02 Novembro 2016
"A plausibilidade da liderança universal de Francisco nasce justamente do seu caráter não autoritário, da sua ferrenha vontade de manter às margens as diferenças de doutrina, de convicções éticas, de posições morais. O grande federador do catolicismo, a garantia de todas as diferenças aspira a se tornar o pai único, alegre e amoroso, de todos os seguidores de Jesus, de todos os fiéis cristãos."
A opinião é do sociólogo italiano Marco Marzano, professor da Universidade de Bérgamo, em artigo publicado no jornal Il Fatto Quotidiano, 01-11-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Há ao menos duas chaves de leitura da participação do papa na comemoração do início da Reforma protestante. A primeira vê esse gesto como o último produto de uma "distensão" entre católicos e protestantes iniciado ainda pelo Concílio Vaticano II e que continuou, em velocidades diferentes, durante os papados de João Paulo II e de Bento XVI. Não podemos ter certeza de que está certo o diretor da Sala de Imprensa vaticana, Burke, quando diz que Ratzinger também teria realizado uma viagem desse tipo, mas é certo que o evento destes dias foi precedido por reflexões, encontros, discursos (por exemplo, aquele importante sobre a figura de Lutero proferido em Erfurt por Ratzinger em 2011) que preparam colegialmente, tornando-a possível, a viagem sueca de Francisco.
Em uma segunda chave de leitura, a decisão de ir à Lund pode ser interpretada como mais uma confirmação do caráter inclusivo do papado de Francisco. O pontífice não exclui ninguém do seu abraço misericordioso, busca sempre encontrar e valorizar aquilo que une e de colocá-lo acima daquilo que divide: ele busca recuperar ao catolicismo a extrema direita lefebvriana, assim como reabilita a extrema esquerda dos teólogos da libertação; no campo ecumênico, assina um documento conjunto com o patriarca ortodoxo superconservador russo, Kirill, no qual se condenam os casamentos gays e agora se dirige para Lund para comemorar Lutero e a Reforma junto com aqueles protestantes que aos gays (e às mulheres) reconhecem até o direito de se tornarem pastores.
Além disso, os inimigos que o papa escolheu são os que fazem o povo passar fome, os exploradores dos fracos e do ambiente, pessoas bastante indefensáveis por parte de qualquer um. A quem acredita em Deus e aos ateus desejosos de dialogar com ele, Francisco oferece amizade e compreensão. E, de fato, ele agrada a todos, ou quase todos.
Mas seria equivocado interpretar essas atitudes como sinais de um oportunismo, "bondoso" ou complacente. O papa não é "bom", tanto que, há 30 anos, defendia a Contrarreforma e atacava ferozmente Lutero e Calvino.
Não, essa atitude do papa é, antes, a consequência de um projeto político preciso, que tenta fazer do papado católico o centro e o coração do cristianismo mundial e, do pontífice, o embaixador universal de todas as Igrejas cristãs. E de fazer isso explorando a imensa popularidade e a extraordinária visibilidade midiática garantida por toda a parte ao último grande monarca, ao chefe supremo da mais antiga instituição mundial, que, também desta vez, conseguiu conquistar o centro da cena obscurecendo Lutero e o protestantismo.
Não existe uma figura remotamente semelhante entre os ortodoxos e os protestantes, atravessados, internamente, por uma miríade de conflitos. A plausibilidade da liderança universal de Francisco nasce justamente do seu caráter não autoritário, da sua ferrenha vontade de manter às margens as diferenças de doutrina, de convicções éticas, de posições morais. Reemergiriam imediatamente os contrastes.
O grande federador do catolicismo, a garantia de todas as diferenças aspira a se tornar o pai único, alegre e amoroso, de todos os seguidores de Jesus, de todos os fiéis cristãos. É uma ambição provavelmente cultivada, sem sucesso, também por Wojtyla e Ratzinger. Mas, agora, as condições parecem mais favoráveis, e a personalidade de Francisco, decisivamente mais adequada.
Nesse contexto, o tema da reforma interna da Igreja Católica perde relevância. A grande reforma de Francisco é a reforma (não oficial e não formal) do papado, a mudança do modo pelo qual o pontífice se apresenta ao mundo e é percebido pelas grandes massas e pelos líderes de opinião.
É aqui que a Igreja Católica joga a sua partida com o restante do mundo e com as outras confissões religiosas. Com todo o respeito a Lutero e à sua aversão tão radical aos sucessores de Pedro.
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O papa e Lutero, um projeto político. Artigo de Marco Marzano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU