09 Dezembro 2024
Os comentários recentes do Papa Francisco sobre Israel e Gaza intensificaram as tensões com as comunidades judaicas. Massimo Faggioli explora o tratamento do papa nas relações católico-judaicas, a falta de revisão teológica adequada e a comercialização de seus escritos, minando sua influência e mensagem.
O artigo é de Massimo Faggioli, historiador italiano e professor da Villanova University, publicado por La Croix International, 05-12-2024.
Durante o último ano, desde os ataques do Hamas de 07-10-2023, as relações entre o Papa Francisco, Israel e os judeus se tornaram perigosamente tensas e de maneiras que nem sempre são discutidas em público. Essa situação se intensificou nas últimas semanas, pouco antes da abertura do Jubileu de 2025, devido a uma série de declarações que Francisco fez sobre a guerra de Israel em Gaza, particularmente em um livro publicado em italiano em novembro.
No entanto, este livro, cujos trechos também foram publicados pela mídia do Vaticano, seguiu outros textos com um uso incauto de citações bíblicas em referência à guerra, como a “Carta aos católicos do Oriente Médio” de 07-10-2024.
Este é um problema sério e muito maior do que o risco de manchar o legado de Francisco, e envolve três problemas distintos, mas interligados.
O primeiro tem a ver com a maneira como Francisco interage com alguns problemas específicos nas relações entre judeus e católicos. Certamente, Francisco deve encontrar uma forma de falar diferente sobre Gaza das principais organizações judaicas que foram incapazes de olhar criticamente para a conduta do governo israelense durante a guerra. É inaceitável não responsabilizar Israel por nenhuma das mortes de palestinos inocentes. Dizer que a responsabilidade recai inteiramente sobre o Hamas, que colocou civis em perigo, é uma lógica moral simplista.
A discussão dentro de Israel e da diáspora judaica sobre esta guerra tem uma profundidade e complexidade que são difíceis de apresentar aos católicos na América do Norte e ainda mais na Europa. É difícil porque deve abordar a ascensão do antissemitismo, juntamente com a tendência de usar acusações de antissemitismo como uma resposta abrangente a qualquer crítica à liderança política israelense.
Além disso, a promessa do Estado de Israel de garantir a segurança dos judeus tanto em Israel quanto na Diáspora está agora sendo criticamente reexaminada e desafiada. O livro recente da historiadora judaica italiana Anna Foa, intitulado The Suicide of Israel, destaca a complexidade do papel da diáspora quando se trata de criticar os governos de Israel.
E há também o fato de que para muitas comunidades judaicas na Europa, também por causa da situação no Oriente Médio, a opção antifascista não é mais um dado adquirido. Isso realinhou muitos na diáspora judaica, não apenas com Benjamin Netanyahu e seus aliados na Itália, mas também com governos de direita na Europa.
“O papa deve fazer uma crítica mais profunda a Israel do que aquela que ele apresentou em seus comentários 'improvisados'.” — Massimo Faggioli
Estudiosos acusaram Pio XII de silêncio enquanto cerca de seis milhões de judeus foram mortos no Holocausto durante a Segunda Guerra Mundial. Hoje, as palavras de Francisco sobre Gaza também são uma resposta ao silêncio e à hipocrisia de outros líderes mundiais. Mas o papa deve fazer uma crítica mais aprofundada de Israel do que a que ele apresentou em seus comentários "improvisados".
A abordagem de Francisco para o relacionamento católico-judaico requer uma erudição mais sólida e uma linguagem mais autodisciplinada, consciente dos riscos de usar textos bíblicos que historicamente foram usados para justificar a perseguição de judeus. Se esse problema bíblico reside em seus escritores, então ele tem a responsabilidade de corrigi-los.
Isso está conectado ao segundo problema: a maneira como Francisco governa sua Cúria ou trabalha com ela. Tudo gira em torno das palavras do papa e não deveria ser assim. Um fator importante é a divisão curial das relações com os judeus em suas dimensões “religiosas” (diálogo católico-judaico) e as relações diplomáticas da Santa Sé com o Estado de Israel.
A Comissão para Relações Religiosas com os Judeus (CRRJ) tem estado, pelo menos publicamente, totalmente silenciosa. Talvez seja o resultado de uma postura excessivamente deferente da comissão para com a Secretaria de Estado da Santa Sé.
Uma consequência foi que os judeus, especialmente aqueles que participaram do diálogo com os católicos, sentiram a ausência dos relacionamentos institucionais e interpessoais que foram cultivados ao longo de décadas.
Outra consequência da maneira como Francisco interage com a Cúria é que, aparentemente, Francisco não recebeu ou desconsiderou o conselho teológico durante as crises atuais. De forma relacionada, parece não ter havido nenhuma revisão exegética ou teológica de alguns dos comentários bíblicos recentes do papa — ou, mais provavelmente, comentários escritos para ele por outros sem supervisão — que não dizem respeito a Gaza ou à guerra no Oriente Médio.
Esses comentários incluem as caracterizações flagrantes de um “sistema social e religioso” (necessariamente judaico) no qual era normal tirar vantagem dos outros pelas costas (observações feitas após o Angelus de domingo, 10 de novembro) e a afirmação de que “na época de Jesus, as crianças não eram muito respeitadas... eram até vistas como um incômodo pelos rabinos” (documento de 10 de novembro para a criação do novo “Pontifício Comitê para a Jornada Mundial das Crianças”).
Seria de se esperar que em uma igreja solenemente comprometida “com a genuína fraternidade com o povo da aliança” (como João Paulo II disse no Muro das Lamentações em 26-03-2000) alguém ao menos estivesse revisando os materiais papais e do Vaticano para tais deturpações e o falso testemunho. Talvez devesse ser o Dicastério para a Doutrina da Fé ou o CRRJ, mas alguém precisa estar fazendo isso.
É complicado se envolver com a autocompreensão judaica como um povo e não simplesmente como uma “religião” conforme definido na modernidade, e também ser sensível às diferenças de perspectiva israelense/diáspora. No entanto, os católicos certamente precisam fazer melhor do que isso, particularmente em tempos de convulsão. A Secretaria de Estado deve priorizar lidar com questões de guerra. Mas onde está um escritório que exerce alguma supervisão teológica?
O terceiro problema é que se tornou impossível acompanhar o que é publicado em nome de Francisco, mesmo nas questões mais delicadas. Um exemplo é o último livro do papa e o que ele diz sobre “genocídio” e “Gaza”. Cada um teve um punhado de ocorrências, mas algumas passagens são repetidas palavra por palavra em páginas diferentes.
Há muitos livros e publicações com o nome do papa na capa: como autor, como entrevistado, no prefácio. Tornou-se uma indústria de diferentes editoras (algumas são católicas, outras não; muitas delas não são da Libreria Editrice Vaticana, a editora vaticana) voltada para a produção de vendas em massa de livros que muitas vezes são pouco mais do que uma colagem de coisas que Francisco disse em diferentes momentos e contextos.
Nesses livros, o papel do editor e da editora é empacotar esses ditos e escritos com um novo título. No entanto, as observações do papa chegam até nós completamente descontextualizadas, requentadas de um momento e cenário totalmente diferentes. Além disso, está longe de ser certo que o Papa Francisco (ou qualquer um que tenha que lidar com as consequências do que ele diz) tenha a chance de revisar esses produtos antes de serem publicados. É uma situação diferente do início do pontificado de Francisco com suas primeiras e importantes entrevistas jornalísticas.
“Esta proliferação de livros com Francisco como 'autor' faz mal porque enfraquece a autoridade da palavra do papa.” — Massimo Faggioli
Essa proliferação de livros com Francisco como “autor” causa danos porque enfraquece a autoridade da palavra do papa. Francisco tem o direito e até o dever de chamar a atenção do mundo para a conduta de Israel e para o que está acontecendo em Gaza, para os palestinos e no Líbano. Como líder da Santa Sé, um sujeito de direito internacional e um participante ativo nas relações internacionais com uma diplomacia ativa, o papa pode e deve abordar os aspectos potencialmente criminosos da conduta do governo israelense em vez de se limitar a um julgamento moral.
Mas a maneira como isso é feito, em operações comerciais tentando lucrar com a popularidade de Francisco, enfraquece as chances de ouvi-lo. “Loose lips sink ships” é uma expressão idiomática do inglês americano que significa “cuidado com a conversa desprotegida”. A frase se originou em cartazes de propaganda durante a Segunda Guerra Mundial. É uma expressão idiomática que aqueles que tentam lucrar com a publicação das palavras do Papa Francisco devem ter em mente, especialmente agora que a Santa Sé está tentando evitar uma Terceira Guerra Mundial completa.
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Do silêncio de Pio XII às palavras de Francisco sobre Israel e Gaza. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU