27 Março 2024
A invasão de Gaza por Israel entra no seu sexto mês e o seu impacto nas crianças tem sido devastador. Situação que nos próximos meses só tende a piorar.
A reportagem é de Dalal Yassine, colaboradora do Jerusalem Fund/Palestine Center de Washington, publicada originalmente em The Electronic Intifada e reproduzida por Rebelión, 26-03-2024. A tradução é do Cepat.
As agências da ONU estimam que 17 mil crianças tenham ficado órfãs ou isoladas das suas famílias e que uma em cada seis crianças com menos de dois anos de idade sofre de subnutrição aguda. O ministro da Saúde de Gaza relatou a morte de 23 crianças por desnutrição ou desidratação nas últimas semanas. Das mais de 31 mil pessoas assassinadas em Gaza, mais de 13 mil são menores de idade.
A doca flutuante temporária proposta por Joe Biden e o lançamento aéreo de suprimentos são insignificantes diante desta catástrofe humanitária que se desenrola diante dos nossos olhos. A ONU já alertou que cerca de 580 mil palestinos (um quarto da população de Gaza) estão “a um passo da fome”.
Estes dados e esta situação parecem-me demasiado familiares. Como refugiada palestina, vivi grande parte da minha vida no Líbano com a minha família. Vivi a guerra civil e a invasão israelense em 1982, o cerco de Beirute, a subsequente ocupação do Líbano, bem como a invasão de 2006.
A experiência do deslocamento e do enfrentamento diário da morte ainda hoje está gravada em minha mente. Lembro-me de ter pulado sobre corpos espalhados depois que um ataque aéreo israelense atingiu um prédio perto da casa onde estávamos abrigados.
Tenho muitas lembranças horríveis desse tipo. Os traumas psicológicos causados pela devastação da guerra são cicatrizes que duram a vida toda.
Israel continua a impedir que a ajuda humanitária chegue aos palestinos em Gaza e atacou quem tenta receber essa ajuda. No último dia de fevereiro, as tropas israelenses massacraram mais de 100 palestinos desarmados que esperavam para receber farinha e ajuda humanitária. Três dias depois, Israel matou nove civis palestinos que faziam fila para comprar farinha em dois ataques separados.
Depois de vetar três vezes as resoluções do Conselho de Segurança da ONU que pediam um cessar-fogo, a administração Biden também bloqueou uma declaração condenando o “Massacre da Farinha” porque, supostamente, “ainda não tínhamos todos os dados sobre o terreno”.
Embora Washington tenha fornecido grandes quantidades de munições e dado cobertura política aos militares israelenses, afirmou repetidamente que é incapaz de influenciar a política israelense.
Em vez disso, a administração Biden iniciou o lançamento aéreo de “alimentos preparados” em Rafah. Os lançamentos aéreos são absolutamente insuficientes, considerando as extremas necessidades da população. E no dia 8 de março, a queda de caixas matou cinco pessoas, incluindo duas crianças, quando um ou mais paraquedas não abriram. O porto provisório proposto por Biden levará semanas para ser concluído à medida que as doenças e a desnutrição aumentam.
Enquanto isso, Israel continuou a sua campanha e está usando armas estadunidenses. Enquanto as primeiras gotas de ajuda eram entregues, um ataque de drone israelense disparou contra palestinos amontoados em tendas em frente ao hospital dos Emirados em Rafah. Pelo menos 11 civis, incluindo crianças e dois profissionais de saúde, foram mortos e pelo menos 50 pessoas ficaram feridas.
Durante cinco meses, a administração Biden defendeu as ações de Israel e fez apenas críticas moderadas. Washington manteve-se firme no seu apoio, apesar das provas contundentes de crimes de guerra, incluindo a determinação do Tribunal Internacional de Justiça de um genocídio plausível.
Os porta-vozes da Casa Branca, do Departamento de Estado e do Conselho de Segurança Nacional, bem como o presidente Biden e o secretário de Estado Antony Blinken, rejeitaram ou minimizaram repetidamente os relatórios das Nações Unidas, de jornalistas e de organizações humanitárias sobre a catástrofe humanitária que são transmitidos ao vivo para um público global horrorizado.
Mesmo depois do “massacre da farinha”, o porta-voz do Congresso da Segurança Nacional (NSC), John Kirby, insistiu em que Israel “tentou ajudar na entrega de ajuda humanitária”. No entanto, um punhado de manifestantes israelenses conseguiu impedir a entrada de caminhões de ajuda em Gaza. A atmosfera carnavalesca destes manifestantes israelenses na passagem da fronteira ocorreu à vista dos meios de comunicação internacionais, bem como do exército israelense.
Israel também impediu a entrada de itens de primeira necessidade em Gaza e contribuiu para a dor e o sofrimento das crianças palestinas. A CNN informou que kits de maternidade, sacos de dormir e absorventes foram proibidos de entrar em Gaza. Anestésicos, cilindros de oxigênio e muletas também estão na lista de itens impedidos.
Cenas chocantes de crianças submetidas a cirurgias e amputações sem anestesia tornaram-se rotina, assim como a sigla WCNSF, que descreve “as crianças feridas sem familiares sobreviventes”. As declarações do secretário-geral da ONU, António Guterres, alertando em 6 de novembro que Gaza estava prestes a se tornar um “cemitério de crianças” tornaram-se realidade.
Hind Rajab, uma menina de seis anos que fez um telefonema pedindo ajuda quando soldados israelenses atiraram contra o carro em que ela viajava com sua família, matando o resto de seus familiares e imobilizando-a, foi assassinada após uma longa espera, junto com os auxiliares médicos que vieram para salvá-la.
Bebês como Mahmud Fattouh, de 45 dias, que morreu devido a desidratação grave e desnutrição, ou Ahmad, uma criança que foi resgatada após nove dias debaixo dos escombros, em estado esquelético, ou Taleen, de 10 anos, que reconheceu o cadáver da sua mãe pelo cabelo, engrossam a lista.
Existem inúmeras histórias de mães que seguraram seus filhos nos braços enquanto davam seu último suspiro. E esta é apenas uma lista parcial. Existem milhares de outras histórias que não conhecemos. Com milhares de corpos ainda enterrados sob os escombros, as histórias de muitas crianças mortas possivelmente nunca serão conhecidas.
No entanto, a administração Biden insiste repetidamente que precisa de mais provas antes de condenar ou criticar as ações de Israel, padrões que não aplicou aos palestinos, às agências da ONU ou ao Tribunal Internacional de Justiça.
As crianças em Gaza sofreram a perda dos seus familiares mais próximos, em muitos casos os seus pais, irmãos, avós e outros familiares. As suas casas e escolas foram destruídas, os seus vizinhos mortos ou desalojados, os seus livros e brinquedos foram perdidos, os seus animais de estimação foram mortos, o seu parque favorito foi destruído.
Sob constantes bombardeios, as crianças continuam enfrentando graves perigos de cerco, destruição, deslocamento e fome. Estes perigos só aumentarão nas semanas e meses após o fim dos combates.
E as crianças nunca perdoarão o silêncio e a cumplicidade daqueles que apoiaram este horror.
Eu sei, eu fui uma delas durante muito tempo.
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A cruel situação das crianças palestinas deixará sequelas para o resto da vida - Instituto Humanitas Unisinos - IHU