21 Dezembro 2017
"Tem razão o nosso Papa Francisco quando aponta para a necessidade de um “suplemento de sabedoria” (recente discurso aos Médicos da Associação Médica Mundial a respeito da prática da distanasia, ou da obstinação terapêutica) para além da ciência, para lidarmos com prudência e sapiência frente a estas intrincadas questões éticas e bioéticas de final de vida", escreve Leo Pessini, filósofo, mestre em Teologia Moral pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP e doutor em Teologia Moral pela mesma universidade. Realizou, ainda, pesquisa pós-doutoral em bioética pelo Centro de Bioética James Drane, da Edinboro University of Pennsylvania, nos EUA.
Entre suas obras, destacamos a trilogia sobre bioética de final de vida: Distanásia: até quando investir sem agredir (Loyola, 2a.ed., 2007), Eutanásia: por que abreviar a vida (Loyola, 2005) e Humanização e cuidados paliativos (Coord., 6a.ed., 2014). Para uma visão geral da bioética, escreveu ainda Problemas atuais de bioética (Ed. Loyola, 11a.ed., 2014).
Atualmente, residindo em Roma, é o Líder Mundial dos Religiosos Camilianos, Ordem Religiosa da Igreja Católica que está presente nos cinco Continentes, atuando no âmbito da saúde, em 41 países.
Após quase trinta anos de vai e vem em termos de discussões políticas, sociais, éticas e religiosas, e com três mil propostas de emendas, rejeitadas pelo parlamento somente no último dia, quando ainda era possível sugerir emendas à lei, finalmente o Senado da Itália aprovou de maneira definitiva, em 14 de dezembro de 2017, lei que regulamenta o chamado “biotestamento”[1] no país. A votação contou com 180 votos a favor, 71 contra e seis abstenções. A nova lei italiana sobre o final de vida entra em vigor imediatamente.
Este projeto de Lei n° 1142, sobre as “Normas em matéria de consentimento informado e disposições antecipadas de tratamento” sobre o testamento biológico, já tinha sido aprovado pelo Senado em 2014, mas teve que voltar à Casa por causa das modificações introduzidas pela Câmara dos Deputados.
Esta nova lei, resultado de um debate altamente politizado e polarizado ideologicamente, querendo contentar a “gregos e troianos”, no final desagradou a todos. A nova legislação não permite a prática da eutanásia ou do suicídio assistido, mas estas práticas não são rejeitadas explicitamente. Utiliza-se terminologia ambivalente (sem definir precisamente os conceitos chaves) que consequentemente são fatores de geração de ambiguidades, seja no âmbito da compreensão semântica do texto aprovado, bem como no âmbito de aplicação concreta. Para os militantes pró-eutanásia, esta nova lei é um passo importante em direção a sua legalização, que prometem voltar em breve à carga, com novas propostas ao Parlamento italiano.
1) Consentimento informado. A lei sobre biotestamento “tutela o direito à vida, à saúde, mas também o direito à dignidade e à autodeterminação” e dispõe que “Nenhum tratamento de saúde pode ser iniciado ou prosseguido sem o consentimento livre e informado da pessoa interessada”. A relação médico-paciente, de cuidado e confiança deve ser valorizada e promovida. O ato fundante é o consentimento informado que é documentado de forma escrita. “No caso em que as condições físicas do paciente não o permitam, pode ser expresso através de vídeo ou dispositivos que o permitam” e a vontade do paciente pode ser sempre modificada”.
2) Nutrição e hidratação artificial. “Toda pessoa maior de idade e capaz de agir tem o direito de aceitar ou refutar qualquer procedimento diagnóstico ou tratamento de saúde indicado pelos médicos para a sua patologia ou atos isolados do mesmo tratamento”. Além disso a lei estabelece que o paciente “tem o direito de revogar, em qualquer momento, o consentimento dado, também quando este revogar comporte a interrupção do tratamento”. A novidade aqui, e o ponto de maior discórdia e controvérsia nos debates, é que a nutrição e hidratação artificial são consideradas “como tratamentos de saúde”, uma vez que a sua administração é feita como prescrição médica de nutrientes, mediante dispositivos sanitários e, consequentemente, podem ser recusados ou suspensos (Cf. o caso Charlie Gard na Inglaterra em meados de 2017).
3) Obstinação terapêutica e abandono de cuidados. O texto da lei afirma que “o médico deve procurar aliviar os sofrimentos do paciente, mesmo no caso de recusa ou de revogação do consentimento ao tratamento de saúde. É sempre garantida uma apropriada terapia da dor e a interrupção dos cuidados paliativos. No caso de um paciente com um prognóstico infausto na fase terminal ou na iminência da morte, o médico deve se abster de toda obstinação irracional da administração dos cuidados e do recurso a tratamentos inúteis e desproporcionados. Frente a sofrimentos refratários aos tratamentos de saúde, o médico pode recorrer a sedação paliativa profunda e contínua (muitos bioeticistas do âmbito anglo-saxão denominam este procedimento de “eutanásia lenta” - slow euthanasia), em associação com a terapia da dor, com o consentimento do paciente”.
4) Responsabilidade do médico. “O médico deve respeitar a vontade expressa do paciente de recusar o tratamento de saúde ou de renunciá-lo. Consequentemente, o médico é isento de responsabilidade civil ou penal – lê-se. O paciente não pode exigir do médico tratamentos de saúde, contrários ao ordenamento jurídico, à deontologia profissional e às boas práticas clínico-assistenciais. Além disso, “o médico não tem obrigações profissionais” e, portanto, pode recusar-se a desconectar aparelhos. Em suma, trata-se de uma forma de objeção de consciência.
5) Menores e incapazes. A nova lei estabelece (art.2) o consentimento informado “expresso pelos pais, no exercício de sua responsabilidade, ou do tutor, ou do administrador de cuidados, levando-se em conta a vontade da pessoa menor de idade ou legalmente incapaz ou submetida à administração de cuidados”. O menor e incapaz tem o direito a ser valorizado nas suas capacidades de compreensão e decisão, e portanto deve receber as informações a respeito de suas escolhas e ser colocado em condições de exprimir a sua vontade.
6) A respeito das disposições antecipadas de tratamento (DAT). “Toda pessoa que seja maior e capaz de entender e de querer, em previsão de uma futura incapacidade de autodeterminação pode, através das disposições antecipadas de tratamento, exprimir as próprias convicções e preferências em matéria de tratamentos de saúde”. Em seguida indica “uma pessoa de sua confiança (fiduciário) que o represente nas relações com o médico e com as estruturas de saúde”. As DAT devem ter redação escrita, e são renováveis, modificáveis e revogáveis em qualquer momento. Nas situações em que não seja possível redigi-las, pode-se utilizar vídeo, e o médico deve respeitar o conteúdo.
7) Planejamento partilhado dos cuidados de saúde. Na relação médico-paciente, frente à evolução das consequências de uma patologia crônica e incapacitante” o médico e a equipe de cuidados de saúde “vão ater-se ao quanto foi estabelecido no planejamento dos cuidados, caso o paciente venha a se encontrar na condição de não poder exprimir o próprio consentimento, ou frente a uma condição de incapacidade”.
Vejamos a seguir algumas consequências de natureza jurídica, médica e ética desta problemática de cuidados de final de vida, a partir desta nova legislação.
Uma primeira crítica diz respeito à nomenclatura DAT – Disposições Antecipadas de Tratamento. Pergunta-se: por que não utilizar a expressão “Declarações”, que é muito mais respeitosa? A expressão “disposições” tem conotação e força coercitiva, alterando portanto o equilíbrio da relação médico-paciente, indispensável quando se procura estabelecer uma aliança terapêutica, a base de toda relação de cuidado de saúde.
Nutrição e hidratação: definir como terapia médica ou suporte de vida? Este é o ponto crítico de maior controvérsia da nova lei: este procedimento é considerado como uma terapia, ou um tratamento médico e portanto opcional. Como lemos no artigo 1° da lei – diz respeito à possibilidade de um paciente consciente e estável, portanto não em fase terminal de uma doença (grifos são nossos), e com necessidade de ser hidratado e nutrido por via artificial (por exemplo através de uma sonda), pode morrer em seguida frente à escolha de suspender a nutrição e hidratação. Ou então, a possibilidade de uma tal opção ser solicitada para um paciente em estado de inconsciência, por vontade de um fiduciário deste, nomeado pelo mesmo como tutor. A lei define tout court (sempre e em todas as circunstâncias) como sendo uma terapia a administração de água e alimento por via artificial e, como tal, não é obrigatória, mas opcional e, portanto, pode ser recusada.
Não existe consenso na comunidade científica, que afirma existirem casos frequentes em que hidratação e nutrição artificial não são tratamentos de saúde, mas “simples atos de suporte de vida”. O simples fato de que se deva utilizar uma cânula com acesso direto ao corpo do paciente que não pode mais se alimentar ou beber água por si, não transforma a natureza dos nutrientes. Sempre defendemos que comida, água e oxigênio são componentes fundamentais da nossa condição de existência como seres humanos, e expressões qualificadas de solidariedade e afeto para com o outro. Estamos diante de uma tendência crescente de medicalização nociva da existência humana. Certamente envelheceu moralmente a sociedade que desconsidera a dimensão existencial relacional da vida humana.
Estranha criação de uma “zona franca” para a não aplicação do código penal. No artigo 1° n° 6, lê-se “o médico respeitará a vontade expressa do paciente de recusar o tratamento de saúde e de renunciar ao mesmo e, em consequência disto, é isento de responsabilidade civil ou penal”. Portanto existe a possibilidade de omitir ou cometer atos de tal relevo, que hoje trazem consequências jurídicas também graves, frente à legislação italiana. Seria realmente justo criar por lei esta “zona franca indeterminada”, em cujo centro está em jogo a vida de uma pessoa?
Objeção de consciência - profissionais e hospitais. Frente ao direito dos médicos, em consciência de valores, de não cooperar com atos que possam provocar a morte do paciente. A expressão utilizada na lei (art. 1, n° 6) diz que: “frente a tais solicitações, o médico não tem obrigações profissionais”. Esta expressão parece ser muito genérica, por que não falar abertamente do “direito à objeção de consciência” frente a disposições contrárias com ciência e consciência do médico?
E a respeito das estruturas de saúde, os hospitais confessionais? Uma questão que ficou sem resolução. Os que sustentam a lei, defendem a obrigação de todas as estruturas de saúde, sejam públicas ou privadas (inclusive aquelas de inspiração cristã católica) de seguir e aplicar o que a lei dita. Atualmente a objeção de consciência não está prevista para as instituições sanitárias privadas, incluindo as de inspiração cristã. Em consciência líderes e eticistas católicos defendem que não se pode responder positivamente a uma solicitação de morte como a nova legislação prevê, “portanto nos absteremos de aplicá-la, assumindo todas as consequências do caso”, afirma categoricamente Dom Carmine Arice, ex-coordenador da Pastoral da Saúde, da Conferência Episcopal Italiana. Qualquer ato médico ou de cuidados de saúde que vise causar a morte do paciente não é admissível numa instituição de inspiração cristã católica. Em contexto cultural pluralista, o mínimo de respeito que se possa implementar é justamente a objeção de consciência. Ninguém deve ser obrigado a fazer violência contra sua própria consciência em fazer ou omitir algo, que vá contra seus próprios valores de vida. Esta questão ainda vai ser muito discutida, seja na Itália, e já começam a pipocar situações como esta no Brasil. Não se prevê solução simplista pela simples aplicação de lei que tenta impor uma visão única de procedimentos de cuidados de saúde para todos.
Um registro único para reconstruir as vontades dos pacientes? Este é um ponto que até os defensores da lei reconhecem que tem um defeito, porém sem apontar para correções. Não se previu um registro nacional de vontades de final de vida, ou pelo menos uma estrutura que garanta a privacy, e uniformidade e segurança, em relação aos valores e escolhas em relação ao final de vida que cidadão italiano deixou por escrito. Pela lei “as vontades de final de vida” devem ser cuidadas pelos escrivães, médicos e cartórios... No que isto vai resultar?
Resgate de uma antropologia integral. Para defender a sadia autodeterminação da pessoa, temos que cuidar para não cair na absolutização da liberdade individual, que traz como consequência o enfraquecimento dos laços de cuidado solidário, frente a situações de vulnerabilidade humana. Autonomia absoluta não é a melhor resposta ética para situações de extrema vulnerabilidade, qual seja o início, bem como o final de nossas existências, mas sim cuidado e proteção.
Enfim, estas observações preliminares, em relação a esta nova legislação italiana sobre o final de vida, lembrando que vivemos num mundo sempre mais plural em termos de valores, encontramo-nos sempre mais como “estranhos morais que como amigos morais” (Tristram Engelhardt). A busca por consensos básicos e fundamentais se torna sempre mais difícil frente a estas situações chaves de vida e morte, cujos conflitos não se resolvem simplesmente com sua legalização. Esta legislação italiana, talvez, possa ser um exemplo típico de semear mais confusão que esclarecimento e ajuda para os que realmente necessitam de ajuda, nesta área de extrema vulnerabilidade, que é o final da vida humana. Menos política e ideologias que polarizam estas questões, dificultando um debate mais sereno e aprofundado destas questões chaves de vida, e mais ética que respeite os valores humanos de uma comunidade pluralista, se transformam num imperativo inadiável! Mais cedo ou mais tarde estas questões de final de vida também estarão sendo debatidas no parlamento brasileiro. Precisamos estar preparados para a discussão de alto nível, e aprofundada, sem cairmos em fundamentalismos fáceis e dogmáticos, mas que com convicção serena possamos “dar as razões de nossa esperança!”
Tem razão o nosso Papa Francisco quando aponta para a necessidade de um “suplemento de sabedoria” (recente discurso aos Médicos da Associação Médica Mundial a respeito da prática da distanasia, ou da obstinação terapêutica) para além da ciência, para lidarmos com prudência e sapiência frente a estas intrincadas questões éticas e bioéticas de final de vida.
1 - Para compreender as questões em torno do biotestamento, na Itália, e das Disposições Antecipadas de Tratamento - DAT ler o artigo Guardar as relações: o que está em jogo no biotestamento aprovado na Itália.
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Itália aprova uma “nova e controversa” lei sobre cuidados de final de vida: Alguns comentários bioéticos! - Instituto Humanitas Unisinos - IHU