Ser amigos de Jesus

Foto: Charge to Peter

07 Mai 2021

 

Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste 6º Domingo de Páscoa, 9 de maio de 2021 (Jo 15, 9-17). A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

Nos “discursos de despedida” (cf. Jo 13,31-16,33), através dos quais João nos revela as palavras do Senhor ressuscitado à sua comunidade, por duas vezes é anunciado o “mandamento novo”, isto é, último e definitivo: “Eu vos dou um mandamento novo: amai-vos uns aos outros. Assim como eu vos amei, vós deveis vos amar uns aos outros” (Jo 13,34); “Este é o meu mandamento: amai-vos uns aos outros, assim como eu vos amei” (Jo 15,12, dentro do trecho deste domingo).

São palavras certamente entregues aos discípulos, aos discípulos de Jesus que, em todos os tempos, o seguem, mas esse mandamento não é limitador, não é redutivo das palavras sobre o amor mandado por Jesus até em relação aos inimigos e aos perseguidores (cf. Mt 5,44; Lc 6,27-28.35). O amor é sempre amor de quem dá a vida pelos próprios amigos, é sempre amor que teve a sua epifania na cruz, portanto, amor de Deus pelo mundo, por toda a humanidade (cf. Jo 3,16).

Esse amor é, acima de tudo, aquilo que Deus é, porque “Deus é amor” (1Jo 4,8.16); é aquilo que é vida do Pai e do Filho na comunhão do Espírito Santo; é amor que Jesus de Nazaré viveu até o fim, até o extremo (eis télos: Jo 13,1). O amor, portanto, tem origem em Deus e deriva de Deus, criando uma relação dinâmica na qual cada pessoa é chamada a acolher o dom do amor, a se deixar amar para poder se tornar sujeito de amor.

Para nós, o abismo de amor extático que é Deus mesmo é incomensurável, e só conseguimos lê-lo olhando para a vida e para a morte de Jesus, que, tendo explicado Deus (exeghésato: Jo 1,18), narrou-nos o seu amor. Com toda a autoridade de quem viveu o amor até o extremo, Jesus pôde dizer: “Como meu Pai me amou, assim também eu vos amei”.

Mais uma vez, essas palavras de Jesus deveriam nos escandalizar, porque parecem ser uma pretensão: Jesus pretende ter amado os seus discípulos como Deus sabe amar e ele diz ter conhecimento e ter feito experiência desse amor de Deus.

Como um homem pode dizer isso? Porém, o Kýrios ressuscitado afirma e diz isso a nós que o escutamos. Nesses nove versículos, por nove vezes ressoa a palavra “amor/amar” e por três vezes a palavra “amigos”: esse amor deriva de Deus Pai sobre o Filho, do Filho sobre os discípulos, seus amigos, e dos discípulos sobre os outros homens e mulheres. É um amor que se encarna e se dilata para poder alcançar a todos.

É quase impossível seguir adequadamente o discurso de Jesus; mas pelo menos podemos assinalar que nele o amor de Deus se tornou amor dos discípulos, que podem responder a esse amor descendente, doado a eles gratuitamente, habitando em tal amor, ou seja, permanecendo firmes na realização da vontade de Jesus, daquilo que ele mandou.

E essa vontade consiste, em síntese extrema, em amar o outro, cada outro. Conseguimos entender o que Jesus nos pede ao nos fazer o dom do seu amor? Ele não nos pede, acima de tudo, que amemos a ele, que retribuamos o seu amor, amando-o por nossa vez. Não, a resposta ao seu amor é amar os outros como ele nos amou e os amou. A restituição do amor, o contra-dom, que é a lei do amor humano, deve ser amor dirigido aos outros. Então, esse amor fraterno é fazer a vontade de Deus, portanto, amá-lo de modo verdadeiro, como Deus deseja ser amado.

Jesus respondeu ao amor do Pai amando a nós, e nós respondemos ao amor de Jesus amando o outro, os outros. Por isso, toda a Lei, todos os mandamentos são reduzidos a um apenas, o último e o definitivo, que relativiza todos os outros: o amor ao próximo. Jesus disse isso: “Dos mandamentos do amor a Deus e ao próximo”, isto é, do amor ao outro vivido como Deus quer e como Jesus testemunhou, “dependem toda a Lei e os Profetas” (cf. Mt 22,40). E Paulo reiterou isso ainda mais: “Toda a Lei, na sua plenitude, é resumida na única palavra: ‘Amarás!’” (Gl 5,14, cf. também Rm 13,8-10).

Portanto, Jesus nos dá um critério objetivo para avaliar a nossa relação de discípulos com ele e com o Pai: o amor factivo, concreto pelos outros. Somente colocando-nos a serviço dos outros, somente fazendo o bem aos outros, somente gastando a vida pelos outros, nós podemos saber que habitamos, que permanecemos no amor de Jesus, como ele sabe que permanece no amor do Pai. Sem esse amor factivo, não há possibilidade de uma relação com Jesus e nem com o Pai, mas há apenas a ilusão religiosa de uma relação imaginária e falsa com um ídolo forjado por nós e, depois, amado e venerado.

Nessa página do quarto Evangelho, Jesus também tem a audácia de reinterpretar a relação entre Deus e o fiel traçado por todas as Escrituras antes dele. O fiel certamente é um servo (termo que indica uma relação de submissão e de obediência) do Senhor, mas Jesus diz aos seus que eles já não são mais servos, mas por ele foram tornados amigos: “Já não vos chamo servos (...) Eu vos chamo amigos (phíloi), porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi de meu Pai”. Intimidade mais profunda do que aquela amizade de Abraão (cf. Tg 2,23) ou de Moisés (cf. Ex 33,11) com Deus; intimidade que é comunhão de vida, comunhão de amor.

O discípulo de Jesus, que acima de tudo faz a experiência de ser amado pelo Senhor, pode se tornar, por sua vez, um amante do Senhor: ele não é simplesmente alguém chamado a ser servo para realizar uma ação, mas é um amigo que entra em relação com o Senhor. Ele reconhece que não há amor maior do que dar a vida pelos amigos, e, nesse amor concreto, é tornado partícipe da palavra, da intimidade, da revelação do Senhor.

O discípulo de Jesus foi escolhido por ele, o amor de Cristo o precedeu, e o fruto que Cristo espera é o amor pelos outros. Esse também será o único sinal de reconhecimento do discípulo cristão no mundo (cf. Jo 13,35): nada mais ou, melhor, o resto ofusca a identidade do cristão e não permite vê-la.

O que fazer, então, como discípulos de Jesus? Crer no amor (cf. 1Jo 4,16), amar os outros porque Deus nos amou primeiro (cf. 1Jo 4,19) e não ceder nunca à tentação de pensar que nos basta nutrir um amor de desejo ou de expectativa por Deus: não, nós o amamos se realizamos o mandamento novo do amor recíproco, à imagem daquilo que Jesus viveu.

O amor presente no desejo de Deus pode ser uma grande ilusão, e João reitera isso fortemente: “Se alguém diz: ‘Eu amo a Deus’, e no entanto odeia o seu irmão, esse tal é mentiroso; pois quem não ama o seu irmão, a quem vê, não poderá amar a Deus, a quem não vê” (1Jo 4,20).

Portanto, nós, cristãos, comunidade do Senhor no mundo e entre as pessoas, devemos ter a consciência de que fomos originados pela caridade, pelo amor de Deus. Ecclesia ex caritate: a Igreja nasce da caridade de Deus e somente se habitar nessa caridade também pode ser Igreja que opera a caridade, sabendo que o amor nunca pode ser desvinculado da obediência ao Senhor.

De fato, é o “mandamento” que sabe direcionar, moldar o nosso amor em conformidade com o amor de Cristo, que nos leva até a amar o não amável, a operar a caridade para com o inimigo ou para quem cometeu o mal contra nós.

Nesse dom de Jesus do mandamento novo, do seu mandamento por excelência, há a constituição da sua comunidade, da Igreja. Esta deve ser uma casa da amizade, uma experiência de amizade; os cristãos certamente continuam sendo servos do Senhor, na obediência, mas são amigos do Senhor na partilha da sua vida mais íntima, no conhecimento daquilo que o Pai comunica ao Filho e daquilo que o Filho diz ao Pai naquela comunhão de vida e de amor que é o Espírito Santo.

Sim, o mandamento novo não nos é dado como uma lei, mas como um dom que nos faz participar da vida do próprio Deus. Aqui está o grande mistério cristão da graça, do amor gratuito e preveniente, do amor que nunca se deve merecer, mas que deve apenas ser acolhido com estupor e reconhecimento.

Lê-se em um dito apócrifo atribuído a Jesus: “Viste o teu irmão? Viste a Deus!”. Palavras que também podem ser compreendidas da seguinte maneira: “Amaste o teu irmão? Amaste a Deus!”.

 

 

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