12 Março 2024
As palavras do Papa Francisco, numa entrevista à Rádio e Televisão suíça, sobre a necessidade de negociações para acabar com a guerra na Ucrânia provocaram a fúria dos defensores da guerra até à vitória da Ucrânia sobre a Rússia, contrariada pelo princípio da realidade.
A hipótese de que um Papa defenda o bem da vida humana e a concórdia entre os povos, enquanto um líder europeu como Macron apresenta a ideia de enviar soldados no campo para combater os russos, parece perturbar os planos daqueles que puxam os cordões do mundo. Antonio Spadaro, subsecretário do Dicastério para a Cultura e a Educação e ex-diretor da Civiltà Cattolica, ajuda-nos a compreender o que está acontecendo.
A entrevista é de Daniela Ranieri, publicada por Il Fatto Quotidiano, 11-03-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Padre Spadaro, porque as palavras do Papa causaram tanta perplexidade entre os defensores do envio de armas até o último ucraniano? Suas palavras não são as palavras do Evangelho? O Papa quer a rendição da Ucrânia?
Porque não foram ouvidas nem compreendidas devidamente. O Papa nunca disse que a Ucrânia devia render-se. Falou em hastear a bandeira branca apenas com o propósito de abrir negociações e encontrar uma solução para um conflito para o qual não se vê um fim, a não ser aquele da sua coreanização, de um impasse. E acrescentou que a negociação nunca é uma rendição. Francisco pede a coragem para parar a voz das armas e aceitar a ajuda de mediadores internacionais. Quando se referiu a uma “derrota”, não estava falando de uma capitulação, mas sim da derrota do desejo de salvar todo o controle estatal. Isso nada tem a ver com uma rendição incondicional, que certamente teria sido a consequência de uma falta de resistência, que, ao contrário, o povo ucraniano demonstrou heroicamente.
Como o senhor avalia as acusações de “putinismo” dirigidas ao Papa Francisco? (Galli Della Loggia no Corriere definiu a posição do Papa como "pró-russa").
São simplesmente desprovidas de fundamento. Francisco nunca perde a oportunidade de falar sobre a “martirizada Ucrânia”. Por outro lado, na verdade, vemos as hesitações estadunidenses ao apoio militar.
Contudo, se há algo que o Papa contestou claramente várias vezes, é a lógica de Yalta, aquela dos alinhamentos, do bolo dividido em fatias. Apelou ao espírito de Helsinque e a um verdadeiro multilateralismo.
Numa época em que a ordem mundial entrou em colapso, seria necessário meditar melhor sobre as suas palavras, que sem dúvida incomodam aqueles que dividem o mundo em dois.
O Papa viu, único entre os chefes de Estado e os líderes espirituais, que estávamos entrando “na terceira guerra mundial em pedaços". Disse que "a OTAN latindo às portas da Rússia" levou Putin a desencadear o conflito. Acredita que é por isso que está sob o fogo das mídias atlantistas? No entanto, faz parte da tradição da Igreja condenar a guerra. Paulo VI em 1965 gritou da bancada da ONU “nunca mais guerra”.
Acredito que o Papa não seja perdoado por ter criticado o conceito de “guerra justa”. Hoje é difícil defender racionalmente que, face ao poder destrutivo das novas armas, especialmente aquelas nucleares, incluindo as tácticas que já são dez vezes mais potentes do que as lançadas sobre o Japão, se possa falar de justiça. A guerra é injustificável. Aquela defensiva pode ser, sob certas condições, como diz o Catecismo da Igreja Católica publicado por São João Paulo II. E a condição é que haja condições fundamentadas de sucesso, e que o recurso às armas não provoque males ainda mais graves, ou seja, o massacre de um povo.
Queriam que o Papa partilhasse a estetização da guerra e do martírio, o elogio das armas e da bela morte. Sendo isso profundamente anticristão, como se explica que também haja cristãos entre aqueles que o criticam?
O primeiro pensamento do Papa vai para o povo exausto. Quando se encontrou com os jesuítas da região russa lembrou com dor que nas guerras que sofre são as pessoas, os civis. Nele não há nenhuma forma de retórica belicista. O Evangelho chega a pedir o amor ao inimigo.
Sobre a guerra em Gaza, o Papa falou de “dois irresponsáveis” que guerreiam. Pode nos explicar?
Por um lado, temos um ataque terrorista, o do Hamas, que fez um massacre feroz, fazendo reféns dos quais não temos hoje notícias seguras. Por outro lado, uma reação que levou a 31 mil mortes e a uma população inteira ao desespero com um massacre de milhares de crianças mortas ou deixadas morrer de fome. Lançar as bases de um ódio que durará gerações e não permitirá um futuro seguro e pacífico para a região é coisa de irresponsável.
O Cardeal Zuppi, enviado pelo Papa em missão de paz, sempre afirmou que “todos as guerras terminam com uma negociação”. Temos a impressão de que a sua mediação por um o caminho da paz tenha se interrompido. É isso mesmo?
O Cardeal também foi à Rússia, não apenas à Ucrânia. E vale a resposta do Papa na sua entrevista: “Eu estou aqui”, que significa que a Santa Sé está sempre pronta e disponível para oferecer apoio a mediações que podem ser complexas. A diplomacia do Vaticano costura, não corta.
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Ucrânia. “A negociação só incomoda quem divide o mundo em dois”. Entrevista com Antonio Spadaro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU