10 Agosto 2024
“A verdade é que a geopolítica esmaga os povos e os movimentos, condenando-os a uma prisão conceitual e política. Como a lógica dos blocos está se impondo (Norte Global e Sul Global, por exemplo), aqueles que não se somam a um dos lados desaparecem dos grandes meios de comunicação”, escreve Raúl Zibechi, jornalista e analista político uruguaio, em artigo publicado por La Jornada, 09-08-2024. A tradução é do Cepat.
Os grandes ausentes nesta crítica conjuntura latino-americana são os povos organizados, os movimentos e organizações de baixo. Todo o cenário é ocupado por estados e governos, os de cima, fazendo malabarismos geopolíticos para colocar os seus interesses a salvo das potências adversárias que lutam pela hegemonia.
Não é um cenário nada agradável. Fazem bem os movimentos que evitam falar por um ou por outro, pois a defesa da vida passa por outros caminhos, a despeito daqueles que tentam atrair multidões que depois serão enganadas, como já aconteceu após as guerras de independência. Deveríamos aprender alguma coisa da história, e é disso que se trata o conflito atual.
Já antes das eleições venezuelanas, a região aparecia profundamente dividida, mas agora as dissidências se aprofundam. A Argentina de Milei balança a bandeira da subordinação aos Estados Unidos junto com vários países, ao passo que do lado oposto estão os governos da Bolívia, Nicarágua e Cuba. No meio, Brasil, Colômbia e México buscam mediações sem muito sucesso.
Os povos não têm lugar neste conflito. Menciona-se a fraude eleitoral na Venezuela e o sumiço das atas eleitorais, mas deixa-se de lado o básico: a violência do Estado contra os setores populares. O relatório de 2023 do Provea (Programa Venezuelano de Educação-Ação em Direitos Humanos) apresenta números terríveis sobre o balanço da década de Nicolás Maduro no governo: entre 2013 e 2023, ao menos 10.085 pessoas foram assassinadas por agentes de segurança do Estado.
Pode-se argumentar com toda razão que em muitos países aliados dos Estados Unidos, como vários do Oriente Médio e em particular na Arábia Saudita, os defensores dos direitos humanos são condenados à prisão e a discriminação contra as mulheres é brutal, limitações que não existem na Venezuela.
A verdade é que a geopolítica esmaga os povos e os movimentos, condenando-os a uma prisão conceitual e política. Como a lógica dos blocos está se impondo (Norte Global e Sul Global, por exemplo), aqueles que não se somam a um dos lados desaparecem dos grandes meios de comunicação.
Aqueles que na direita denunciam os países aliados da China e da Rússia, que são classificados como autoritários que violam os direitos humanos, deveriam considerar o que acontece nos Estados Unidos. A polícia mata mais de mil pessoas por ano, entre três e quatro pessoas por dia.
O banco de dados do jornal The Washington Post diz que “mais da metade das pessoas assassinadas a tiros pela polícia têm entre 20 e 40 anos”, e que uma pessoa de pele negra tem duas vezes mais possibilidades de morrer em decorrência da ação policial. Além disso, “a polícia dos Estados Unidos matou pessoas em um ritmo três vezes superior ao do Canadá e 60 vezes superior ao da Inglaterra”, destaca o portal de estatísticas statista.com.
Como vemos no caso venezuelano, os progressistas também não estão bem situados, cabendo acrescentar as violências e agressões permanentes contra as diversas minorias na Rússia e na China, bem como as restrições aos movimentos sociais.
Conforme vamos entrando nos momentos mais intensos da transição de um mundo unipolar para outro multipolar, aumentam as possibilidades de guerras para a resolução de conflitos. Os movimentos populares não podem se expressar nem na Ucrânia, nem na Rússia. Na Europa, onde os movimentos desempenharam um papel relevante no passado, a polarização bélica e um estado de excepção não declarado, muitas vezes, limitam as possibilidades de manifestação e protesto. Estado de exceção que é regra na América Latina militarizada.
São bem poucos os povos e movimentos que seguem resistindo e construindo em meio à militarização crescente. O EZLN em Chiapas, os grupos autônomos mapuches no sul do Chile e na Argentina, os povos originários e negros do Cauca colombiano e vários povos amazônicos no Peru e no Brasil, além de comunidades corajosas e determinadas em muitos cantos da nossa América Latina.
Cada um com seus modos e tempos diferentes, mas todos na defesa coletiva do território. Não é por acaso que são os coletivos que optaram pela autonomia que estão resistindo na linha de frente à guerra de espoliação, como estão fazendo nesses dias os Guarani e Kaiowá, em Douradina, Mato Grosso do Sul, enfrentando com seus corpos e espíritos as milícias do agronegócio, como vem denunciando a Teia dos Povos.
A impressão é que só os povos e setores sociais muito bem organizados, enraizados em territórios e bairros, ancorados em longas memórias e identidades fortes, serão capazes de resistir aos embates do capital e dos estados, sem se aliar a qualquer um dos lados do disputa.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Nem com o Norte, nem com o Sul globais. Artigo de Raúl Zibechi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU