10 Outubro 2012
Dar um testemunho da caminhada do trabalho bíblico e das leituras populares da Bíblia que realizaram ao longo de 35 anos junto ao Centro de Estudos Bíblicos - CEBI. Com esse objetivo Francisco Orofino e Carlos Mesters entabularam um debate marcado pela riqueza de abordagens e por um humor delicado e calcado em experiências de sua vivência religiosa. A conversa aconteceu na tarde desta terça-feira, 09-10-2012, dentro da programação do Congresso Continental de Teologia, acolhido pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
A reportagem é de Márcia Junges.
A leitura popular da Bíblia é o uso dessa obra na animação dos movimentos populares, definiu Orofino. “Sem os movimentos populares não haveria leitura popular da Bíblia”, observou. Seu método primordial é a animação dos movimentos populares em suas diversas frentes de luta. Por isso, algo importante é colocar a Bíblia na mão do povo, algo que nunca houve na história da Igreja. A primeira grande meta das pastorais bíblicas antes do Concílio Vaticano II foi entregar a Bíblia às pessoas do povo.
“Se há uma coisa que Jesus nunca teve na vida dele foi uma Bíblia”, gracejou Orofino. Jesus nunca pôde ter uma Bíblia. Ter um livro era algo extremamente caro àquela época, e quando houve a chance das pessoas terem a Bíblia consigo, veio o Concílio de Trento, e com ele o medo de que a Palavra “caísse” na mão do povo. Com a vinda da imprensa essa realidade mudou.
Orofino recordou que, há tempos atrás, todos na Igreja Católica faziam catequese através de perguntas e respostas. Bastava decorar o catecismo para ganhar um santinho e fazer a primeira comunhão. Uma segunda característica era a divulgação da História Sagrada do Antigo e do Novo Testamento, de Bruno Heuser. Todos eram exortados a ler tal obra, relembra Orofino. Esse livro colocou na cabeça do povo uma coisa terrível: tudo que está na Bíblia é verdadeiro e histórico. Assim, as coisas ali escritas são verdadeiras porque são históricas.
No Brasil a partir dos anos 1950, chegou-se a conclusão de que era preciso colocar a Bíblia na mão do povo. Um desses visionários que apercebeu-se disso era João José Pedreira de Castro. Ele “pirateou” um texto em francês de um mosteiro beneditino da Bélgica e enviou essa tradução para a editora Vozes, que não aceitou publicá-la. Então, decidiu tentar a publicação com a editora dos claretianos. Surgia, assim, a Bíblia da Ave Maria. Ali há erros de tradução que são de ordem teológica, disse Orofino. Mesmo assim, até hoje, por ano, essa obra tem uma edição de 650 mil exemplares.
Fala aos sem voz
O que é a primeira coisa que o povo procura na Bíblia?, questionou Orofino. O preço, respondeu ele próprio. Então, uma Bíblia popular tem que ter preço acessível. Em segundo lugar, vem o tamanho da letra. Se for pequena demais, ninguém compra. A terceira coisa que as pessoas prestam atenção na Bíblia é o livro de Apocalipse. Então, alguns leitores se assustam e até desistem de ler. Então, era preciso desenvolver uma metodologia de leitura da Bíblia numa perspectiva pastoral.
A leitura popular da Bíblia também ajudou a contornar algo difícil na Igreja Católica, que era dar possibilidade de fala àquelas pessoas a quem a palavra sempre foi negada. Levar as pessoas a falar é muito difícil, e mais ainda a dar opinião e enfrentar um esquema por ausência de informação e formação. Por isso, acentua Orofino, é perceptível através deste Congresso que houve avanços no protagonismo dos leigos. Trata-se de perceber que o leigo vai, gradativamente, conquistando sua fala, se construindo e capacitando. Esse leigo instruído e capacitado, com a fonte da revelação na mão, pode chegar mesmo a dizer que o padre está, por vezes, errado.
Uma metodologia a ser revista
Francisco Orofino prosseguiu sua apresentação trazendo um elenco de questões que permitiram que a leitura popular da Bíblia abrisse o leque hermenêutico a partir dos trabalhos realizados pelo Centro de Estudos Bíblicos - CEBI.
1. A teologia da terra e o trabalho da CPT: Trata-se de um dos trabalhos mais visíveis no Brasil, basta ver a mobilização em torno do Novo Código Florestal, para citar apenas um dos temas mais recentes com o qual se envolveu.
2. Grupos de fé e política: A questão do estado e articulação de vários movimentos desde a queda do regime militar, as lutas pelos projetos da Constituição e a mobilização pelo impeachment de Collor são alguns dos acontecimentos nos quais esses grupos tiveram protagonismo. Houve momentos de vitórias, como a lei da ficha limpa, mas houve derrotas como o plebiscito do desarmamento.
3. Consciência indígena: Estabeleceram-se debates fundamentais e formadores sobretudo a partir da celebração dos 500 anos da chegada dos brancos e em episódios como Raposa Serra do Sol e a recuperação das terras dos pataxós.
4. Luta dos afrodescentens e teologia afro, luta das mulheres dos meios populares (Lei Maria da Penha)
5. Mobilização dos homossexuais: As grandes marchas de orgulho gay mobilizam parcela significativa de nossa sociedade, mesmo em locais onde essa atitude é um risco de vida.
6. Frentes ecológicas
7. Forum Social Mundial
8. Capacidade de articulação das ONGs
9. Avanços da ciência, principalmente a questão da informática e biotecnologia, além da física quântica.
Apesar de tudo isso que vivenciamos ao longo de 35 anos de lutas, percebemos que, para uma grande maioria de grupos da base, a pauta dos anos 70 e 80 continua de pé ainda anseia por trabalho, saúde, transporte, educação, moradia e alimentação. A pauta de reivindicações teve seu leque ampliado, mas as questões fundamentais permanecem as mesmas, frisou Orofino. É preciso, por isso, rever a metodologia de discussão.
A besta neoliberal
Referindo-se ao último livro da Bíblia, o Apocalipse, Orofino mencionou a vinda da primeira besta, oriunda do mar, este sinônimo de abismo no livro sagrado. A primeira besta que emerge das águas é o estado de segurança nacional, que por vezes dá suas caras até hoje em situações de opressão política nos países do Terceiro Mundo.
A segunda besta não vem do mar, mas da terra, está dentro da comunidade, disfarçada de cordeiro. Mas quando ela fala, a voz é do dragão. “Essa besta é poderosa porque desagrega e enfeitiça, uma vez que é capaz de criar maravilhas. Com ela se pode comprar e vender. Essa besta marca a todos: escravos, livres, ricos, pobres, pequenos, grandes. Todos querem a marca da besta para poder comprar e vender. Talvez seja o tema mais discutido desse Congresso Continental de Teologia: trata-se do liberalismo”. Sua meta, continua Orofino, é produzir o consumidor, torná-lo individualizado por uma lógica perversa que incute o “ter” como central. Por isso, a morte está presente dentro de muitas casas e famílias. “A leitura popular da Bíblia conseguiu lutar contra a primeira besta, mas ante a segunda ainda não estamos seguros”.
Sob uma nova luz
Carlos Mesters assumiu sua parte do debate recuperando a importância do documento Dei Verbum, conectando-o a uma leitura popular da Bíblia. Quando estava sendo preparado o Concílio Vaticano II, Cardeal Otaviani organizou um documento sobre a revelação divina, no sentido do que Deus falou no passado. Tal documento foi iniciado no Concílio, já na primeira sessão, e foi um dos últimos a ser concluído. Isso provocou uma tempestade na Igreja.
As pessoas não leem a Bíblia para saber do passado, mas para entender como Deus apela para sua vida. Por isso a leitura orante é fundamental. “Deus está em tudo, assim como seu espírito. E a Bíblia nos ajuda a descobrir isso”, complementou Mesters.
Outro tópico que provocou reação na plateia foi a afirmação de que a Bíblia não é um catálogo de verdades. Trata-se da revelação da graça e misericórdia de Deus. “Tudo que a Bíblia fala se materializa pelo rosto das pessoas. Nasce, assim, uma nova experiência de Deus na vida cotidiana. Nasce uma experiência que não se expressa em palavras”. E Mesters completa: “É esse critério que irá determinar a leitura popular e que menos aparece em suas explicitações e interpretações. Isso porque os olhos podem ver tudo, menos o próprio olho. Por isso, deve-se ler a Bíblia com uma nova luz”.
Palavras ambulantes de Deus
Alguns pontos do documento Dei Verbum que aparecem com força na leitura popular foram assinalados por Carlos Mesters:
1. A Bíblia é palavra de Deus. Na Bíblia a pessoa encontra a sua memória, palavras que são sua constituição. Revelar é tirar o véu. O Apocalipse significa revelação. Deus está nos fatos, e nós não enxergamos. O missionário não leva a doutrina, ele tira os véus da realidade. A vida ajuda a ler a Bíblia, e a Bíblia ajuda a entender a vida. Somos palavras ambulantes de Deus, e tudo é expressão da palavra de Deus, e descobrir isso é a revelação. Deus escreveu dois livros: a vida e a Bíblia. Essa é uma visão muito antiga que está reaparecendo nas Comunidades Eclesiais de Base - CEBs.
2. A Bíblia é a palavra de Deus em linguagem humana. Isso foi dito desde Pio XII e repetido no Dei Verbum. Isolar o texto de seu contexto faz a Bíblia virar um “tijolo”, podendo até matar se atingir alguém na cabeça. As palavras não devem ser tomadas ao pé da letra, porque senão vira fundamentalismo. “E até porque letra não tem pé”, ironizou.
3. A Bíblia não é um catálogo de verdades. Deus se comunica a si mesmo. Esse é um dos pontos mais importantes, e a visão que o povo vai tendo sobre Deus, trocando ideias de si em círculos bíblicos. Precisamos perceber que Deus está conosco.
4. Jesus liga o Antigo e o Novo Testamento.
5. A Bíblia é livro da igreja, e através dela nos filiamos a uma grande tradição. A igreja nasce do chão, do povo, e não de cima. A leitura fundamentalista agrada a interesses opressores bastante particulares. A Bíblia deve ser ligada à vida, no contexto concreto do povo.
Mesters finalizou sua exposição apresentando aspectos da leitura orante e suas interpretações: “a palavra deve poder circular”, mencionou. Nas pequenas comunidades esse trabalho refaz o relacionamento humano na base. Se tentarmos esconder as divisões, aí esquecemos de consertar os relacionamentos em sua forma mais primordial. “Isso equivale a colocar peruca num careca: não faz cabelo nascer”.
Quem é Francisco Orofino?
Francisco Orofino é biblista e educador popular. Assessora grupos populares e comunidades de base nos municípios da Baixada Fluminense. É autor de vários livros e leciona em Institutos de Teologia voltados para a formação de leigos. Fez doutorado em Teologia Bíblica na PUC-Rio (2000). É professor de Teologia Bíblica no Instituto Paulo VI, na diocese de Nova Iguaçu, RJ.
Quem é Carlos Mesters?
Carlos Mesters é frade Carmelita, doutor em Teologia Bíblica. É natural da Holanda e ligado à caminhada das Comunidades Eclesiais de Base, ajudou a criar o CEBI (Centro de Estudos Bíblicos). Escreveu, entre outros, Esperança de um povo que luta (São Paulo: Paulus, 1983), Círculos bíblicos (São Paulo: Paulus, 2001), Paulo apóstolo: um trabalhador que anuncia o evangelho (São Paulo: Paulus, 2002), Bíblia: livro feito em mutirão (São Paulo: Paulus, 2002), e Por trás das palavras (Petrópolis: Vozes, 2003). Mesters assessorou de um dos bispos brasileiros na XII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, que ocorreu de 5 a 26 de outubro de 2008, no Vaticano.
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