25 Março 2013
"As indicações iniciais são de que as coisas serão diferentes. As grossas camadas de parafernália régia e comportamento palaciano estão começando a se desfazer. Se as primeiras impressões se confirmarem, Francisco parece mais inclinado a abraçar do que a fazer um sinal de reprovação com o dedo", afirma o editorial do New Catholic Reporter, 23 de março de 2013. A tradução é de Luís Marcos Sander.
Segundo o editorial da publicação americana, "Francisco talvez esteja se dando conta do que é palpável: os católicos realmente querem gostar de seus líderes e acreditar neles. Como foi demonstrado, não é preciso muito para isso. Os católicos não estão tanto em busca de uma excelente teologia ou de grandiosos gestos internacionais quanto de santidade autêntica e integridade pessoal. Uns poucos dias em que um líder manifestou compaixão e agiu de uma forma que sugere que ele compreende os católicos comuns e suas lutas fizeram com que boa parte do mundo se voltasse na direção de Francisco".
Eis o texto.
Os símbolos do início foram de tirar o fôlego. Para uma comunidade cuja narrativa está profundamente entremeada de símbolos pequenos e grandes, aqueles mostrados pelo Papa Francisco desde que apareceu no balcão da Praça de São Pedro numa sotaina branca simples tornaram-se mais inspiradores de admiração à medida que passavam os dias.
As pequenas coisas começaram a se somar: Ele nos dirigiu em orações que todos conhecemos, o Pai-Nosso e a Ave-Maria. Inclinou-se e pediu à multidão que rezasse por ele em silêncio antes de dar sua bênção. Evitou quaisquer outras pompas do cargo, salvo a sotaina branca e a cruz simples, ao se apresentar pela primeira vez como o novo papa. Resgatou uma sensação de movimento e aventura ao pedir que o acompanhássemos numa caminhada. Falou de modo tocante de um Deus misericordioso. Andou numa minivan junto com seus irmãos cardeais, e não na limusine papal. Em seu primeiro dia inteiro como papa, ele se encontrou com alunos e alunas, apanhou suas malas no hotel onde tinha ficado antes do conclave e pagou sua própria conta.
Num vídeo que se tornou viral, ficamos sabendo como ele escolheu seu nome. Nos momentos finais do conclave, o cardeal brasileiro Cláudio Hummes, arcebispo emérito de São Paulo, franciscano e apoiador da teologia da libertação, ao se dar conta de que o Cardeal Jorge Mario Bergoglio seria o novo papa, abraçou-o e disse: “Não se esqueça dos pobres.”
O nome Francisco foi uma escolha audaciosa. O apelo feito por Dom Cláudio pedia uma redefinição das prioridades da igreja.
Foi um apelo que o novo papa entende em nível pessoal. Em Buenos Aires, ele recusou a mansão cardinalícia e o carro privado com motorista. Morava num pequeno apartamento e usava o ônibus para trabalhar. As fotos que o mostram lavando e beijando os pés de pacientes num abrigo para portadores de AIDS são impressionantes, assim como é a foto em que ele aparece junto com membros de outras crenças numa cerimônia de oração conjunta.
Quando alguns de seus sacerdotes se recusaram a batizar filhos de mães e pais solteiros, ele os acusou de praticarem uma forma de “neoclericalismo rigoroso e hipócrita”. Ele foi o único clérigo católico que elogiou a vida de um ex-bispo que tinha renunciado ao sacerdócio para se casar.
Dois dias depois de sua eleição, ele enviou uma mensagem de duas linhas que parecia rotineira. Era, pelo contrário, um terremoto que abalou a ordem antiga. Comunicou aos atuais membros da Cúria, que, segundo a lei, devem renunciar ao final de um pontificado, que continuariam em suas funções temporariamente. Rompendo a tradição de reempossar automaticamente todos para um novo mandato completo, ele avisou aos burocratas do Vaticano que “se reservaria um certo período para reflexão, oração e diálogo antes de [fazer] qualquer nomeação ou confirmação definitiva”.
Essa afirmação é a primeira indicação clara de que sugestões de mudança evidenciadas nos símbolos das primeiras horas de seu pontificado estavam adquirindo uma forma mais concreta. O jeito costumeiro de fazer as coisas estava terminando.
No mesmo dia ele saudou representantes da mídia internacional, uma mescla de nacionalidades, religiões e inclinações para com a igreja. Seu estilo solto pôde ser visto mais uma vez quando ele graciosamente deixou de lado por instantes um texto preparado e depois voltou a ele. Francisco terminou dando sua bênção, o que não é um gesto incomum para um papa, mas esse novo papa a ofereceu com um impressionante ato de generosidade. Ele a deu silenciosamente, explicou, por respeito às consciências das pessoas presentes que não eram católicas, eram de outras crenças ou não tinham crença alguma.
As indicações iniciais são de que as coisas serão diferentes. As grossas camadas de parafernália régia e comportamento palaciano estão começando a se desfazer. Se as primeiras impressões se confirmarem, Francisco parece mais inclinado a abraçar do que a fazer um sinal de reprovação com o dedo.
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Nos últimos 34 anos, a igreja foi dirigida essencialmente por dois homens: Karol Wojtyla, que se tornou o Papa João Paulo II, e Joseph Ratzinger, que serviu como uma espécie de primeiro-tenente para João Paulo por quase 25 anos e depois serviu quase oito anos como Papa Bento XVI.
A igreja tem uma enorme dívida de gratidão para com esses dois homens por suas propostas intelectuais distintivas e substanciais e por terem conduzido a igreja para relações interconfessionais e inter-religiosas mais profundas. Essas realizações, é claro, foram amplamente documentadas e anunciadas, implicando às vezes a exclusão de qualquer menção dos graves males dentro da igreja que também caracterizaram o mandato deles.
Tornou-se evidente que as dificuldades da igreja tinham atingido proporções tais que não podiam mais ser ignoradas, nem mesmo pelos cardeais reunidos. Esse interregno e conclave foram bem diferentes do último em termos de tom e conteúdo exatamente porque assuntos que foram colocados de lado na maré de sentimentos que acompanharam a morte de João Paulo II voltaram com estrondo. Corrupção e rivalidade interna na Cúria tinham sido documentadas e não eram mais uma questão de mera especulação. Figuras como o falecido Pe. Marcial Maciel Degollado e sua ordem, a Legião de Cristo, que há oito anos ainda eram vistos como vítimas de um cerco injusto, eram agora, sem dúvida, uma grande fraude e um projeto fracassado, respectivamente.
As noções de sacerdócio heroico de João Paulo II estavam em pedaços, os bispos que nomeou eram, com frequência, ideólogos irascíveis e imprudentes que adoram desfilar por aí com metros de seda e renda fina. Há oito anos os cardeais reunidos teriam rido ao ouvir falar de uma igreja em crise; este ano eles próprios falavam dela.
Os 34 anos de Wojtyla e Ratzinger consistiram de uma tentativa de três décadas e meia de deter os impulsos do Concílio Vaticano II. Os primeiros 15 anos após o concílio foram cheios de um entusiasmo rico, ainda que às vezes confuso e excessivo, com as possibilidades dessa comunidade cristã chamada de católica. Wojtyla e Ratzinger se puseram a endireitar as linhas tortas e restabelecer os limites. O que antes era tão voltado para fora passou a estar voltado para dentro e ficou introvertido – “autorreferencial”, nos termos de Francisco. Os dois papas gastaram tempo e energia demais indo atrás de quem levantava questões inconvenientes ou explorava áreas da teologia que não se enquadravam nas receitas de igreja deles. Enquanto isso, os pecados reais contra a comunidade estavam sendo cometidos por sacerdotes e ocultados durante anos, sob esquemas refinados e a um custo enorme, pelos bispos da comunidade.
Francisco terá, muito em breve, a oportunidade de mostrar o quanto ele está levando a sério o restabelecimento da integridade e do juízo sensato dentro da igreja com nomeações para sés importantes, como, por exemplo, a de Chicago nos Estados Unidos, e com nomeações para a Cúria. Nossa esperança é que sua humildade, seu senso de serviço e sua preocupação com os pobres orientem suas escolhas. Sem essas qualidades, seu desejo de que a igreja olhe para além de si mesma não se realizará.
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Um sinal da nova era para a qual Francisco foi eleito – uma era em que a cultura palaciana não pode mais conter os velhos segredos e em que o tratamento deferente desfrutado por regimes passados diminuiu graças aos escândalos da própria igreja – foi o surgimento imediato de acusações antigas de que Bergoglio, como provincial dos jesuítas na Argentina, tenha sido cúmplice do governo no sequestro de dois outros jesuítas durante a Guerra Suja na Argentina. Como deixam claras matérias publicadas aqui e em outros lugares, as circunstâncias eram, na melhor das hipóteses, obscuras e merecem um escrutínio mais atento. O que parece claro é que, embora talvez pudesse ter feito mais para enfrentar um regime brutal, ele não foi nem um colaborador nem alguém que tenha rejeitado a teologia da libertação na íntegra. Entre seus apoiadores está o ganhador do Prêmio Nobel da Paz Pérez Esquivel, da Argentina, que disse inequivocamente que Bergoglio não foi colaborador. Ele também recebeu apoio generoso do teólogo da libertação e ex-sacerdote Leonardo Boff.
Pelo menos tão preocupantes são relatos provenientes da Argentina sobre a forma como o ex-Cardeal Bergoglio lidou com abusos sexuais cometidos por clérigos. Uma matéria publicada em 18 de março no Washington Post destaca o caso de um sacerdote que foi popular no passado, o Pe. Julio Grassi, que em 2009 foi condenado por abuso sexual contra um menor de idade. As acusações mais perturbadoras contra Bergoglio são de que ele teria se recusado a encontrar-se com as vítimas e encomendado um relatório que ajudou Grassi a ficar fora da prisão até agora. O Washington Post observa, entretanto, que não há provas de que Bergoglio alguma vez tenha encoberto casos de abuso. “Diversos grupos proeminentes de defesa de direitos na Argentina dizem que o arcebispo não mediu esforços em anos recentes para se posicionar junto com organizações seculares contra crimes como, por exemplo, o tráfico sexual e a prostituição infantil.” Em anos mais recentes, diz-se também que ele agiu mais agressivamente contra sacerdotes acusados de abuso sexual e “instruiu os bispos a dar imediatamente parte de todas as alegações de abuso sexual junto à polícia”.
A Guerra Suja na Argentina fez parte do passado do papa. A crise dos abusos sexuais é algo com que a maioria dos bispos pode esperar ter de enfrentar, mesmo naquelas partes do mundo onde ela ainda não veio à tona como um problema importante. Ninguém espera um papa perfeito, mas a integridade não necessita de perfeição. Os católicos conviveram com 30 anos de engodo, dissimulação e desculpas interesseiras de seus bispos sobre esse assunto. Está na hora de simplesmente dizer a verdade. Chega de evasivas do tipo “erros foram cometidos”. É difícil imaginar o grau de confiança e honra que os católicos investiriam num papa que recontasse honestamente o que aconteceu, os erros que ele talvez tenha cometido, o que aprendeu desses incidentes e como vai encarar esses problemas como papa.
Francisco talvez esteja se dando conta do que é palpável: os católicos realmente querem gostar de seus líderes e acreditar neles. Como foi demonstrado, não é preciso muito para isso. Os católicos não estão tanto em busca de uma excelente teologia ou de grandiosos gestos internacionais quanto de santidade autêntica e integridade pessoal. Uns poucos dias em que um líder manifestou compaixão e agiu de uma forma que sugere que ele compreende os católicos comuns e suas lutas fizeram com que boa parte do mundo se voltasse na direção de Francisco.
Bergoglio atraiu atenção quando urgiu seus pares a olhar para além de Roma, a ver a missão da igreja como uma missão de humildade, dignidade e justiça e a considerar os pobres do mundo a preocupação central da igreja. Ele convidou para acompanhá-lo numa caminhada, não numa marcha forçada. Se o foco primordial da caminhada estiver nos pobres, apostamos que ele terá um seguimento enorme e revigorado. Se seu pontificado estiver fundamentado na humildade, dignidade e justiça, presumimos que tudo o mais, incluindo a lista de assuntos contenciosos, vá contribuir para uma conversa significativa – e talvez até para uma conversão – ao longo da caminhada.
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A eleição de Francisco está repleta de símbolos, sinais de uma nova era - Instituto Humanitas Unisinos - IHU