Por: Por Patricia Fachin | Tradução de André Langer | 19 Junho 2017
“Não é o mundo árabe que está em guerra civil, mas o mundo em geral está em guerra civil no mundo árabe”. Essa é a tese do novo livro do filósofo chileno Rodrigo Karmy, intitulado “Escritos bárbaros. Ensayos sobre razón imperial y mundo árabe contemporáneo” (Lom Ediciones, 2016). O “caráter ‘civil’ da guerra” indica que hoje se assiste “ao colapso fático do sistema internacional e à sua substituição por aquilo que chamo de luta global pela apropriação dos fluxos de capital”, explica. Este conflito de “guerra civil global”, diz, ocorre na Síria e “se expressa na incansável luta Estados Unidos-OTAN/Rússia-China pela apropriação dos fluxos de capital”.
De acordo com Karmy, na atual guerra civil há “a coexistência de diversos projetos imperialistas dentro de um único império. A Rússia-China, por um lado, os Estados Unidos e a OTAN, por outro, lutam pelo domínio do Império através da apropriação dos fluxos de capital. Quem dominar esses fluxos domina o Império”. Segundo ele, do lado americano, “Obama quis reconstituir a hegemonia imperial norte-americana através do ‘multilateralismo’ e, atualmente, Trump, embora seja muito pouco provável que retorne a uma política do tipo Bush Jr., manterá, por meio da exageração e da demonstração espetacular dos seus meios de guerra, a tentativa permanente para barrar o caminho à Rússia e à China na sua tentativa de apropriação – e criação, certamente – dos fluxos de capital”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line, Karmy pontua os quatro problemas centrais que estão acontecendo no mundo árabe atualmente, como “a persistência da questão palestina”, a “presença constante das forças imperialistas”, “o esgotamento irreversível dos dois grandes discursos pós-coloniais árabes” e a “hegemonia de potências regionais não árabes, como Israel, Turquia e Irã, no mundo árabe contemporâneo”. Os conflitos acontecem na Síria, esclarece, porque o país era “um dos últimos redutos da influência iraniana-russa, e convém aos diferentes atores pró-norte-americanos (Turquia, Israel e Arábia Saudita) enfraquecer a Síria e a influência iraniana”. De outro lado, afirma, “a Rússia não deixará a Síria, menos ainda o Irã, porque será a saída para o Mediterrâneo que a Rússia buscou há séculos e que lhe permite influir politicamente na desgastada Europa”.
Nesta entrevista, Rodrigo Karmy também comenta a política chilena, a perspectiva para as eleições deste ano, e avalia as implicações atuais do processo de transição da ditadura chilena para a democracia. O que ocorreu nesse período, considera, foi a “implementação de uma precisa razão de Estado de corte governamental sustentada pela narrativa de uma ‘fábula’ que, como narrativa, restituía o pacto oligárquico que tinha sido ameaçado com a Unidade Popular durante o governo de Salvador Allende”. E dispara: “Não houve projetos de esquerda nos governos do Chile desde a vitória da Unidade Popular, em 1970, com Allende. E penso que isso se deveu à força da ‘fábula do Chile’”.
Rodrigo Karmy durante conferência no IHU
Foto: Acervo IHU
Rodrigo Karmy Bolton é doutor em Filosofia pela Universidade do Chile, onde leciona e é pesquisador do Centro de Estudos Árabes da Faculdade de Filosofia e Humanidades. É autor de Políticas de la interrupción. Ensayos sobre Giorgio Agamben (Santiago de Chile: Editorial Escaparate, 2011), Políticas de la excarnación. Para una genealogía teológica de la biopolítica (Buenos Aires: UNIPE: Editorial Universitaria, 2013) e Escritos bárbaros. Ensayos sobre razón imperial y mundo árabe contemporaneo (Santiago de Chile: LOM Ediciones, 2016).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O que o motivou a escrever “Escritos bárbaros. Ensayos sobre razón imperial y mundo árabe contemporáneo” e por que considera que esta é uma obra que trata do nosso presente? Em que sentido e sob qual perspectiva os ensaios apresentados no livro tratam do nosso presente?
Rodrigo Karmy - Uma das questões-chave de Escritos Bárbaros é que seus ensaios podem ser considerados uma espécie de trabalho de exploração, fragmentado, provisório e marcado pela irrupção do intempestivo. Escritos Bárbaros não pretende dizer como deveríamos ver o mundo árabe, muito menos pretende representar o que os “árabes” acreditam, dizem ou pensam. De maneira muito menos ambiciosa, Escritos Bárbaros pode ser considerado uma arma de combate, um antídoto (não sei se totalmente eficaz) à sobrecodificação discursiva muitas vezes repleta de orientalismo. Mas Escritos Bárbaros não quer “desvelar” uma realidade que esta ideologia oculta para desarmá-la a partir de dentro, sem pressupor a existência de uma “realidade” que a ultrapassa, sem pressupor a preexistência de uma verdade oculta. Escritos Bárbaros renuncia à verdade e aposta nas práticas da insurreição. Como tal, concebe que a reflexão filosófica constitui um elemento imprescindível na medida em que desloca a diferença clássica entre teoria e prática, entre filosofia e política, entre pensamento e insurreição.
Nesta perspectiva, Escritos Bárbaros orienta-se à superação das dicotomias com as quais funciona a razão imperial contemporânea. Isso acontece, como primeiríssima distinção, com a distinção entre Oriente e Ocidente, tão terrivelmente ideológica do ponto de vista da razão imperial. Porque a “razão imperial” designa um dispositivo bipolar, um discurso estruturado sobre binômios, a partir dos quais se faz, no fundo, a distinção antropológica entre o humano e o animal, sobre a qual se superpõe a diferença entre o cristão e o herege, o civilizado e o bárbaro, o democrata e o fundamentalista.
A tese de Escritos Bárbaros é que, apesar da sua oposição, as ditas dicotomias são produções da razão imperial e, enquanto tais, configuram o sistema a aceitá-las. Em outras palavras, Escritos Bárbaros propõe que tanto os Estados Unidos como o ISIS [Estado Islâmico] são, “do ponto de vista metafísico”, a mesma coisa. Neste sentido, é um livro que qualquer analista internacional ou cientista político – defendendo essa posição liberal tão clichê – poderia acusar de “enviesado”, se com este termo se designa comumente aqueles que defendem posições que não são as hegemônicas. Escritos Bárbaros não é um texto “experto”, nem tem pretensões “científicas”; é uma voz singular, nada mais, que assume a atitude da provocação.
Mas também, Escritos Bárbaros traz consigo o legado de um trabalho anterior, em particular de Políticas de la Excarnación, livro que publiquei em Buenos Aires em 2014. Nele, eu havia desenvolvido uma genealogia sobre o biopoder tomando a questão cristã da encarnação e tentando dar conta do modo como a configuração imperial do poder no Ocidente se sustentava na transformação da potência da carne no poder do corpo.
Em Escritos Bárbaros essa relação assume os contornos do acontecimento e mede-se com ele, instalando o imperialismo sustentado em uma matriz pastoral que se desdobra em suas três formas kerigmáticas: evangelização, civilização e democratização. Trata-se da potência comum presente nas revoltas que agora ocupam o lugar da “carne”, frente ao poder imperial expandido como guerra civil global, que ocupa o lugar daquilo que no meu livro anterior chamava de “corpo”. Por isso, penso que Escritos Bárbaros é um livro que marca certa continuidade com meus trabalhos anteriores, mas que, sem dúvida, traz consigo a alegria de uma singularidade. Devo dizer que gostei muitíssimo de escrever seus ensaios. Sobretudo porque alguns deles eu vinha desenvolvendo há muito tempo (até mesmo dos tempos em que escrevi Políticas de la Excarnación) e aos quais tive a oportunidade de voltar, reconsiderar alguns dos seus pontos e torná-los mais complexos. São o caso daqueles que se referem à questão da “razão imperial”, na qual proponho uma genealogia da civilização; à relação entre Levinas e o sionismo; assim como a questão do Qutub e a mutação radical do islã na modernidade.
IHU On-Line - Uma das teses da sua obra é a de que o mundo árabe não vive uma guerra civil, mas que o mundo está em guerra no mundo árabe. Pode nos explicar essa ideia?
Rodrigo Karmy - A fórmula que proponho é a seguinte: não é o mundo árabe que está em guerra civil, mas o mundo em geral está em guerra civil no mundo árabe. É importante atender ao caráter “civil” da guerra que se estende ao planeta. A fórmula desta tese implica que hoje assistimos ao colapso fático do sistema internacional e à sua substituição por aquilo que chamo de luta global pela apropriação dos fluxos de capital. Neste sentido, o que Toni Negri chama de “Império” é uma caracterização apropriada, embora limitada: “apropriada”, uma vez que coloca a ênfase no fechamento espaço-temporal imposta pelo poder global, mas “limitada”, já que a sua genealogia oblitera a configuração imperial à luz da hispanidade.
Neste singular cenário, o que temos é a coexistência de diversos projetos imperialistas dentro de um único império. A Rússia-China, por um lado, os Estados Unidos e a OTAN, por outro, lutam pelo domínio do Império através da apropriação dos fluxos de capital. Quem dominar esses fluxos domina o Império. Durante a segunda metade do século XX, os Estados Unidos acabaram hegemonizando o Império, mas diria que a queda do Muro de Berlim e a explosão da Guerra do Golfo em 1991 marcaram a vitória e a débâcle desta hegemonia. A “vitória”, porque acabaram transitoriamente por fazer com que a Rússia se submetesse aos seus pés, e a “débâcle”, porque isso implicou a dissolução de um katechon estatal-nacional contra o qual lutar e o progressivo surgimento de novos (velhos) imperialismos, que tentam articular novos fluxos de capital que desafiam os fluxos hegemonizados pelos Estados Unidos.
Com isso, surge uma miríade de conflitos, grupos e problemas em nível global que os Estados Unidos já não conseguem controlar. Bush Jr. foi a última tentativa para dar uma espécie de golpe de Estado no Império, mas não teve sucesso. Obama quis reconstituir a hegemonia imperial norte-americana através do “multilateralismo” e, atualmente, Trump, embora seja muito pouco provável que retorne a uma política do tipo Bush Jr., manterá, por meio da exageração e da demonstração espetacular dos seus meios de guerra, a tentativa permanente para barrar o caminho à Rússia e à China na sua tentativa de apropriação – e criação, certamente – dos fluxos de capital.
Neste sentido, Escritos Bárbaros tenta dar conta de que essa luta se expressa em uma guerra civil permanente que, através de várias gradações e modulações, se cristaliza em nível local, regional e global. A Síria é uma dessas formas, a reação da direita na América Latina é outra. E é “civil” porque a miríade de conflitos justapostos não distingue a fronteira entre o combatente e o não-combatente, entre guerra e paz, porque aquilo que chamo de “guerra civil global” é uma tecnologia de poder orientada à gestão das populações. A guerra civil não é uma fatalidade, nem mesmo um simples efeito de forças que desembocam em um massacre, mas um verdadeiro paradigma de governo.
Guerra civil global é o nome do governo contemporâneo, o ponto em que exceção e lei, caos e ordem, nomos e anomia, são resolvidos na mesma lógica. Daí o caráter “civil”: trata-se do progressivo envolvimento dos cidadãos nos conflitos, trata-se daquilo que Jean-Luc Nancy caracterizou como a “comunidade enfrentada”, em que a comunidade ficou abandonada a si mesma, desgarrada em relação a si mesma: “(...) uma guerra intestina de uma cidade, de uma civilidade, de uma cidadaneidade que se estende até os limites do mundo e, por isso, até o extremo dos seus próprios conceitos”. Na minha opinião, tal “guerra intestina de uma cidadaneidade” deixou de ser uma “crise” e mostrou-se uma eficaz tecnologia imperial. Como dirá Achille Mbembe, o governo sobre as populações opera “balcanizando” os povos ou, como direi em Escritos Bárbaros, a guerra civil é a última forma de gestão sobre as populações.
E é fundamental entender por que uso o termo “global” e “populações”: esses termos são essencialmente “econômicos”, porque “econômica” (pastoral) teria sido a implantação da imperialidade ocidental até sua última fase norte-americana-atlântica em que vivemos. “Global” e não “mundial” marcaria a configuração de uma época sem horizonte que, como um globo, se fecha em uma ilimitação mercantil (aquilo que Hegel chamou certa vez de “má infinitude” ou que o próprio Negri chama de “Império”). Na época “global” não são as multidões, mas as populações, o sujeito propriamente econômico-político, uma vez que “população” é um termo demográfico, estatístico, que designa os povos em sua vida desnuda, em seu completo despojamento político. Se a guerra civil é “global” é porque constitui uma forma de governamentalidade que coincide inteiramente com a exceção ou, o que dá no mesmo, realiza aquilo que Friederich Hayek, retomando a caracterização proposta pelo físico Michael Polanyi, denominou de “ordem espontânea”: uma ordem auto-organizada de corte imanente e de cunho exclusivamente econômico. Tal “ordem espontânea” pode ser traduzida na forma da guerra civil global como uma luta global pela apropriação dos fluxos de capital.
IHU On-Line - Quais são os principais conflitos que acontecem no mundo árabe hoje e quais são as suas causas?
Rodrigo Karmy - Eu me arriscaria a dizer que o mundo árabe atravessa quatro problemas que configuram seus conflitos:
a) Em primeiro lugar, a persistência da questão palestina ou, o que dá no mesmo, a presença de Israel como uma potência colonial chave assentada contra a vontade dos movimentos nacionais árabes e palestinos graças ao apoio das grandes potências da época (Grã-Bretanha, Estados Unidos e a ex-URSS) desde 1948; nesta perspectiva, o que Edward Said chamou de “questão palestina” não é um assunto restrito ao âmbito palestino, mas constitui o nó da catástrofe em que se encontra o mundo árabe contemporâneo na qual se condensa o triunfo da colonização sionista, das forças imperialistas e, no entanto, da sempre possível resistência por vir. Sem uma Palestina livre não haverá um mundo árabe livre. Penso que essa é a questão que algumas oligarquias regionais são incapazes de enxergar, porque estão abertamente comprometidas com as forças imperialistas e sua irrevogável aliança com o Estado sionista de Israel.
Detenho-me a apontar quatro temas sobre a Palestina.
O primeiro: o chamado conflito “palestino-israelense” não existe. Existe uma colonização sionista que sobrevive há 69 anos de maneira ininterrupta, articulada pela expulsão da população, pela ocupação de território e pela abissal segregação das populações na forma sul-africana do “apartheid”.
O segundo: o Estado de Israel, que se proclama a si mesmo como a “única democracia no Oriente Médio”, a rigor funciona como um verdadeiro “racismo de Estado”, no qual não apenas a população palestina em suas diversas hierarquias (palestinos israelenses, palestinos de territórios palestinos e palestinos de Gaza), mas também a população judaica árabe ou africana, sofreram permanentemente a vigilância racista de um Estado que transformou o significante religioso “judeu” em um significante propriamente “racial”.
O terceiro: se a colonização sionista se expandiu e se aprofundou com o passar dos anos não foi somente em virtude das múltiplas táticas sionistas, mas também devido ao progressivo isolamento da política árabe em relação à política palestina: os países árabes (Egito e Arábia Saudita, como os mais importantes) transformaram-se em “sócios” comerciais de Israel e, por sua vez, em ativos colaboradores de suas políticas de segurança.
O quarto: houve um erro na política palestina que é necessário considerar: os acordos de Oslo assinados em 1993, que substituíram o protagonismo da OLP [Organização para a Libertação da Palestina] pela ANP [Autoridade Nacional Palestina], transformaram a liderança palestina em uma instituição precária, sem força soberana, sem exército e em aberta colaboração com as forças de segurança israelense. Por isso, Said pode dizer nesse momento que o povo palestino ficou inteiramente um “povo órfão”. Para isso, é necessário politizar novamente a questão palestina restituindo o melhor da OLP e deixando de lado a ANP que, financiada pelos Estados Unidos e pela Europa, não fez outra coisa senão trabalhar no aprofundamento da colonização sionista. Tudo isso, aliás, ao arrepio do direito internacional que sempre dá razão à Palestina.
b) Em segundo lugar, pela presença constante – que converge diretamente com o lugar de Israel como uma potência hegemônica regional – das forças imperialistas, sejam elas as franco-britânicas durante todo o século XIX e a primeira metade do século XX, bem como sua substituição pelos Estados Unidos desde a segunda metade do século XX até hoje, em virtude da existência de grandes reservas de petróleo e gás e a consequente configuração da ordem internacional na forma de uma guerra civil global que visa à apropriação dos grandes fluxos de capital.
É fundamental compreender que a consolidação do imperialismo na região se deu, em um primeiro momento, em virtude de dois arquivos que ainda conservamos: o primeiro, os famosos “acordos de Sykes-Picot”, em que se articulou um primeiro traçado dos países árabes com base na institucionalidade colonial do “protetorado” em que França e Grã-Bretanha repartiram entre si a região: a França ficou com a zona sírio-libanesa, e a Grã-Bretanha, com a zona iraquiana-palestina e transjordaniana (ademais que o Egito a tomou dos franceses na segunda metade do século XIX em virtude do controle do “canal de Suez”); o segundo é a conhecida Declaração Balfour de 1917 na qual a alta hierarquia diplomática britânica se comprometia com o emergente movimento sionista europeu declarando sua intenção de fundar um “lar nacional judeu” na Palestina, questão que frustra as esperanças do movimento nacional palestino da época e os movimentos nacionais árabes em geral que proliferam por todos os lados. Ambos os “arquivos” se vinculam estreitamente, uma vez que expressam o giro das potências ocidentais em detrimento dos movimentos de libertação nacional árabes: o enviado especial britânico, o general McMahon, tinha prometido a independência nacional dos países árabes uma vez caísse o Império Turco-Otomano. Mas, não obstante as promessas de McMahon, os acordos secretos franco-britânicos de Sykes-Picot mostram a mudança da política imperial que acabaram por dar as costas aos movimentos nacionalistas árabes. Sykes-Picot, assim como a Declaração Balfour, mostram exatamente essa “traição”, conforme estabelece a historiografia árabe.
Tudo culminará, depois de 1967, 1973 e 1979 (após a queda do Egito como potência regional em virtude dos acordos de “paz” com Israel, promovidos pelos Estados Unidos), na construção de Estados cada vez mais dependentes das forças imperialistas, tanto em nível político como econômico: “politicamente”, articularam-se Estados “hipertróficos” no sentido proposto por Ayubi, isto é, Estados excessivamente autoritários, cuja coluna vertebral é a polícia e os exércitos e que, portanto, carecerão totalmente de “hegemonia” sobre sua população; “economicamente”, porque as economias que puderam ser alguma vez de cunho “desenvolvimentista” acabaram sendo puramente “rentistas”. Penso que Sykes-Picot e a Declaração Balfour continuam marcando a atualidade “imperial-colonial” do mundo árabe.
c) Em terceiro lugar, por um esgotamento irreversível – parece-me – dos dois grandes discursos pós-coloniais árabes que, segundo Hamid Dabashi, deram sustentação à sua política durante todo o século XX: o discurso islamista-confessional e o nacional-secularista de corte populista. Se este último veiculou grande parte do imaginário político árabe liderando grandes rebeliões anticoloniais tanto contra as forças francesas como contra as forças britânicas, acabou construindo um sistema interestatal árabe apoiado sobre um discurso pan-árabe que acabou fracassando estrepitosamente, tanto pela pressão das forças imperialistas promovidas pelos Estados Unidos e Israel, como pela deriva autoritária que esta articulação política adquiriu, sobretudo depois da Guerra dos Seis Dias em 1967, que, me parece, marca um ponto de inflexão radical em que o discurso islâmico-populista começará a adquirir maior protagonismo. Se bem que a configuração do sistema interestatal árabe foi relevante, este se assentou sobre as fronteiras traçadas pelos acordos de Sykes-Picot e, nesse sentido, levavam consigo o eco de uma violência imperial que acabou por implodi-los internamente e destruindo-os externamente: toda a política imperial dos últimos 30 anos (desde a Guerra do Golfo de 1991) levada a cabo pelos Estados Unidos e a OTAN não fez outra coisa senão devastar a estrutura estatal-nacional árabe (Iraque, Síria, Egito e, certamente, impossibilitando a Palestina).
No entanto, não obstante o discurso nacional-secularista parece estar esgotado, o despertar islamista parecia também estar condenado ao “fracasso” na medida em que sua estrutura sempre se articulou a uma função mimética do discurso nacional-secular. Como bem advertiram intelectuais como Samir Amin e Nazih Ayubi, o discurso islâmico-populista constitui um reverso espetacular do discurso nacionalista-secular. Como tal, replica em outro léxico e registro a mesma estrutura do primeiro e, com isso, acaba sendo absolutamente impotente para realizar uma transformação radical das atuais condições.
Nesta perspectiva, parece-me que o único ponto de inflexão dos últimos anos foram as revoltas árabes de 2011, que refutaram o esgotamento das duas forças supracitadas e tentaram restituir uma república nas praças, contra as oligarquias locais, regionais e imperiais, contra os dois discursos pós-coloniais que exibiram o fato de que, para além dos seus enunciados, seu lugar de enunciação teria sido o de uma completa cumplicidade com a ordem imperial estabelecida desde a substituição dos Estados Unidos. As revoltas não mostraram apenas o reverso “mítico” dos dois grandes discursos, mas, além disso, foram o “magma” de um imaginário radical que prometeu a invenção de novos discursos, mas que foi sufocado pelas oligarquias nacionais, cujos interesses convergem com as forças imperialistas.
d) Em quarto lugar, a hegemonia de potências regionais não árabes, como Israel, Turquia e Irã, no mundo árabe contemporâneo. Salvo as petromonarquias (Catar, Emirados Árabes e Arábia Saudita), as demais forças regionais que incidem no mundo árabe são não-árabes. Assim, Israel se apresenta como o guardião militar e liberal dos Estados Unidos na região, a Turquia como o esteio da OTAN, a Arábia Saudita como o melhor sócio econômico dos Estados Unidos e da Europa (mas em segundo lugar em relação a Israel) e o Irã como o contrapeso do poder russo na região.
Todas essas forças se deparam, hoje, com toda a sua devastação na Síria. Por que a Síria? Porque a Síria era um dos últimos redutos da influência iraniana-russa, e convém aos diferentes atores pró-norte-americanos (Turquia, Israel e Arábia Saudita) enfraquecer a Síria e a influência iraniana. A Turquia tenta empregar sua força para impedir qualquer possibilidade de libertação nacional curda que possa surgir depois do conflito, Israel tenta neutralizar completamente o Irã para impedir que se converta em uma potência nuclear, como é o próprio Israel, e a Arábia Saudita (seguindo os passos de Israel) tem por objetivo neutralizar o Irã, porque vê ameaçado o mercado de petróleo no caso de o Irã lançar finalmente os seus capitais para o mundo global graças ao acordo (que ainda não foi totalmente implementado) alcançado por Obama.
Os Estados Unidos, por sua vez, seguem o sinal israelense, e o círculo “trumpista” é absolutamente anti-iraniano. Hoje, o ponto de conflito é o Irã. E enquanto a Síria tornou-se uma espécie de “protetorado” iraniano, todas as forças estão destinadas à Síria e a pensar o modo como Bashar Al Assad, o “melhor dos males”, poderia eventualmente transformar-se no “pior” dos males para justificar ou não sua substituição. No entanto, penso que isso vai ser muito difícil, porque os interesses iranianos e russos são muito fortes e não creio que estes vão ceder diante da pressão norte-americana.
Se desde 1991 a estratégia dos Estados Unidos não foi outra senão bloquear os russos e os chineses para impedir que acessem os recursos de petróleo e gás, tal política implica a apropriação do Iraque, a aliança saudita e a devastação síria como uma demonstração indireta do poder orientado a enfraquecer a presença iraniana e russa na região. É justamente este conflito que tenho chamado de “guerra civil global” e que na Síria se expressa na incansável luta Estados Unidos-OTAN/Rússia-China pela apropriação dos fluxos de capital. E a Rússia não deixará a Síria, menos ainda o Irã, porque será a saída para o Mediterrâneo que a Rússia buscou há séculos e que lhe permite influir politicamente na desgastada Europa.
A atual tensão da Arábia Saudita com o Catar, fruto da reunião que Trump teve em Riad com Abdelaziz, mostra a importância que o Irã tem para a Administração de Trump: o Catar tem acordos comerciais na exploração e produção de gás com o Irã muito importantes e é o que lhe permitiu sobreviver à sistemática tentativa saudita de hegemonizá-lo. Por isso, Trump articula os seus dois aliados favoritos (Arábia Saudita e Israel) e submete sua política no Oriente Médio aos interesses de seus dois aliados regionais que só querem ver o Irã no inferno. E isso porque o Irã capitalizou sua participação na Síria até o ponto em que esta última transformou-se em uma espécie de “protetorado” iraniano-russo. Por isso, Trump viu com desconfiança – via Netanyahu em Israel (uma vez que a política dos Estados Unidos depende inteiramente da ascensão ou não de Israel) – a influência que o Irã teve depois da Síria. O isolamento do Catar tem esse objetivo imediato e articula-se na luta global pela apropriação dos fluxos de capital que define a guerra civil em que vivemos.
IHU On-Line - Que avaliação geral você faz do segundo governo de Michelle Bachelet à frente da presidência do Chile? Em que aspectos se percebem avanços ou retrocessos em relação ao seu governo anterior?
Rodrigo Karmy - Parece-me que devemos ler o segundo governo de Michelle Bachelet como um sintoma de um fenômeno crucial que não deixou de acontecer desde alguns anos antes de 2011: a destituição da razão de Estado transitológica que eu chamo de “fábula do Chile”. O que no Chile se chamou de “transição” para a democracia foi a implementação de uma precisa razão de Estado de corte governamental sustentada pela narrativa de uma “fábula” que, como narrativa, restituía o pacto oligárquico que tinha sido ameaçado com a Unidade Popular durante o governo de Salvador Allende.
Esta “fábula’ articula seu imaginário a partir de três personagens: o pastor, a ovelha e o lobo feroz e articula-se em uma simples história: “era uma vez um pastor que conduziu mal suas ovelhas (Allende) e fez o lobo feroz aproximar-se (os militares). Se você não quiser que o lobo volte, então conduza de maneira correta as suas ovelhas”.
E esse relato construiu a nova razão de Estado sobre a qual se assentou todo o período de transição com base nas técnicas do goverment by consent. Pois bem, tal razão de Estado implicou uma continuidade com a ditadura na medida em que conservou sua estrutura política expressa na Constituição política e seu sistema econômico desenvolvido pelos Chicago Boys, conjuntamente com a Constituição desde o começo dos anos 80.
Como a técnica política se apoiava no “consenso”, necessariamente devia flertar com o Ancien Régime. Mas não apenas isso, uma vez que tal flerte implicou o aprofundamento do Ancien Régime no âmbito político e econômico: “político”, enquanto se conservou a Constituição de 1980 com a ausência do sujeito “povo” e se situou o poder constituinte na figura da “nação” (ou seja, a instituição militar) como último baluarte da ordem institucional; “econômico”, no sentido de que a própria Constituição favoreceu as políticas de focalização de tipo neoliberal em setores como a educação, a saúde e as pensões.
A “transição”, na verdade, foi uma “traição” aos desejos do imaginário popular aberto pelo povo do Chile no final dos anos 80 quando se lutou corpo a corpo contra a ditadura cívico-militar, cuja ordem institucional acabou triunfando em detrimento do próprio corpo físico do ditador. Neste cenário, a fábula do Chile começou a se desfazer em virtude da explosão da potência popular que teve como primeira cena os estudantes secundaristas desde 2006 e que, posteriormente, abraçou o desejo de uma sociedade inteira durante o ano de 2011, quando secundaristas e universitários unificaram sua luta contestando a própria ordem política articulada pela “fábula do Chile”. É aqui que emerge a figura de Michelle Bachelet pela primeira vez inaugurando uma política complexa na qual sua prioridade era a “cidadania” e não os “partidos políticos”, como tinha sido até o governo de Ricardo Lagos.
No entanto, seu primeiro governo enfrentou um primeiro problema que foi o de um sistema unificado de transporte público na área urbana de Santiago do Chile (o Transantiago) que provocou muitas expectativas, mas que acabou sendo um fracasso e que acabou arrastando quase todo o seu governo. É fundamental, no meu modo de entender o tema do Transantiago, porque foi a primeira metáfora da imperícia no exercício de “conduzir” o povo, um sinal chave no ato de rasgar a razão de Estado articulada em base à “fábula do Chile” que exibia sua impossibilidade de condução, de governo. Não por acaso que os protestos estudantis se tenham originado em virtude do acesso dos estudantes ao transporte público. É, acima de tudo, o pivô simbólico de toda a transição política.
Depois veio o governo de direita protagonizado por Sebastián Piñera que, justamente, prometia governar, restituir a força do governo contra a criminalidade comum fomentando políticas de crescimento. O governo de Piñera esteve marcado pelo acirramento das convocatórias das marchas estudantis que deixaram de ser “estudantis” e se ampliaram para serem marchas sociais, onde aposentados, pais, trabalhadores, ecologistas e estudantes em geral, começaram a marchar juntos. E isso até o hoje na marcha “não mais AFP” (contra o sistema de privatização das pensões).
Nessas condições, o pacto oligárquico sustentado pela “fábula do Chile” experimenta cada vez menos legitimidade, sobretudo nesse momento em que Piñera se converte no primeiro presidente da direita política a ganhar a presidência pela via democrática depois de mais de 50 anos (o último tinha sido Jorge Alessandri, em 1958). A fábula desmorona, é destituída pela força das ruas, sua legitimidade é quebrada, seus “consensos” de cúpula tornam-se ineficazes e a direita chega ao governo sintomatizando essa destituição ao aumentar a violência da repressão e exibindo ao mesmo tempo a fragilidade da “fábula” que havia motivado a renovação do pacto oligárquico do Chile depois das diferentes saídas ou mortes “físicas” de Pinochet (de presidente a comandante em chefe, de comandante em chefe a senador, de senador a prisioneiro em Londres, de prisioneiro em Londres a aposentado e de aposentado a idoso doente e de idoso doente a morto).
É quando Bachelet, que nesse momento se encontrava na ONU Mulher, começa a perfilar-se como uma possível candidata da Concertação de Partidos pela Democracia que, enquanto estrutura partidária, estava totalmente deslegitimada pelas mobilizações estudantis que removeram o encaixe da “fábula” e, com isso, deslegitimaram as duas grandes coalizões que configuraram essa “fábula”: a direita política e a centro-esquerda. No entanto, na minha opinião, consideraria que as duas grandes coalizões pertencem a um mesmo Partido Neoliberal com diferenças internas, porque ambas participaram da renovação do pacto oligárquico que articulava o goverment by consent da “fábula do Chile”. Neste cenário, a antiga Concertação de Partidos pela Democracia transforma-se na Nova Maioria, pois integra em suas fileiras o Partido Comunista.
Parece-me que o segundo governo de Bachelet teve dois momentos. Um primeiro momento em que predominaram as forças de esquerda que tentaram ir além do pacto oligárquico. E um segundo momento em que estas forças são expulsas da sua incidência de fato do governo, restituindo, assim, o pacto oligárquico, promovendo reformas tímidas que, longe de acabar com o marco neoliberal, ampliaram seu horizonte.
Um exemplo: a reforma da educação excluiu os bancos privados da gestão da dívida estudantil, mas a transferiu para o Estado, sem perdoar a enorme dívida dos estudantes e convertendo o Estado no agente que age como antes agiam os bancos. Houve uma espécie de “secularização” do banco no Estado, uma mudança em que o neoliberalismo chileno resume sua fórmula: todos os conceitos bancários convertem-se em conceitos estatais economizados. Como se vê, é uma mutação delirante. E tudo isso, sem contar com o fato de que o conceito de educação imposta pelas alas tecnocráticas do Partido Neoliberal está orientada para o mercado. Certamente, a reforma introduziu um curioso mecanismo de subsídio à demanda que chamou de “gratuidade”, mas como uma espécie de condição ética do país. Evidentemente que isso gerará um maior acesso à educação superior, mas consiste tudo em gerar maior acesso? Quando, há vários anos, a administração Lagos implementou o Crédito com o Aval do Estado o discurso também estava orientado a propiciar o maior acesso. Mas o maior acesso ao custo do endividamento em massa, e hoje a “gratuidade” ao preço de manter um modelo de educação completamente neoliberal.
Vou dar outro exemplo: a mudança da Constituição de 1980 que, em parte, marcou inicialmente as prioridades do governo e que quis dar vazão a uma demanda cidadã muito enraizada. No entanto, esse processo de mudança da Constituição jamais apelou a algum “poder constituinte” como, minimamente, é reconhecido este tipo de processo na época moderna e, em particular, na América Latina. Como fazê-lo se o Partido Neoliberal substituiu o termo econômico de “gente” pela noção política de “povo”? Como fazer uma transformação da Constituição que não fosse entre quatro paredes, como aconteceu em 2005 com Ricardo Lagos, quando se prescinde completamente de qualquer noção de “povo” que permitisse estabelecer um “poder constituinte”? A aporia poderia ser formulada da seguinte maneira: queremos reformar a Constituição sem articular um “poder constituinte” e, ao mesmo tempo, sem que estas reformas acabem nas quatro paredes de alguns juristas “peritos”, uma vez que isso carecerá de toda legitimidade. Assim, a solução do governo foi recorrer a uma técnica governamental, via internet, que – embora tenha favorecido a possibilidade de encontro de grupos de cidadãos que, pela primeira vez, discutiram sobre a possível Constituição futura – careceu do estatuto “constituinte” que lhe deve ser outorgado quando se quer que o processo tenha uma vitalidade política e mantenha no tempo a força da legitimidade.
Em suma, houve reformas que não reformaram, houve mudanças que não mudaram o modelo. Como aconteceu durante os anos de “transição”, as “reformas” nunca reformaram nada de substancial, nunca contestaram a “fábula do Chile”, mas mantiveram o elemento mítico da sua violência no pressuposto do “era uma vez” (“era uma vez” um lobo feroz que veio devorar a todos), repetindo-o ao não transgredir os limites do pacto oligárquico. Sempre se tratou da tentativa de renovar esse pacto e manter a “fábula” como sua “razão de Estado”. Bachelet expulsa a esquerda efetiva e mantém a esquerda estetizada. Na passagem do primeiro para o segundo momento, travou-se uma espécie de reedição da famosa “lei maldita’, segundo a qual, nos anos 40, o presidente radical Gabriel González Videla, eleito por uma coalizão chamada Frente Popular com os votos do Partido Comunista, e que – em virtude do fim da Segunda Guerra Mundial e da configuração de um cenário internacional marcado pela “guerra fria” – acabou [a Frente Popular] aderindo ao polo dos Estados Unidos, prescrevendo o PC (Neruda, que era senador da República nessa época, foi exilado).
Hoje, produz-se uma espécie de reedição desse episódio, mas com uma diferença: o “comunismo”, como ideia, foi expulso, mas sem o Partido Comunista, que se manteve vigente dentro da coalizão. Assim, a “ideia comunista” fica explicitamente dispensada de Partido e, ao mesmo tempo, o Partido sofreu um esvaziamento de sua força. Hoje, há PC só como estética. Hoje, com esta coalizão, o PC acabou sendo o “parente pobre” do Partido Neoliberal. Houve uma espécie de “lei maldita” nova, mas sem seu pronunciamento excepcionalista, mas com seu movimento para dentro das forças de governo em que triunfou a ala tecnocrática do Partido Neoliberal (o Partido pela Democracia ou PPD). Não é possível haver transformações sem um sujeito propriamente político, sem levar em conta essa potência popular que enche de vez em quando as ruas e que imagina um mundo radicalmente diferente. Porque, com efeito, a reedição da “lei maldita” provocou a expulsão da esquerda do poder, substituindo-a por uma esquerda tecnocrática coerente com o projeto ideológico do Partido Neoliberal. Por isso, o que esteve ausente deste governo – como esteve ausente nos últimos 30 anos – é a política no sentido de uma potência popular capaz de revogar toda violência histórica.
IHU On-Line - Muitos especialistas sinalizam que as chances de o Partido Socialista do Chile eleger um presidente nas próximas eleições serão menores e inclusive se avalia que Sebastián Piñera figure entre os favoritos para as próximas eleições. Concorda com essa avaliação? A que atribui essa possibilidade?
Rodrigo Karmy - É verdade, o cenário atual mostra que Piñera pode vir a ser novamente o futuro presidente do Chile. Mas isso não significa dizer que a corrida está resolvida, e sim que haverá muita concorrência, e me parece que tudo dependerá de se haverá capacidade ou não para unir as forças de esquerda que o governo de Bachelet (sobretudo no seu “segundo tempo”) deixou bastante prejudicadas. Porque não se trata simplesmente de se unir para “derrotar o Piñera”, mas transformar as condições do pacto oligárquico do Chile, para destituir definitivamente a matriz pastoral da “fábula do Chile”. Mas, para realizar isso, é necessário um novo imaginário político que surja das ruas.
Penso também que houve uma crítica permanente contra Piñera no sentido de que um “corrupto” que associa seu poder econômico ao poder político não pode ocupar a presidência. Penso que é uma crítica “correta”, mas não “verdadeira”, porque não considera que o que está em jogo em figuras como Piñera (o equivalente a Macri na Argentina) é uma ética ou uma subjetividade que foi configurada em anos de violência neoliberal que se resume à seguinte fórmula: “ganhar dinheiro, porque o dinheiro faz ganhar”. O eleitor de Piñera quer isso. Não quer a lei, a ética, a razão ou o que quer que seja. Quer o “ganhar” do capital com toda a sua violência, com todo o seu caráter “mítico” que se reproduz infinitamente pelo campo social. O progressismo erra o caminho se pensa que irá deter Piñera denunciando seu caráter “corrupto”, assim como errou o caminho o Partido Democrata de Clinton ao rebaixar Sanders e ao criticar “racionalmente” Donald Trump.
O progressismo deve assumir que sua crítica se reduz ao seguinte: os eleitores de Piñera são idiotas (como os de Trump ou de Macri), o que implica dizer que nós, progressistas, somos os inteligentes, que temos o privilégio da razão. Para mim, é uma posição igualmente fascista. E absolutamente ineficaz em sua crítica, cada vez que a esquerda a empreende. A direção deve ser outra: não apelar ao “dever” ou à “razão”, não apelar aos ideais, mas voltar-se sobre a materialidade das lutas. Nessa medida, o progressismo da esquerda neoliberal fez essa crítica, mas não foi capaz de ver que, se para Piñera é possível fundir o poder político com o econômico, é porque as condições em que uma coisa dessas foi possível jamais foram transformadas, uma vez que tais condições são aquelas que são liquidadas na renovação do pacto oligárquico imposto por Pinochet. Com a ditadura, o capital aceita seu pacto de sangue. Essa unidade manteve-se intacta até hoje, e essa esquerda neoliberal foi incapaz de transformá-la, porque nunca questionou o próprio “modelo”, uma vez que ficou subsumida à espectralidade do terror promovido pela “fábula” como “razão de Estado”. As eleições serão em novembro. Vamos ver então o que vai acontecer com Piñera e os outros candidatos.
IHU On-Line - Tem sido feita uma crítica geral aos partidos progressistas da América Latina, porque seus governos, segundo os críticos, desenvolveram políticas mais liberais do que progressistas. Essa crítica se aplica ao Chile também? Por quê?
Rodrigo Karmy - Eu penso que a “maré rosa” nunca teve lugar no Chile, nunca fizemos a experiência de governos progressistas como aconteceu na Bolívia, Equador, Argentina ou Brasil. Aqui houve uma transição indefinida. Uma “má infinitude”, caso se queira, um katechon perpétuo fundado sobre a fábula como nova “razão de Estado”. Nem mesmo houve “maré rosa”. O Chile pareceu uma verdadeira ilha a partir da qual contemplamos o devir da história. Vimos como nasceu e sucumbiu Chávez, vimos como nasceram e sucumbiram os K [Kirchner], vimos tudo de longe. Do “outro lado da cordilheira” que, como um muro, o imaginário chilensis acredita isolar-se.
Como a verdadeira pequena-burguesia que é, a oligarquia militar-financeira chilena manteve-se fiel aos mandatos do Senhor (Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial, Estados Unidos e China). Aprofundou os tratados de livre comércio e concebeu as relações internacionais como relações puramente econômicas com o continente latino-americano. Como lhe digo, não houve projetos de esquerda nos governos do Chile desde a vitória da Unidade Popular, em 1970, com Allende. E penso que isso se deveu à força da “fábula do Chile” que, uma e outra vez, propaga uma só “moral”: não se desviem do caminho estipulado, porque pode vir o lobo feroz para devorá-los.
Se Allende sofreu o que sofreu foi precisamente porque – diz a fábula – não foi um “bom pastor”, mas alguém que desencaminhou as ovelhas. E toda a política pós-Allende não consistirá senão em “reparar” essa ferida que a oligarquia imputou à esquerda e que esta última acabou assumindo dramaticamente na forma da “fábula do Chile”, sob a qual prometeu “governabilidade”, isto é, manutenção do pacto oligárquico renovado com a ditadura cívico-militar de Pinochet e consolidado pela transição política da democracia.
IHU On-Line - O Chile é considerado o primeiro país do mundo a privatizar o sistema de previdência, ainda nos anos 80. Quais são as consequências disso e como os chilenos avaliam essa decisão olhando em retrospectiva? Como esse tema tem sido rediscutido no país nos últimos anos?
Rodrigo Karmy - As consequências da implementação deste sistema foram que as pensões acabaram sendo muito baixas em comparação com os salários que os próprios cotistas tinham em sua vida profissional. A “aposentadoria” transformou-se em uma enorme fraude e os grandes poderes corporativo-financeiros pressionaram para mudar o discurso: não se trataria de que a lógica da capitalização individual, que lhe é característica e sua instituição par excellence que é a AFP, seja um problema “estrutural”, mas o que as “pessoas” supostamente queriam era mais e melhores pensões. Com isso, os grandes empresários propuseram a elevação da idade para a aposentadoria negando-se categoricamente – uma vez que eles ganham milhares de milhões de dólares por dia com as AFPs – a construir um “sistema de partilha”. O tema da aposentadoria e a contestação das AFPS e dos seus grupos econômicos associados surgiu das ruas de um movimento chamado “Não mais AFP” e que convocou grandes marchas cidadãs durante o ano passado (2016). Isso provocou um grande debate nacional em torno do tema. E, o governo optou, como é de costume, pela proposta de uma AFP estatal – questão que não muda absolutamente em nada a estrutura do modelo vigente e que, portanto, contribui menos ainda para um sistema de partilha como aquele que se começou a propor.
É curioso que a “aposentadoria” – cujo nome designa o momento de alegria depois do trabalho realizado – tenha se transformado em um sofrimento que mantém os idosos endividados, empobrecidos e cheios de doenças que não podem cobrir, enquanto os altos executivos enchem os bolsos. Gostaria de lembrar que este sistema foi imposto, como você diz, nos anos 80, mas no contexto da ditadura. Por isso, não houve oposição possível. O problema é que não temos um sistema para defender, mas um sistema para transformar. Eu dizia que a “aposentadoria” acaba designando um sofrimento, porque me parece que isso é tremendamente sintomático para um país: que não possa haver “aposentadoria” significa que não predominam paixões alegres, mas tão somente paixões tristes, modos que cristalizam os inumeráveis dispositivos de corte “bioeconômico” orientados à captura da potência da vida.
IHU On-Line - No Brasil se evidencia uma crise do sistema político, especialmente da esquerda em geral. O mesmo ocorre no Chile? Qual é a situação dos partidos de esquerda do país?
Rodrigo Karmy - Penso que sim, mas não basta dizer que há uma “crise” da esquerda. Penso que o termo “crise” está em crise, uma vez que se transformou em uma espécie de “clichê” ou em um lugar comum que impede a reflexão. Mais que “crise”, a esquerda renunciou à imaginação política. Fundiu-se em uma espécie de matriz pastoral que a tornou compatível com a razão neoliberal e a oligarquia que a sustenta. A queda dos governos progressistas na América Latina mostra algo chave: que essa esquerda usou seus discursos anti-imperialistas contra os Estados Unidos para abrir outro fluxo possível do capital global, mas não para contestar o capital global, como acontecia nos anos 60. Por isso, não abandonou o extrativismo neoliberal, mas o readequou em um horizonte “decolonial”.
Explico-me – e nisto creio que serei muito polêmico: penso que a experiência dos governos de esquerda na América Latina, com todas as suas diferenças internas, só mudaram o código estético, mas não necessariamente o político, mudaram suas formas, mas não a razão neoliberal. Tornaram possível um neoliberalismo “latino-americano”, fundado na “identidade” cultural de seus povos, mas não contestaram este neoliberalismo. Com outras palavras, articularam a realidade global do neoliberalismo transformando sua estética norte-americana em uma estética amarrada aos registros estéticos próprios.
Isso não quer dizer que não tenha havido contestação do modelo desse momento (um neoliberalismo inteiramente hegemonizado pelos Estados Unidos) e não quer dizer que não tenha havido conquistas importantes dos povos (quanto a direitos e políticas públicas que, efetivamente, fizeram retroceder determinadas formas neoliberais arraigadas desde as oligarquias nacionais), mas em vez de desativar a lógica neoliberal este acabou sobrevivendo sob uma estética “decolonial”, reivindicando as identidades locais e articulando assim um movimento geral que acaba consolidando o Império precisamente porque promove a diversidade e o identitarismo. Assim, o cenário atual é o de um Império (um capitalismo) interna e culturalmente diferenciado.
Penso que isso ocorreu porque as forças políticas e intelectuais que se propunham uma transformação do capitalismo neoliberal ficaram finalmente excluídas, mantendo sua estética, mas não sua vitalidade. E penso que isso ocorreu porque se privilegiou uma crítica à despolitização neoliberal que reivindicava a política como exercício de soberania (via a noção de “poder constituinte”), mas que não tinha uma análise – e de uma estratégia contrária – do capitalismo neoliberal. Não tinha um diagnóstico acerca do que era o capitalismo neoliberal e, como vemos, agora isso fica claro: era o Império no sentido de um “globo” internamente diferenciado, um “globo” cujas estratégias funcionam sempre a ponto de arrebentar, um “globo” que admite a diversidade estética, mas não sua potência popular. E penso que, neste sentido, é necessário voltar – outra vez – a Marx. Discutir com e contra Marx, uma vez que temos necessidade de um conceito do comum, do uso e da economia que não assuma a forma capitalista. Penso que, neste cenário, não é por acaso que Foucault tenha recebido tanta leitura no Cone Sul e tenha podido sobreviver a tantas tempestades da esquerda. Assim, a situação dos partidos de esquerda é penosa.
Por um lado, na esquerda neoliberal temos partidos oligarquizados (como o Partido Socialista ou o Partido pela Democracia) e neoliberalizados, no sentido de que carecem de qualquer proposta que esteja fora do quadro traçado pela razão de Estado neoliberal e sua “fábula”. Mas, por outro lado, está emergindo uma nova força que se chama Frente Ampla e que, ainda assim, me parece que também está tensionada internamente por essa “fábula”, que, no entanto, deve articular todas as suas forças para desativá-la. É o que espero. Mas entendo que esta não é uma questão fácil. Mas que assunto político seria fácil?
IHU On-Line - Quais são os principais possíveis candidatos que irão disputar as eleições chilenas neste ano e quais são as expectativas em relação às eleições?
Rodrigo Karmy - Hoje nos encontramos em um cenário de “primárias”, isto é, de eleições prévias à “verdadeira” eleição. Nessas “primárias” serão escolhidos os candidatos a presidente do Chile e ao Parlamento, que acontecerá em novembro. Estando nas “primárias” temos muitos candidatos, muitos dos quais ficarão pelo caminho. Pelo lado da direita, temos um candidato pró-militares da ditadura e muito católico, que é José Antonio Kast, mas que não pertence à coalizão da direita neoliberal Vamos Chile. Nesta coalizão temos três candidatos: Manuel José Ossandón, que foi prefeito de Puente Alto e que responde ao perfil da direita populista; Sebastián Piñera, que foi o primeiro presidente da direita eleito democraticamente em 2010, após 50 anos, e que representa os setores empresariais; e Felipe Kast (sobrinho de José Antonio, para que veja o nível da oligarquia que está aqui presente), que representa uma geração jovem da direita neoliberal que está desencantada com determinadas posições conservadoras e/ou autoritárias dentro dos partidos tradicionais da direita; pelos independentes concorre Franco Parisi, com algum apoio dos evangélicos (muito minoritário), que é, na realidade, um candidato que não tem a menor importância; a Nova Maioria, por sua vez, vai dividida entre uma candidata da Democracia Cristã, que é Carolina Goic, e Alejandro Guillier, que é apoiado pelo Partido Radical, pelo PPD e pelo PS. Penso que Goic não terá relevância, pois constitui uma candidatura que tenta mostrar forças da DC aos seus aliados, mas não sabemos se irá sobreviver até o final. E, finalmente, na Frente Ampla, que é a esquerda que não quer ser neoliberal, estão competindo dois candidatos: Beatriz Sanchez e Alberto Mayol, com um projeto similar, mas que não saberemos se serão capazes de finalmente destronar o Partido Neoliberal. E a verdade é que não sei se há expectativas em relação a estas eleições.
Penso que o mais interessante para mim será ver como vai se constituir a Frente Ampla, que é a força nova e que vai agora para a sua primeira eleição. Não sabemos se o pacto do PS com a DC se manterá ou não (um pacto histórico, que é o pivô da coalizão), uma vez que tudo está bastante frágil e instável. Diria que a “fábula do Chile” está experimentando sua exoneração, mas ainda segue em vigor com a ferocidade da “violência mítica” inaugurada por todos os Pinochets que passaram pela história do Chile. Mas essa exoneração não veio de “cima”, e sim de “baixo”, onde muitos de nós não nos cansamos de protestar.
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A guerra civil global na Síria e a luta pela apropriação dos fluxos de capital. Entrevista especial com Rodrigo Karmy - Instituto Humanitas Unisinos - IHU