24 Agosto 2017
Nos últimos cinco anos, José Ramírez foi entregador, garçom e vendedor porta a porta. Também trabalhou como pedreiro ilegal em Los Angeles. De volta ao México, tentou procurar trabalho em todos os lugares, mas as portas sempre estavam fechadas. Guanajuato, seu Estado natal, é o que tem a maior taxa de emigração do país. José me conta a sua história em um estacionamento no centro histórico de León, capital econômica da região, a 400 km da Cidade do México. No pescoço, ele traz um amuleto que representa a morte com uma túnica desgastada, a foice em uma mão e o mundo na outra.
A reportagem é de Fabrizio Lorusso, publicada por Il Manifesto, 22-08-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“¿Estás con la Santa? Você é devoto da Santa”, eu pergunto. A sua resposta é uma confissão: “Sim, eu conheço a Santa Muerte por causa dos meus amigos que, no Gabacho (nos Estados Unidos), a adoravam, mas, no começo, eu não me interessava, porque muitos diziam que é uma narcossanta e é vingativa. Se você não faz como ela diz, ela castiga você. Agora eu sei que não é verdade...”.
Há um mês, José tem um emprego, embora precário e mal pago. Ele trabalha como caixa no estacionamento em que estamos conversando. “Foi a Santíssima Muerte! Quando eu voltei, o meu primo me deu uma imagenzinha dela, e eu também fiz uma oferta para ela, para encontrar trabalho: maçãs, cigarros, cerveja e a minha nota de um dólar da buena suerte”, conta.
Há séculos, as devoções populares são onipresentes no México e, periodicamente, reaparecem sob novas vestes, misturando-se ao catolicismo com práticas sincréticas. La Santa Muerte, que não deve ser confundida com a coloridíssima festa mexicana do dia 1º de novembro, ou Dia dos Mortos, é conhecida pelos seus muitos apelidos: Flaquita (magrinha), Niña Blanca y Bonita (menina branca e bonita) ou Hermana (irmã).
A composição social dos seus cultores é variada, mas, em grande parte, reflete as contradições de uma sociedade dominada por um modelo socioeconômico excludente. As prostitutas, os policiais, os taxistas, os membros da comunidade LGBT, os presos, os moradores dos guetos e das periferias são o núcleo duro do povo da Santa Muerte.
“O imaginário da morte santificada vem suprir a falta de instituições confiáveis e o respeito pelos direitos humanos, cada vez mais comprometido no México pela guerra contra o narcotráfico, pelo neoliberalismo econômico e pelas desigualdades predominantes”, explica o estudioso das religiões Stefano Bigliardi.
Por outro lado, entre os fãs da Santa, também há controversas figuras públicas, como o ex-governador do Estado de Oaxaca, Ulises Ruiz, conhecido pela repressão contra o movimento dos professores em 2006, que provocou 25 mortes, e o ex-chefe da Polícia Investigativa, Genaro García Luna, no centro de escândalos relacionados ao narcotráfico.
“Junto com São Judas Tadeu, promovido pela Igreja como santo das causas desesperadas, ou de Jesús Malverde, que tem a fama de ser protetor dos narcotraficantes, a Muerte é um dos chamados ‘santos da crise’, e, no México, as crises não terminam nunca. Portanto, o culto tem cada vez mais adeptos”, explica Alfonso Hernández, cronista do bairro de Tepito, a região orgulhosa e infame do centro histórico da Cidade do México, onde a Flaquita é uma padroeira indiscutível.
No fim dos anos 1990, a imprensa falava raramente sobre a Santa Muerte, apenas para ligá-la fortemente aos narcos. Na verdade, no refúgio do sequestrador Daniel Arizmendi, conhecido como “O Decepa-Orelhas”, e na mansão do narcotraficante do cartel do Golfo, Gilberto García “El June”, tinham sido encontrados altares da Flaquita. Em 2003, a CIA emitiu um relatório que a definia como a “Santa dos narcos”, e o FBI, dez anos depois, falava dela como inspiradora de rituais macabros.
Na realidade, trata-se de um novo movimento religioso complexo, e, de acordo com estimativas jornalísticas, seriam nada menos do que 10 milhões as pessoas que, como José, embora crendo em Deus e definindo-se como católicos, se afastaram da Igreja para se aproximar da Santa Muerte. “A Santa não julga quem você é ou o que você fez. Ela é democrática, não discrimina ricos e pobres”, dizem os seguidores.
De acordo com a antropóloga mexicana Katia Perdigón, as suas origens devem ser buscadas nos rituais que os índios faziam, utilizando as pinturas que retratavam o esqueleto da morte, trazidos para as Américas pelos espanhóis durante a conquista. Depois, em meados do século XX, ela reapareceu nos textos do antropólogo Oscar Lewis como culto semiclandestino das famílias pobres no distrito de Tepito.
Depois de décadas de clandestinidade, o culto finalmente explodiu publicamente em 2001, quando a senhora Enriqueta Romero, também em Tepito, expôs uma estátua da Muerte de quase dois metros na varanda da casa. Desde então, o fluxo de devotos, jornalistas e curiosos não parou mais. Começaram a ser celebrados os terços mensais pelas ruas, e os altares se multiplicaram dentro e fora do México.
A Santa Muerte se globalizou tanto por causa da migração de milhões de latinos aos Estados Unidos, seja pela sua “viralidade” na web e nas redes sociais. As suas páginas e comunidades no Facebook, verdadeiros santuários virtuais, têm centenas e muitas vezes dezenas de milhares de membros.
Por fim, séries de TV como Breaking Bad ou Dexter e filmes como “Selvagens”, de Oliver Stone, El Infierno, de Luis Estrada, e “Uma vida melhor”, com Demian Bichir, transformaram-na em um ícone pop.
“O culto está cada vez mais forte. Eu tenho muitos planos em mente. Sei que seremos o maior grupo, presente em todo o mundo. As pessoas sabem que somos honestos”, afirma Enriqueta Vargas, líder da Santa Muerte Internacional, em Tultitlán, na zona rural da Cidade do México. A sua organização nasceu em 2007, graças ao filho, Jonhatan Legaria, que, antes de morrer assassinado brutalmente, erigiu uma estátua da Santa de 22 metros.
Hoje, a madrinha, como os devotos a chamam, é a personagem mais midiática do culto e está criando uma rede de altares entre os Estados Unidos e o México.
De todos os modos, ainda não existe uma Igreja ou uma religião da Santa Muerte, que, até agora, expulsou com a sua foice as tentativas de domesticação e de exploração comercial, assim como as hierarquias e os rótulos que tentam enquadrá-la.
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México. ''Santa Muerte'', uma religiosidade viral - Instituto Humanitas Unisinos - IHU