Por: Cepat | 15 Julho 2013
A análise da Conjuntura da Semana é uma (re)leitura das Notícias do Dia publicadas diariamente no sítio do IHU. A análise é elaborada, em fina sintonia com o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, pelos colegas do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, parceiro estratégico do IHU, com sede em Curitiba-PR, e por Cesar Sanson, professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, parceiro do IHU na elaboração das Notícias do Dia.
Sumário
Lampedusa, a “encíclica” com a cara de Francisco
Lampedusa. A ilha dos sem paradeiro
A decisão de Francisco por Lampedusa
Símbolos que gritam por si
Discurso simples, mas direto e profético
“Rezar não é governar”. As críticas
Conjuntura da Semana em Frases
Eis a análise.
Lampedusa, a “encíclica” com a cara de Francisco
Em Lampedusa começa o pontificado de Francisco. Não em ordem cronológica, mas de importância e significação de seu ato (kairós). Lampedusa é a primeira “encíclica” de Francisco. Não é uma encíclica escrita, mas uma encíclica em ato, em gestos. Nesta encíclica, “o ministério petrino se despe das suas vestes monárquicas para se tornar encontro com a pessoa humana”, como diz Christian Albini.
Esta encíclica é diferente da outra, a Lumen Fidei, escrita por Ratzinger, mas, na caridade, assumida por Francisco, para, de acordo com Marco Politi ser “enviada para ser impressa e enterrá-la”. A de Lampedusa, ao contrário, tem a sua cara. Nela palpita seu coração. Nela transparece e reluz o seu programa.
Foto: La Repubblica
O pontificado de Francisco já representa uma “mudança de rota”. “São ações que têm um coração, uma palavra, que narram um modo de estar à frente da Igreja que visa a inverter o ponto central até agora inerente à figura do pontífice, às quais todos tendem e que agora contam os lugares dos últimos, as periferias a serem lidas não só em sentido geográfico, mas também como os espaços daqueles que estão às margens. Os pobres como o novo centro desta Igreja”, na opinião é de Nicola Zingaretti, presidente da região do Lazio e ex-presidente da província de Roma, na Itália.
Mesmo tendo passados apenas um pouco mais de 100 dias do seu pontificado, muitos aspectos poderiam ser objeto de uma análise mais aprofundada. Entretanto, por uma questão prática (delimitar o amplo material de análise disponível), mas sobretudo por uma questão de importância simbólica e programática, circunscreveremos a presente à visita do Papa Francisco à ilha de Lampedusa.
Lampedusa. A ilha dos sem paradeiro
Lampedusa é uma ilha italiana com belas paisagens naturais, localizada no sul do Mediterrâneo. Fica mais próxima da Tunísia do que da Sicília e, uma vez que sua distância da costa do norte da África não ultrapassa em muito os 100 km, tornou-se rota de passagem para a Europa, principalmente de pessoas refugiadas. Nesta ilha, “há mais de 20 anos, tocam-se os extremos da cada vez menos rica Europa e do cada vez mais deserdado povo dos condenados da terra. Só em 2011 lá desembarcaram mais de 50 mil pessoas”.
Fonte: Wikipédia |
Provenientes de áreas de conflito, com a vida em risco em seus países de origem, sejam pelas mais diversas causas, especialmente pelas guerras e fome, homens, mulheres e crianças acabam não tendo outra opção a não ser partir de suas terras. Assim, arriscam-se em embarcações precárias rumo a melhores condições de vida. São muitos os que padecem no mar. Fala-se em cerca de 20 mil mortos no mar e de aproximadamente 200.000 pessoas que já passaram pela ilha.
Dentre essas tragédias e a capacidade brutal da ação humana, pode ser citado, por exemplo, a situação desencadeada, em 2011, a partir do conflito na Líbia. De acordo com matéria organizada por Ricardo Machado, “em 2011, quando foi deflagrado o conflito entre a sociedade civil e o governo de Muamar Khadafi, o Estado líbio usava pessoas como ‘bombas’, enviando-as ao velho continente para pressionar a comunidade europeia para não apoiar os insurgentes. De acordo com a Organização Internacional para as Migrações – OIM, muitos dos imigrantes enviados a Lampedusa foram obrigados pelas forças de Khadafi a subir em barcas precárias para atravessar o Mediterrâneo. A munição humana como estratégia de guerra provocou, entre outras razões, o naufrágio de um barco com 600 fugitivos”.
John L. Allen Jr., em reportagem publicada no sítio National Catholic Reporter, enfatiza que “para os europeus, especialmente para os italianos, a ilha de Lampedusa, no sul do Mediterrâneo, tornou-se o que os desertos ao longo da fronteira entre o México e os Estados Unidos são para os norte-americanos – o cenário de terríveis tragédias humanitárias, enquanto migrantes desesperados tentam alcançar uma vida melhor, assim como uma metáfora para as tensões políticas e culturais em torno da política de imigração”.
De fato, esta é uma trágica situação que diz respeito a todos. Um tema que escancara plenamente a indiferença e a morosidade dos países em relação aos dramas humanitários vivenciados por estas pessoas, além de significar um esfacelamento total da solidariedade entre os povos.
Na maioria dos países, nega-se sistematicamente a garantia de direitos para os homens e mulheres que tiveram que abandonar suas terras. Por exemplo, na opinião da presidente da Câmara de Deputados italiana, Laura Boldrini, “é um anacronismo perigoso o fato de que uma lei sobre a cidadania [italiana] não reconheça que na Itália vivem quatro milhões de imigrantes aos quais os direitos civis são negados”.
A situação dos imigrantes e refugiados é desconcertante e clama aos céus. Nas palavras do missionário jesuíta Paulo Welter, que já foi diretor nacional do Serviço Jesuíta aos Refugiados – SJR – em Angola, “os refugiados provocam muitas inquietudes diante da legislação em vigor em certos países que se ‘protegem’ impedindo e ou negando a dignidade de vida ao seu irmão e semelhante. Pois estas pessoas apenas têm uma opção: proteger suas vidas em outro país uma vez que o seu não mais garante a mínima proteção e os direitos básicos de vida”.
E é para com essas pessoas que o Papa Francisco, assim como Jesus diante das multidões famintas, sentiu compaixão, e, como um irmão, quis se aproximar, ouvir e consolar. Esta saga merece ser contada desde o seu início.
A decisão de Francisco por Lampedusa
O Papa Francisco demonstrou atenção e interesse pelo fenômeno das migrações logo que assumiu o pontificado ao aceitar prontamente o convite para visitar o Centro Astalli, uma estrutura de acolhimento dos jesuítas aos refugiados em Roma. Naquela ocasião, o padre jesuíta Giovanni La Manna, do Serviço Jesuíta aos Refugiados, parecia não acreditar que tivesse recebido, pessoalmente, uma ligação do próprio Papa confirmando a visita. “Sentir-se encorajado por um papa que pede uma Igreja pobre para os pobres também nos ajuda a redescobrir o entusiasmo e a alegria de gastar a nossa vida no serviço de ajuda aos pobres”, disse, então, La Manna. Era apenas o prenúncio daquilo que estava por vir: a visita a Lampedusa.
Ainda era o mês de março quando Francisco, que também é “um filho da imigração”, recebeu uma carta de Stefano Nastasi, pároco em Lampedusa, convidando-o para conhecer a ilha. Com uma linguagem tocante, Nastasi escreveu: “As lágrimas que marcam os rostos das pessoas resgatadas do mar falam de sol e de sal, de arrepios de frio e de fome”. Em seguida, desferiu palavras que não poderiam deixar de despertar o que no coração do Papa parece ser abundante, a compaixão: “Eu gostaria de pensar que as lágrimas dos seus olhos, que fluíram no momento da sua eleição, poderiam se encontrar com as lágrimas de todo homem e de toda mulher que sofrem nos quatro cantos do mundo”.
Fonte: Periodista Digital |
Passaram-se alguns meses, de muito trabalho, audiências, pronunciamentos e de arrancada em reformas importantes na Cúria Romana, contudo, nada fez o Papa se esquecer do convite e superando as expectativas tornou o mesmo a razão de sua primeira viagem. Assim, Lampedusa que muitos prefeririam ocultar, fazer de conta que não existe, tornou-se um ponto de partida para Francisco.
Com esta visita, o Papa Francisco inaugurou o que o vaticanista Giacomo Galeazzi chamou de pontificado “on the road”. Com algumas características próprias do estilo Bergoglio: improvisado, autônomo e simples. Francisco não quis seguir os protocolos curiais, dispensou a mediação da Secretaria de Estado e acertou tudo sobre a viagem com o próprio arcebispo de Agrigento, Francesco Montenegro, responsável pelo pastoreio na ilha. A visita do Papa não nasce de um acordo entre autoridades, mas, sim, da gritante situação dos refugiados que, em meados de junho, protagonizaram mais um naufrágio entre tantos outros na história desta rota de passagem. Neste sentido, trata-se de um gesto em favor dos imigrantes e refugiados. Como bem destacou Galeazzi, “o pontificado itinerante de Francisco começa onde a sua ‘Igreja pobre para os pobres’ experimenta cotidianamente a fronteira do desconforto”.
Também por isso, o Papa dispensou a presença de autoridades políticas. Quis dar ao encontro com os pequeninos de Lampedusa um caráter discreto, particular. Não foi à ilha como um chefe de Estado, mas como um companheiro das vítimas da indiferença. Apenas a prefeita Giusi Nicolini, o pároco e o bispo de Agrigento, dom Francesco Montenegro, foram os que o acompanharam. “É o caráter pastoral da breve visita do Pontífice a uma das mais dramáticas ‘periferias existenciais’, onde muitas vezes a humanidade é ofendida, que exclui o encontro com políticos e com as autoridades, mesmo as religiosas”. Como bem pronunciou dom Montenegro: “Os irmãos migrantes sobre os quais muitas vezes se fazem julgamentos pesados verão que alguém vai com simplicidade e com afeto dizer que está do seu lado”.
Símbolo da força e significado da presença do Papa na ilha, uma faixa: “Il Papa la speranza, la politica la panza” [O papa é a esperança, a política, a barriga]. “Quantas mãos apertadas pelo Papa, quantas histórias ouvidas, quantos olhares cruzados. Ele só quis humildes pescadores e gente de Lampedusa”. Esta viagem evidenciou que a força de Francisco está em sua opção pelos que nada possuem de força, nem econômica, nem política, nem de direitos básicos. São os recriminados da terra.
Símbolos que gritam por si
Desde os primeiros gestos como pontífice – quando apareceu, recém-eleito, na sacada do Vaticano, vestido de branco e sem os trajes característicos deste cargo e cativando o povo com suas palavras simples e pedindo que o povo abençoe o seu pontificado – Francisco não parou de recorrer ao simbólico.
A viagem a Lampedusa – considerada “a ilha dos desesperados e dos últimos” ou “o inferno do Mediterrâneo” – é em si mesma simbólica. Perdida no meio do mar, sem representar nenhuma potência econômica ou política, considerada um cemitério de náufragos ou um refúgio de sobreviventes, essa ilha foi a razão da primeira viagem do Papa Francisco. Não entrará para a história pelos muitos discursos ali proferidos, nem pelos encontros com as autoridades, nem pelos muitos dias que durou. Na verdade, durou apenas algumas horas.
As poucas horas que a viagem durou foram marcadas por gestos simbólicos e palavras, com potencial de prolongar e fazer ecoar essa viagem. A chegada à ilha foi simples. Logo pegou uma embarcação e no meio da viagem pediu para parar. Tomou nas mãos uma coroa de crisântemos amarelos e, em profundo silêncio de oração, jogou-a ao mar – essas mesmas águas que já tragaram milhares e milhares de vidas humanas.
Na chegada ao cais, um dos migrantes, trêmulo de emoção e com dificuldades, conseguiu ler uma breve saudação em árabe, que, também a duras penas, outro companheiro ia traduzindo para o italiano. Ao final, recebe um caloroso abraço do papa dos migrantes. Em seguida, dirige-se ao campo esportivo, onde centenas de pessoas o aguardam para a missa. As primeiras fileiras são ocupadas não pelas autoridades, que, caso queiram participar, precisam misturar-se aos fiéis, mas por migrantes, deficientes e crianças. O tom é penitencial – dado pelas vestimentas roxas e confirmado pelas palavras do Papa e por sua postura recolhida e de cabeça baixa.
Mas a revolução que o Papa Francisco está fazendo na liturgia não se detém na assembleia. Ela sobe ao centro do espaço litúrgico e transfigura os objetos litúrgicos. O altar (foto abaixo à esquerda) e o ambão são feitos da madeira de restos de embarcações que naufragaram; o cálice, também de madeira, ostenta um enorme cravo, recordando os crucificados de ontem e de hoje e em muitas circunstâncias; um timão enfeita a frente do altar; até o báculo (foto abaixo à direita) usado pelo Papa foi feito de madeira de restos de barcos. O motivo está claro: tornar visíveis os sofrimentos de milhares de migrantes que perdem suas vidas no mar em embarcações superlotadas ou mesmo escondidos em gaiolas, na esperança de aportarem em terras menos inóspitas e mais hospitaleiras. Que revolução, quando comparado com a pompa, a extravagância e o rigorismo das rubricas, de pontificados anteriores!
Discurso simples, mas direto e profético
A primeira viagem de Francisco tinha um objetivo claro: sacudir a consciência de todos – cristãos, curiais, políticos – perante um gravíssimo problema do século XXI: “a indiferença do holocausto do mar”. Uma ocasião como essa merecia não apenas gestos à altura, mas também palavras. Não quaisquer palavras, mas palavras que tocassem o coração e a consciência. E se, por um lado, a missa celebrada na ilha foi de perdão, por outro, foi também uma celebração de funeral de cerca de 25.000 vítimas das chamadas “viagens da esperança”. “Quem chorou pela morte destes irmãos e irmãs? Quem chorou por estas pessoas que vinham no barco? Pelas mães jovens que traziam os seus filhos? Por estes homens cujo desejo era conseguir qualquer coisa para sustentar as próprias famílias?”, pergunta o Papa. Ele foi à ilha justamente com a intenção de “chorar os mortos”, de chorar por aqueles que ninguém chora.
As palavras iniciais da homilia do Papa em Lampedusa expressam a preocupação central que o incomodava e que está por trás desta viagem. Lia as manchetes dos jornais noticiando naufrágios de barcos lotados de migrantes fugitivos. “E então senti o dever de vir aqui hoje para rezar, para cumprir um gesto de solidariedade, mas também para despertar as nossas consciências a fim de que não se repita o que aconteceu. Que não se repita, por favor”, disse o Papa Francisco.
E apela para um dos frutos nefastos da globalização para encontrar as razões desta situação. “Somos uma sociedade que esqueceu a experiência de chorar, de ‘padecer com’: a globalização da indiferença tirou-nos a capacidade de chorar!”. “Habituamo-nos – prossegue o Papa – ao sofrimento do outro, não nos diz respeito, não nos interessa, não é responsabilidade nossa!”. E isso porque “a globalização da indiferença torna-nos a todos ‘inominados’, responsáveis sem nome nem rosto”.
Esta globalização da indiferença nos torna insensíveis em todos os sentidos: aos clamores da Terra e dos pobres. “Muitos de nós – e neste número me incluo também eu – estamos desorientados, já não estamos atentos ao mundo em que vivemos, não cuidamos nem guardamos aquilo que Deus criou para todos, e já não somos capazes sequer de nos guardar uns com os outros. E, quando esta desorientação atinge as dimensões do mundo, chega-se a tragédias como aquela a que assistimos”, denuncia Francisco.
Neste momento e para ilustrar suas palavras, recorre à história do vilarejo de Fuente Ovejuna, narrada pelo dramaturgo e poeta espanhol Félix Lope de Vega (1562-1635). Conta a comédia que os habitantes deste local matam o Governador, porque era um tirano, mas fazem-no de tal modo que não se saiba quem executou a sua morte. E, quando o juiz do rei pergunta "quem matou o Governador", todos respondem: "Fuente Ovejuna, senhor". “Todos e ninguém! Também hoje assoma intensamente esta pergunta: Quem é o responsável pelo sangue destes irmãos e irmãs? Ninguém! Todos nós respondemos assim: não sou eu, não tenho nada a ver com isso; serão outros, certamente não eu. Mas Deus pergunta a cada um de nós: ‘Onde está o sangue do teu irmão que clama até Mim?’", reflete o Papa, para em seguida acrescentar: “Hoje ninguém no mundo se sente responsável por isso; perdemos o sentido da responsabilidade fraterna”.
Para este pecado social e estrutural, o Papa Francisco pede o perdão de Deus: “Senhor, nesta Liturgia, que é uma liturgia de penitência, pedimos perdão pela indiferença por tantos irmãos e irmãs; pedimo-Vos perdão, Pai, por quem se acomodou e se fechou no seu próprio bem-estar que leva à anestesia do coração; pedimo-Vos perdão por aqueles que, com as suas decisões a nível mundial, criaram situações que conduzem a estes dramas. Perdão, Senhor!”
E conclui sua homilia com uma súplica feita a Deus: “Senhor, fazei que hoje ouçamos também as tuas perguntas: ‘Adão, onde estás? Onde está o sangue do teu irmão?’”. Que é também uma petição de mudança de atitude, uma metanoia. Um pedido de compromisso de solidariedade e de compaixão da nossa geração.
Como chama a atenção o vaticanista Marco Politi, “note-se como o léxico tão cheio de frescor e cru do pontífice chega logo à compreensão de todos aqueles que, no norte e no sul do mundo, são esmagados pela crise”. Mas, esta mesma característica se presta também a resistências e críticas.
“Rezar não é governar”. As críticas
As resistências e as críticas aos gestos, palavras e atitudes do Papa Francisco são praticamente coetâneas ao seu pontificado. Elas são internas e externas à Igreja, internas e externas à cúria romana. Tanto é assim que alguns analistas já se perguntam se Francisco terá realmente as forças e os apoios necessários para avançar em suas reformas, algumas necessárias e urgentes.
As críticas e resistências ao modo de Francisco celebrar, já foram objeto da nossa primeira análise sobre o pontificado de Francisco. E vêm dos setores mais conservadores de dentro da Igreja católica. Esses mesmos setores que agora torcem o nariz diante da missa, simples e despojada, celebrada por Francisco na ilha de Lampedusa. Na própria cúria há críticas veladas ao seu jeito de exercer o ministério petrino. Na opinião destes críticos, Francisco deve deixar de ser o pároco de uma Igreja particular da América Latina para se convencer de que é o Papa da Igreja universal – ele que desde a primeira hora se autodenomina “bispo de Roma”. Ideia reforçada pelo fato de ter se recusado a morar no palácio pontifício e preferir a Casa Santa Marta, mais simples e resguardada dos corredores vaticanos. Além disso, pesa sobre ele a pecha de que é fraco teologicamente, porque gosta de improvisar em suas homilias, por exemplo.
Especificamente, a visita do Papa a Lampedusa foi motivo de duras críticas por parte de políticos italianos. Fabrizio Cicchitto, presidente da Comissão de Assuntos Externos da Câmara italiana, foi o primeiro e um dos mais irritados. Ele reconheceu que o papa "desenvolveu uma reflexão de alto nível", mas, diz, "uma coisa é a pregação religiosa, outra é a gestão por parte do Estado de um fenômeno tão difícil. Mesmo nesta circunstância, deve ser afirmava uma razoável, não extremista, mas séria e real autonomia do Estado e da Igreja".
O vice-presidente do Senado italiano, Roberto Calderoni, por sua vez, diz: "No Estado do Vaticano, há o rechaço [dos criminosos e ilegais] por meio da força pública, além da prisão. A pregação do Santo Padre, como tantas outras vezes, foi bonita e tocante, mas as leis são outra questão, como demonstram as que estão em vigor no Vaticano". Ou seja, rezar não é governar.
Mas há reações ainda mais cáusticas. A "católica" Laura, por exemplo, se diz indignada porque "eu nunca ouvi o papa se preocupar com os massacres que estes combinam". "Estes" são naturalmente os imigrantes... "Por que ele não os leva ao Vaticano?", grita um tal Luigi. Uma certa Giovanna vai direto ao ponto: "Eu esperava algumas palavras para aqueles que são mortos e estuprados por eles". São manifestações populares como estas que deixam os setores mais conservadores de dentro da Igreja muito satisfeitos.
Como diz o vaticanista Marco Politi, “o Papa Francisco irrita os conservadores obtusos, os prelados briguentos, os cínicos amantes do poder: por causa da limpeza que ele quer introduzir nos assuntos vaticanos, por causa da coerência que ele espera do clero, por causa das críticas aos bispos-príncipes, por causa da intenção de abolir a monarquia absoluta católica, fazendo com que os bispos participem no governo da Igreja. Uma reforma nada pequena da Cúria! E assim há meses – sob o olhar complacente de velhos grupos de poder de vestes violetas ou de cor púrpura – teve início o turbilhão de golpes baixos em sites e jornais”.
Mas há outra série de objeções (mais sutis) ao pontificado de Francisco: a dissociação entre o discurso e a ação, entre a teoria (teologia) e a prática. “Até agora, Francisco não fez nenhuma ação decisiva em uma certa direção, como fez o Papa João XXIII, que convocou os cardeais em apenas dois meses. Vamos descobrir ainda se Francisco não tomou atitudes por prudência ou falta de coragem. Ainda não consigo dizer qual é o norte que guia Francisco”, diz, por exemplo, o historiador Eduardo Hoornaert. Aqui vale o que diz a jornalista Barbara Spinelli: “Jesus não esculpe leis divinas sobre a pedra quando assiste ao processo da adúltera: urge frear um linchamento. Em um primeiro momento, ele se cala, se inclina para a terra e escreve na areia uma outra lei, que não se fixa, porque na areia o vento passa. O importante é que a sua palavra se encaminhe nas mentes, abrindo um vazio e fazendo silêncio ao redor. Dizem que não é teologia: na realidade, é teologia diferente”. Em outra passagem, diz ainda referindo-se à “encíclica” de Lampedusa, não escrita: “É como se o papa dissesse (mas estamos imaginando): "Eu não escrevo encíclicas, por enquanto. Ou, melhor, proponho uma totalmente nova: fazendo-me testemunha e pastor que não teoriza, mas age. Eu vou aonde as lágrimas são substância do mundo". A popularidade do Papa Francisco talvez se explique pelo fato de que o mundo, hoje, precisa menos de mestres do que de testemunhas.
Neste contexto ainda, uma possível chave de leitura é a de que este seja o primeiro Papa “pós-colonial”, na formulação dada pelo jornalista italiano Marco Filoni. Diz ele: “O papa falou de indiferença e de ternura. O primeiro é um tema gramsciano, a segunda é a mesma invocada por Ernesto Guevara de la Serna, conhecido como Che. Não, isso não é suficiente para fazer do papa um revolucionário. Ele não o é, não pode sê-lo – continua sendo sempre o sucessor de Pedro e senta-se no seu sólio. No entanto, a sua linguagem é simples e direta, que fala ao povo, às massas. (...) Ele não será revolucionário, mas Francisco parece ser o primeiro papa pós-colonial, ao menos na linguagem. E também partidário, se entendermos, com Gramsci, que quem toma partido não é indiferente”.
Conjuntura da semana em frases
Grande 11 de julho
“Foi um grande 11 de julho! Um dia de greves, paralisações, atos, protestos! E aqui, no nosso Rio Grande, uma verdadeira greve geral! Pararam os transportes públicos, ônibus e metrôs. Escolas, universidades, repartições públicas, os serviços públicos, municipais, estaduais e federais. Também tivemos a adesão de muitos operários, metalúrgicos e comerciários, assim como bancários e tantos outros trabalhadores. E estudantes, muitos estudantes. Jovens e dispostos a construir o seu próprio futuro!” – Érico Corrêa, presidente do Sindicaixa e dirigente do CSP-Conlutas – Zero Hora, 12-07-2013.
Sem alma
“Protesto de ontem não foi desimportante, mas pareceu mecânico, sem alma, burocrático e artificial” – Vinicius Torres Freire, jornalista – Folha de S. Paulo, 12-07-2013.
Artificial
“Além de um grupo perdido nos ecos já distantes das multidões de junho, os sindicatos pareciam ontem encenar uma peça velha, sem alma, burocrática, uniformizada e artificial, fosse no largo Treze ou na avenida Paulista, entre outras ruas, praças e pontes da cidade” – Vinicius Torres Freire, jornalista – Folha de S. Paulo, 12-07-2013.
Feriado?
“No dia em que quase tudo parou, os sindicalistas e os movimentos sociais foram às ruas em número bem inferior às marchas de junho. Para a maioria da população, o 11 de julho foi um ensolarado feriado. Reflexo da cooptação das duas principais centrais do país, a CUT e a Força Sindical, pelo poder. Ligadas ao PT e PDT, elas estão intimamente relacionadas com os governos em todas as esferas. Nos 10 anos de gestão petista no Planalto, passaram pelo mesmo desgaste enfrentado pelos partidos, perderam força e independência. Também se tornaram alvo da crise de representação” – Carlos Rollsing, jornalista – Zero Hora, 12-07-2013.
Contrassensos
“Não faltaram contrassensos na paralisação. Políticos e partidos que ocupam posições estratégicas desde os anos 1990, como PT e PC do B, foram às ruas gritar palavras de ordem. Estariam protestando contra si mesmos?” – Carlos Rollsing, jornalista – Zero Hora, 12-07-2013.
R$ 50
"Todo mundo vai receber os R$ 50 na Praça da Sé” - Paulo Fernando Gonçalves, 18 anos, desempregado, dizendo que recebeu R$ 50 para agitar uma bandeira da Força Sindical das 9h às 14h na Avenida Paulista – O Estado de S. Paulo, 12-07-2013.
Pagou ou não?
"Não pagamos absolutamente ninguém. Mas não temos controle sobre todos os sindicatos. Algumas pessoas podem ter dado dinheiro para alimentação e transporte dos trabalhadores, porque muitos saíram de madrugada para vir ao ato” - Ricardo Patah, presidente da UGT – O Estado de S. Paulo, 12-07-2013.
Sindicato
"Cada sindicalista fala uma coisa. E um fala em cima do outro e um mais alto que o outro. Não tem Sindicato dos Sindicalistas?' - José Simão, humorista - Folha de S. Paulo, 12-07-2013.
Onde está?
“‘Onde Está Lula?’ – eis a pergunta que não quer calar nos quatro cantos do País, não importa a versão de uns e outros sobre as circunstâncias do “desaparecimento” – Tutty Vasques, humorista – O Estado de S. Paulo, 12-07-2013.
Volta Lula!
“Eu acho que já está na hora de o Lula voltar” – Devanir Ribeiro, deputado federal – PT-SP – O Estado de S. Paulo, 04-07-2013.
Sem vontade
"Ele [Lula] não tem nenhuma pretensão, nenhuma vontade de voltar. O que ele aposta é na vitória da presidente Dilma" – Gilberto Carvalho, ministro – Valor, 10-07-2013.
Atrasado
"O teatro, que sempre esteve na vanguarda, agora está atrasado" - Lauro César Muniz, dramaturgo, comentando as manifestações de junho 2013 - Le Monde, 11-07-2013.
Cor-de-rosa
"O espírito crítico desapareceu há vinte anos. Os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff partilharam da visão cor-de-rosa do capitalismo veiculada pelo antecessor deles, Fernando Henrique Cardoso [socialdemocrata, PSDB]" - Roberto Schwarz, ensaísta, comentando as manifestações de junho 2013 - Le Monde, 11-07-2013.
Novo jeito
"Os jovens do Movimento Passe Livre estão nos ensinando uma nova maneira de fazer política" - Ney Piacentini, da Cooperativa Paulista de Teatro, comentando as manifestações de junho 2013 - Le Monde, 11-07-2013.
Tiro no pé
"É um tiro no pé a invasão do PT no protesto das centrais sindicais. O partido é governo e é este governo que será questionado nas ruas” – João Carlos Gonçalves, secretário-geral da Força Sindical, sobre a participação do PT na mobilização de trabalhadores marcada para hoje – Folha de S. Paulo, 11-07-2013.
Correndo atrás
“Os protestos sacudiram sindicatos e partidos. Estamos tentando recuperar o protagonismo. Temos de estar nas ruas reivindicando não apenas salários. Saúde também é interesse dos trabalhadores” – Claudio Janta, presidente da Força Sindical no RS – Zero Hora, 10-07-2013.
Renovação política
"Não consigo imaginar um combate adequado à corrupção sem uma reforma política, o povo quer uma mudança política de profundidade, a presidenta acertou em cheio quando lançou essa proposta porque ela corresponde exatamente ao anseio mais profundo das ruas, que é o anseio por uma renovação na política. E renovação na política sem reforma política nós não vamos fazer" – Gilberto Carvalho, ministro – O Estado de S. Paulo, 10-07-2013.
Cultura política
"Devemos ter calma e refletir aqui dentro do governo, a sociedade está com essa bandeira (da reforma), eu tenho certeza, e nós vamos então verificar agora com calma como a gente vai agir daqui pra frente. Mas não vamos abandonar de maneira nenhuma a ideia da consulta, a ideia da participação e a ideia da reforma política, são eixos que se estruturam, a nosso ver, numa perspectiva de mudar de fato aquilo que o povo quer que se mude, que é a nossa cultura política no País" – Gilberto Carvalho, ministro – O Estado de S. Paulo, 10-07-2013.
Perigo
“O maior perigo para a democracia é a atual classe política” – Manuel Castells, sociólogo – O Estado de S. Paulo, 09-07-2013.
Democracia não democrática
“A democracia atual deixou de ser democrática, segundo a maioria dos cidadãos em todo o mundo, e que sua recuperação terá de ocorrer a partir dos movimentos autônomos surgidos na rede” – Manuel Castells, sociólogo – O Estado de S. Paulo, 09-07-2013.
Ô, raça!
“Todo rico é assim: acha que 20 centavos fazem muita diferença na cotação do dólar e nenhuma diferença no preço da passagem de ônibus” – Tutty Vasques, humorista – O Estado de S. Paulo, 09-07-2013.
Hiato e retirada
"Na verdade, os últimos 20 anos representaram um hiato na nossa História, e, como resultado, tivemos a retirada da política institucionalizada" – Vladimir Safatle, professor de Filosofia – O Estado de S. Paulo, 07-07-2013.
Novo eixo
"Estamos vendo um novo eixo da política. Antes, eram dois consórcios, PSDB e PT, que se organizavam com outros grupos partidários. Enquanto o PT acreditava ter a hegemonia das ruas, o PSDB reunia-se em torno da burguesia” – Vladimir Safatle, professor de Filosofia – O Estado de S. Paulo, 07-07-2013.
Vandalismo
"O pior tipo de vandalismo é o político, de partidos que não querem mudar nada, mas vendem a ideia de que ouvem a voz das ruas" – Zezéu Ribeiro, deputado federal - PT-BA, sobre o impasse formado no Congresso em torno da votação da reforma política a partir de uma consulta popular – Folha de S. Paulo, 07-07-2013.
Sabedoria
“O povo é muito sábio. Recurso não é dinheiro, mas cimento e ferro. O povo concluiu o seguinte: o cimento e o ferro que construíram o estádio são o cimento e o ferro que não construíram o metrô” – Antonio Delfim Netto, economista – Folha de S. Paulo, 07-07-2013.
Racionalidade
“O Congresso aprova projetos parados há dez anos em quatro horas. Mas aprovou sonhos, ideias. Ou seja, nada será cumprido. Teremos de devolver racionalidade ao sistema” – Antonio Delfim Netto, economista – Folha de S. Paulo, 07-07-2013.
Voz de Deus, não da lógica
“A voz da rua não é a voz de Deus. Também não é a voz da lógica. É um sinal amarelo para que façamos as coisas corretamente” – Antonio Delfim Netto, economista – Folha de S. Paulo, 07-07-2013.
Urna e mercado
“Como queremos uma sociedade com liberdade individual, relativa igualdade e eficiência produtiva, é preciso escolher um mecanismo para atingir esses objetivos, que não são inteiramente conciliáveis. Esse mecanismo é o mercado e a urna. Se a urna exagera, o mercado vem corrigir. Se o mercado exagera, a urna corrige” – Antonio Delfim Netto, economista – Folha de S. Paulo, 07-07-2013.
Ficha
"Essa carona' confirma que os protestos não fizeram cair a ficha para os políticos. Eles acham que o Brasil continua o mesmo” – Cristovam Buarque, senador - PDT-DF, sobre o uso de um avião da FAB para transportar parentes e amigos do deputado Henrique Alves (PMDB-RN) – Folha de S. Paulo, 04-07-2013.
Os intelectuais e os protestos
"Porque os intelectuais se preocuparam tanto tempo em proteger o poder? A função de problematizar, de buscar o que não é o óbvio, de criticar, que é o papel dos intelectuais, talvez tenha sido negligenciada no Brasil nos últimos anos" – Eugênio Bucci, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP – Valor, 04-07-2013.
Ficaram de fora
“O que me chama a atenção é que, pela primeira vez, desde o final da ditadura, vejo populares na rua cobrando dos poderes estabelecidos, sobretudo do Executivo e do Legislativo, um maior respeito pelo bem público. É a primeira vez que vejo uma movimentação tão grande de massa sem uma direção direta de partidos políticos ou da igreja” – Roberto Romano, filósofo, professor do IFCH da Unicamp – Jornal da Unicamp, 01-07-2013.
+ politizados
“Do ponto de vista das formas de organização na base, o movimento atual é superior ao da minha época [‘Caras-Pintadas’]. Eles são muito mais democráticos. Na verdade, percebo na juventude que se apropria das informações por meio das redes sociais uma forte pulsão politizante” - Ruy Braga, sociólogo, professor da Usp – Jornal da Unicamp, 01-07-2013.
Cadê a UNE?
“Este é um movimento de jovens, grande parte deles universitários, mas cadê a UNE? De um lado, a representação política foi degradada por esse toma-lá-dá-cá; de outro, a cooptação dos movimentos sociais fez com que essa juventude não encontrasse canais de expressão e ficasse processando a sua insatisfação em um lugar novo, nas redes sociais” - Luiz Werneck Vianna, cientista político, professor da PUC-Rio – Jornal da Unicamp, 01-07-2013.
Nova fenomenologia
“Todos os conceitos que nós temos em termos sociológicos, históricos, por exemplo, deveriam ser suspensos para que pudéssemos realizar uma fenomenologia do que está acontecendo, uma descrição, a mais exata possível, de todas as tendências, de todas as reivindicações, de todas as iniciativas que estão aparecendo, para que possamos, daqui um tempo, ter condições de entender razoavelmente o que está acontecendo” – Roberto Romano, filósofo, professor do IFCH da Unicamp – Jornal da Unicamp, 01-07-2013.
Tudo mudou
“Nada sabemos sobre o futuro desses movimentos, pois estamos no calor dos acontecimentos, mas, quaisquer que sejam suas consequências, o país não será mais o mesmo. Saímos do cenário letárgico que nos encontrávamos.” – Ricardo Antunes, sociólogo, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp – Jornal da Unicamp, 01-07-2013.
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Conjuntura da Semana. Lampedusa, a primeira “encíclica” de Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU