituir empresas públicas para explorar esse recurso estratégico, que é a base do funcionamento da economia capitalista contemporânea. Por mais que o mundo esteja caminhando para outras fontes de energia, ainda hoje e por várias décadas o petróleo será essencial.
O desmonte da Petrobras atingiu esse conjunto de medidas, desde a privatização até a redução da capacidade da empresa. Trata-se de uma política de desmonte interno, isto é, de destruição por dentro, para inviabilizar a empresa. No entanto, a Petrobras é muito maior do que isso, ela tem 64 anos de vida, tem um patrimônio. Há dois anos se dizia que a empresa estava quebrada, que o PT havia quebrado a Petrobras. Então, foi a competência de Pedro Parente que, em um ano, fez com que a Petrobras saísse de uma situação de falência para uma situação de benesse? De jeito nenhum, e sim porque ela é muito grande, é fruto de 64 anos de existência, de muito investimento público do Tesouro brasileiro, da própria empresa que acumulou muitos recursos.
Há 20 anos o Estado brasileiro fez uma aventura absolutamente irresponsável ao abrir o capital da Petrobras na bolsa de Nova Iorque. Isso trouxe pouco recurso para a empresa, mas fez com que ela ficasse sujeita aos humores do financismo internacional. O setor financeiro quer que a Petrobras não só ganhe dinheiro, mas ganhe muito dinheiro, e ela tem a oportunidade de ganhar muito dinheiro porque o preço do petróleo está subindo. Nesse contexto, o setor financeiro quer que a Petrobras faça o preço dos seus derivados — da sua receita — crescer na mesma proporção, para ela ter muito lucro e para que o acionista externo tenha mais participação nesse lucro, nesses dividendos. No entanto, uma empresa estatal não opera assim. Quem compra um título de uma empresa estatal sabe que ela, por sua especificidade, tem como sócio majoritário o Estado brasileiro. Por isso, não é possível esperar de uma empresa estatal da qual se comprou ações, o mesmo comportamento de uma petroleira privada ou de uma outra empresa privada do mundo capitalista contemporâneo. Mas a Petrobras ficou sujeita a essa chantagem, tanto que o Brasil teve que pagar bilhões de dólares a título de indenização dos acionistas estrangeiros por conta desse tipo de compromisso, que é um contrassenso.
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A crise dos governos progressistas, 40 anos depois da queda do socialismo real, e a falta de clareza política da esquerda. Entrevista especial com Paulo Kliass - Instituto Humanitas Unisinos - IHU