A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 6º Domingo de Páscoa, ciclo B do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto de João 15,9-17.
“Ninguém tem amor maior do que aquele que dá sua vida pelos amigos” (Jo 15,13).
O evangelista João recolhe um longo discurso de despedida de Jesus, onde são apresentados, com uma intensidade especial, alguns traços fundamentais que seus seguidores hão de recordar e viver ao longo dos tempos, para serem fiéis à Sua pessoa e a Seu projeto.
Jesus não apresenta aos seus discípulos uma “constituição” com seus capítulos e artigos, nem algumas “regras”, e menos ainda alguns “estatutos”. Só diz assim: “este é o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros como eu vos amei”. O mandamento que Ele vive, também deseja que seja vivido por seus seguidores e seguidoras. Nada mais. Aprender do Mestre e praticar, como Ele, a arte de amar!
Em qualquer época e situação, o decisivo para o cristianismo é não se afastar do amor fraterno. Nesse sentido, o mandamento do amor não é lei que se impõe de fora para dentro; ele “emana” do interior de cada um, pois todo ser humano traz em si a marca do Criador, que é puro Amor. Por isso, manifestar plenamente esse amor que é Deus, nas relações com os outros, é a expressão da verdadeira identidade cristã.
Há uma diferença que é preciso aclarar. Deus não é um ser que ama: Ele é o amor, ou, em melhor tradução, “Deus consiste em estar amando”. N’Ele, o Amor é sua essência, não uma qualidade como em nós: podemos amar ou deixar de amar. Se Deus deixasse de amar um só instante, deixaria de ser Deus. Ele manifesta seu amor a Jesus como manifesta a cada um de nós. Mas não faz isso como nós. Não podemos esperar de Deus “mostras pontuais de amor”, porque não pode deixar de demonstrar isso um só instante.
O Amor de Deus é o primeiro; Ele não nos ama como resposta ao que somos ou fazemos, mas por aquilo que Ele é. Deus ama a todos da mesma maneira, porque não pode amar mais a um que a outro. Este é o manifesto supremo do amor cristão. Não somos servos de Deus, pois Ele não se impõe de cima para que lhe obedeçamos, mas nos chama e nos faz seus “amigos”. Também não somos empregados de Deus, para triunfo e glória de sua empresa, pois não temos na vida outra tarefa nem outra finalidade que ser amigos. Somos simplesmente amigos de Deus em Jesus, como diz o evangelho de João, o testamento do amado.
Amar é simplesmente “deixar-se amar”, como as mulheres da páscoa, como o discípulo amado, como todos os que amaram a Jesus e se deixaram amar por Ele e com Ele, sem outro exercício que o continuar amando. Por isso, a mensagem mais profunda do evangelho de João vem expressar-se no amor fraterno, vivido na forma de amizade. Não é simplesmente amor ao inimigo, nem é tampouco amor esponsal. É amor de irmãos que se tornam amigos. Neste manifesto de amizade culmina o evangelho, entendido, por fim, como “escola de amor”..., porque só quem ama e é amado pode assumir em presteza a tarefa da vida, cumprindo assim o “mandamento do amor”; “amor ágape”, gratuito, oblativo, impulso que faz “sair de si mesmo”.
Esta revelação do amor fraterno/amistoso é o dom supremo de Jesus à sua nova comunidade; a identidade dela não está na organização burocrática, na doutrina, nos ritos... mas em deixar-se conduzir pelo “movimento de amor”. Toda comunidade que descobre esse amor sabe que não necessita autoridades externas, hierarquias sacrais, obediências cegas...
Aqui não há mais imposição de uns sobre outros, mas comunhão de amigos. Essa mesma comunhão é a autoridade, a presença do Espírito Santo. As mediações ministeriais são, portanto, secundárias. Podem mudar as formas de organização eclesial, as ações concretas da comunidade; mas permanece a verdade como liberdade, e a autoridade como amor mútuo que vincula os(as) seguidores(as) de Jesus.
Sem amor não é possível dar passos para um cristianismo mais aberto, cordial, alegre, simples e amável, onde possamos viver como “amigos” de Jesus. Não saberemos como ativar a alegria de viver; sem a dinâmica do seguimento amoroso, continuaremos cultivando uma religião triste, centrada no legalismo, no ritualismo estéril que alimenta culpas, ressentimentos, medos e um mal-estar constante. Jesus não veio complicar a vida com uma sobrecarga de normas, leis, ritos, doutrinas...; veio recuperar o essencial: basta amar. Diz S. João da Cruz: “na tarde da vida seremos examinados no amor”.
A vivência radical do amor, que está disposto a perder tudo por aqueles que ama, é o que em definitiva ajuda a ativar a alegria, a fazê-la crescer e compartilhá-la sem recompensa alguma. Jesus fala aos discípulos dessa alegria precisamente quando sua vida se precipita em direção à entrega na paixão, não por um desencanto da vida, mas por amor apaixonado à existência que o Deus da vida nos presenteia. Só a paixão do amor faz coexistir, em um mesmo fogo que os funde em uma união indissolúvel, a dor e a alegria, o amor à vida e o risco de perdê-la, o amor aos amigos e a coragem de deixá-los, as perseguições dos inimigos e a audácia para morrer por eles.
Ser testemunhas e profetas da alegria constitui a essência dos seguidores e seguidoras de Jesus. E “para viver a alegria, exercitar-se na alegria”. É preciso nos converter à alegria de Deus que é autêntica paixão pelo ser humano; é preciso contagiar a alegria do Evangelho; é preciso afastar obstáculos que travam a alegria de viver; é preciso remover a pedra de nossos sepulcros e viver como ressuscitados.
Como profetas da alegria, longe de fugir dos conflitos da vida, nós os enfrentamos e os integramos com sentido. Não temos mais fronteiras, não excluímos gênero, classe social, cor, língua, religião, não descartamos o aparentemente inútil. Por isso, nossa vida e nossa palavra querem ser anúncio e compromisso de concórdia e comunhão nos conflitos, unindo pontos, integrando diferenças, curando feridas. Devemos reforçar o testemunho de comunhão na diversidade para mostrar que é possível superar o medo às diferenças. Nossa vida alegre desmonta a hipocrisia, as ambições, a vaidade, o escândalo...
A presença do Ressuscitado deu à alegria um caráter existencial e não a faz depender nem do esforço pessoal nem de posse alguma de um bem temporal, mas do sentido global da pessoa. Quem vive a partir da alegria, vive a partir do essencial e sabe discernir o autêntico das aparências e o útil do supérfluo. A alegria mantém alta a utopia e não se cansa em sua irradiação. Seguimos o conselho agostiniano: “A felicidade consiste em tomar com alegria o que a vida nos dá, e deixar com a mesma alegria o que ela nos tira”.
Quem é transparente e coerente transmite alegria em seu falar e em seu agir. Ser alegre não significa ser impassível, insensível diante da injustiça e da violência, diante da pobreza e da exclusão. As virtudes que acompanham a alegria fazem com que a pessoa alegre seja também compassiva e misericordiosa e trabalhe pela paz e pela justiça. O profeta da alegria anuncia sempre mensagem de salvação, exercita a compaixão, suscita a esperança, se envolve na promoção da paz, da justiça, da solidariedade, da fraternidade....