23 Janeiro 2024
"A leitura bíblica, no seu desenvolvimento histórico, ofereceu um modelo para a leitura da obra literária", escreve o jesuíta italiano Antonio Spadaro, subsecretário do Dicastério para a cultura e a educação, em artigo publicado por La Repubblica, 22-01-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Na leitura, cria-se uma forte relação entre leitor e livro, na qual o leitor não domina as páginas, mas se movimenta dentro delas e, enquanto lê, lê a si mesmo. Gianni Vattimo, na esteira de Heidegger, reconheceu na tradição da leitura bíblica a atestação da possibilidade de um tipo de leitura de uma obra literária, que não pretende apropriar-se do seu objeto, mas aceita mover-se dentro dele, descobrindo um “mundo” de significados e ressonâncias. Abrir a Bíblia nunca significou apenas abrir um livro-objeto: a lectio divina da tradição ocidental ligada ao texto sagrado considera isso como um mundo no qual “habitar”. E a leitura bíblica, no seu desenvolvimento histórico, ofereceu um modelo para a leitura da obra literária. O texto lê o seu leitor.
Uma imagem dessa dinâmica de leitura são aquelas miniaturas do século XII que apresentam figuras particularmente luminosas: se colocadas ao lado de uma vela, adquirem um brilho próprio.
As miniaturas que acompanham os textos sagrados parecem retomar a tradição do ícone oriental: o pintor não pinta a luz que atinge o objeto e depois é refletida, mas pinta seres que têm dentro de si uma fonte de luz: a luz é imanente à página.
Hugo de São Vítor em seu Didascalicon fala de uma luz que ilumina o leitor e, evidentemente, refere-se a essa luminosidade da página que faz do livro um remédio para o olho porque permite ao leitor, através do studium, expor-se à luz da página de tal forma que o leitor possa entrar na luz desse mundo e, dentro dele, reconhecer-se e tomar consciência de si mesmo.
Essa experiência secular gerou – entre outras coisas – os exercícios espirituais de Inácio de Loyola, o fundador dos jesuítas. Não são um texto para ler, mas são formas de meditar também com a imaginação. Quem pratica é convidado a mergulhar no texto bíblico pelo menos de três maneiras: projetando o próprio corpo na cena representada com a imaginação; participando das emoções dos personagens; revivendo, passo a passo, os acontecimentos do mistério contemplado. Percebe-se assim como toda experiência espiritual está associada a um elemento constitutivo da gramática de uma narração: cenário, personagem e enredo.
Para fazer os Exercícios não se deve, portanto, simplesmente “ler” o livro inaciano, mas é preciso seguir as instruções que ele oferece: olhar, sentir, mas também tocar. O exercitante é chamado a entrar num ambiente virtual propriamente dito, que Inácio chama de “composição vendo o lugar", e que é uma verdadeira visão estereoscópica total.
Vamos fazer uma comparação: jogar videogame geralmente significa mover um protagonista por todos os ambientes, os níveis do jogo, pressionando botões e um cursor ou joystick: existe uma interação, mas a distância entre real e virtual permanece clara. Nos Exercícios, pelo contrário, não é prevista uma separação entre o espectador-ator (o jogador) e o espaço virtual visualizado na tela: o exercitante é chamado a imergir na realidade contemplada e a interagir plenamente com ela sem filtros. Os Exercícios representam uma prefiguração de muitos dos temas desenvolvidos pela tecnologia da realidade virtual.
A literalidade do texto escrito exige ser quebrada. A “verdade” da experiência do exercitante não se encontra na página escrita, mas no efeito que produz. O “leitor” aparece, portanto, em uma posição de verdadeiro “autor” dos Exercícios que realiza. Nessa perspectiva, ler um livro só pode significar ler-se nele: cada um escreve seu texto pessoal, diria Roland Barthes.
É por isso que Inácio não se limita a contar histórias com a riqueza das imagens e da linguagem. Pelo contrário, resume-as em poucas palavras, ou seja, em três “pontos”, que abrem à visão pessoal. O leitor - como bem entendeu Italo Calvino em suas Lições Americanas - tem a tarefa de “pintar afrescos cheios de figuras nas paredes da sua mente, a partir de solicitações que a sua imaginação visual consegue extrair de um enunciado teológico ou de um lacônico versículo dos Evangelhos." A escrita de Inácio não tende a esgotar-se. É afiada, precisa, mas seca, enxuta, capaz mais de evocar do que definir e esgotar a possibilidade de imaginar.
O objetivo dos Exercícios não é produzir um conhecimento mais exato da história de Jesus, mas o envolvimento total do leitor naquela história. Assim, muito deve ser deixado à livre reconstrução criativa. E é assim que a experiência inaciana se torna um método que abre e habilita para a escrita criativa.
Marguerite Yourcenar entendeu isso perfeitamente, quando em se bloco de nota escreveu, a propósito da sua obra-prima Memórias de Adriano, ambientada no século II d.C.: “As regras do jogo: aprender tudo, ler tudo, informar-se de tudo e, ao mesmo tempo, aplicar os exercícios de Inácio de Loyola para o próprio fim”. Esse método se condensa na expressão: “Como se eu estivesse ali presente”. E de fato Yourcenar continua: “Perseguir a atualidade dos fatos, tentar dar àqueles rostos a mobilidade, a agilidade da coisa viva”. E também “eliminar ao máximo todas as ideias, os sentimentos que se acumularam, camada sobre camada, entre aqueles seres e nós”. A linguagem da narrativa é, nesse sentido, a linguagem da experiência direta.
Italo Calvino comentou de modo pertinente: “A ideia de que o Deus de Moisés não tolerasse ser representado numa imagem parece nunca ocorrer a Inácio de Loyola. Pelo contrário, dir-se-ia que reivindica para cada cristão o grandioso dom visionário de Dante e Michelangelo sem nem o freio que Dante se sente obrigado a colocar à sua imaginação figural diante das supremas visões celestes do Paraíso". Toda leitura assim é chamada a ser uma performance.
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A leitura é um exercício espiritual. Artigo de Antonio Spadaro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU