14 Março 2017
“O papa conseguiu o milagre de obter um consenso tão amplo, separando muito claramente a sua figura da do resto da Igreja, aproveitando até o fim todas as vantagens que derivam do fato de ser o sucessor de Pedro na cena política e social global, mas tentando, ao mesmo tempo, apresentar-se como o primeiro opositor daquela mesma instituição à qual ele serviu por uma vida inteira e que agora dirige. Nicolau II e Lênin. O czar reacionário e o incendiário revolucionário.”
A opinião é do sociólogo italiano Marco Marzano, professor da Universidade de Bérgamo, em artigo publicado no jornal Il Fatto Quotidiano, 13-03-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Segundo ele, "quanto da atitude inclusiva de Bergoglio é resultado da sua personalidade e do seu olhar peculiar sobre a Igreja e quanto é fruto de tempos que lhe permitem tal atitude ecumênica? Se, por um lado, é verdade que o papa argentino foi por toda a vida um obstinado buscador de unidade, o tecelão de tramas que integrassem e aproximassem os opostos, é igualmente indubitável que a situação atual da Igreja, na qual nenhuma das alas (à direita e à esquerda) parecem real e perigosamente capazes de perturbar os equilíbrios em sua própria vantagem, favorece muitíssimo essa política de pacificação".
Francisco é o papa da misericórdia, da hospitalidade, da inclusão, o pontífice romano que está tentando unir os opostos, agradar a todos, dentro e fora da Igreja. O Papa Francisco está encorajando o retorno da extrema direita anticonciliar lefebvriana aos braços da Santa Mãe Igreja, mas reabilitou, ao menos em parte, os teólogos da libertação postos no Index pelos seus antecessores nos anos 1980.
Francisco é o amigo do movimentismo carismático católico (um consórcio não precisamente progressista), decidiu a translação do corpo daquele exemplo da religiosidade popular e mágica que é o Padre Pio. Mas Francisco também é o defensor mais influente dos direitos dos migrantes e dos excluídos.
O Papa Bergoglio é o companheiro do superputiniano patriarca reacionário ortodoxo russo Kyril, com quem compartilha a apreciação pela musculosa política russa no Oriente Médio e, ao mesmo tempo, é o iluminado jesuíta que dialoga com o ateu fundador do jornal La Repubblica, Eugenio Scalfari.
O primeiro papa argentino é um inimigo jurado da “teoria” de gênero (assim como, quando era arcebispo de Buenos Aires, foi um feroz adversário dos casamentos gays desejados pela presidente Kirchner), mas também é o defensor das (tímidas, mas reais) aberturas aos divorciados em segunda união dentro da Igreja.
Em suma, o Papa Bergoglio é tudo e o contrário de tudo, um caleidoscópio midiático no qual cada um pode encontrar o que procura: há quem veja nele o corajoso revolucionário, e quem o aplauda pela sua moderação e pela sua substancial fidelidade absoluta à doutrina social da Igreja, ao seu sistema tridentino baseado em um clero celibatário e de autoridade e, portanto, à continuidade de uma instituição milenar.
Os contestadores do pontificado são tão poucos e isolados que correm o risco de serem linchados, mesmo que apenas virtualmente, como aconteceu com o caso da moderada contestação dos cartazes romanos. Bergoglio não é criticável: um santo, um profeta, uma espécie de divindade midiática, o objeto de um culto à personalidade que anula o espírito crítico e a possibilidade de graduar o julgamento.
O papa conseguiu o milagre de obter um consenso tão amplo, separando muito claramente a sua figura da do resto da Igreja, aproveitando até o fim todas as vantagens que derivam do fato de ser o sucessor de Pedro na cena política e social global, mas tentando, ao mesmo tempo, apresentar-se como o primeiro opositor daquela mesma instituição à qual ele serviu por uma vida inteira e que agora dirige. Nicolau II e Lênin. O czar reacionário e o incendiário revolucionário.
Essas são as partes que o papa desempenha no tabuleiro mundial de acordo com os contextos e as situações. E não há contradição entre esses dois papéis, porque o pontífice revolucionário é o papa autor de discursos inovadores, de posicionamentos corajosos, de gestos anticonformistas como carregar sozinho a maleta, descendo do avião, ou vestir velhos mocassins, ou viver em Santa Marta em 90 metros quadrados e não no luxuoso apartamento papal, enquanto o papa conservador é aquele que não modifica a doutrina em uma linha, que não reforma a Cúria, que não fecha o IOR, que não toca no celibato, que não concede nada às mulheres ou aos homossexuais etc.
O coro midiático sugere que é a estrutura má e malvada, os pérfidos cortesãos que tramam contra ele nas sombras, que o impedem de operar na Igreja aquela revolução que ele está fazendo na apresentação da sua figura pessoal. Era aquilo que se dizia de Stalin na Rússia, nos piores períodos da ditadura: “Ah, se Stalin soubesse”. “Ah, mas um dia, ele vai intervir e varrer esses criminosos que estão traindo a revolução”.
Essa é a versão da mídia, que demonstra não ter entendido, ou talvez não querer entender, o segredo profundo do papado, que é justamente o de agir com extrema inteligência dentro dessas ambiguidades, contentando, com mensagens diferentes e de vez em quando, a uns e a outros, a conservadores e a progressistas; os primeiros, tranquilizados pela falta de reformas; os segundos, galvanizados pelas palavras novas que vêm dos palácios apostólicos.
Quanto da atitude inclusiva de Bergoglio é resultado da sua personalidade e do seu olhar peculiar sobre a Igreja e quanto é fruto de tempos que lhe permitem tal atitude ecumênica? Se, por um lado, é verdade que o papa argentino foi por toda a vida um obstinado buscador de unidade, o tecelão de tramas que integrassem e aproximassem os opostos, é igualmente indubitável que a situação atual da Igreja, na qual nenhuma das alas (à direita e à esquerda) parecem real e perigosamente capazes de perturbar os equilíbrios em sua própria vantagem, favorece muitíssimo essa política de pacificação.
Nos anos 1960, 1970 e 1980, quando a ameaça de uma supremacia progressista na Igreja sul-americana era mais consistente, Bergoglio, de vários modos, esteve ao lado de Karol Wojtyla em pleno apoio à repressão do perigo marxista. Tanto que foi justamente o já idoso pontífice polonês que o promoveu a arcebispo de Buenos Aires e, depois, cardeal. Outros tempos. Agora, Francisco é o papa de todos.
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Francisco, os quatro anos do “czar reacionário” e “incendiário revolucionário”. Artigo de Marco Marzano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU