17 Fevereiro 2024
"Devemos ter cuidado para não nos intoxicarmos já agora com racismos, egoísmos e preconceitos diversos que degradam mentes e corações, preparando-os para o conflito. (...) Contra qualquer resignação, é sempre tempo de procurar uma 'paz criativa', como pede o Papa Francisco, antes que aconteça o irreparável".
O comentário é de Mario Giro, professor de Relações Internacionais na Universidade para Estrangeiros de Perúgia, na Itália, em artigo publicado por Domani, 14-02-2024. A tradução de Luisa Rabolini.
“Uma guerra limpa não existe e nunca existiu” afirma o teólogo Severino Dianich que atravessou o drama da Ístria durante e após a última guerra, incluindo os foibe e a fuga dos julianos-dálmatas. “Não consigo conter a minha indignação – acrescenta – quando ouço pessoas deplorando as bestiais crueldades que o ‘inimigo’ está cometendo. Na minha opinião, uma forma ignóbil de propagar a ideia de que exista uma guerra aceitável”.
A guerra é sempre uma bestialidade que deturpa quem a trava, mesmo se agredido ou em estado de legítima defesa. Como se pode justificá-la? Essa é a preocupação de muitos humanistas, leigos e crentes. A guerra como "meio inaceitável" tornou-se uma constante no magistério papal desde Bento XV, que criticou o “massacre inútil” da Primeira Guerra Mundial e não foi compreendido pelas igrejas católicas nacionais de sua época.
Para a Igreja de Roma todo conflito assume a característica de uma guerra civil: irmãos que matam irmãos. O valor da vida e da pessoa é considerado superior até de valores civis respeitáveis, como o amor à pátria ou à proteção da nação. É uma questão que levantaram e continuam a levantar os católicos diante dos conflitos de agressão ou legítima defesa.
Por outro lado, e de uma forma completamente diferente, é a mesma tensão que o judaísmo democrático está vivendo hoje: como permanecer ligados à identidade judaica de Israel sem trair os ideais democráticos e pluralistas e sem optar pelo Estado étnico? Na Accademia dei Lincei o Cardeal Pietro Parolin declarou com autoridade que para a Santa Sé: “A guerra não é mais um instrumento lícito de ação internacional".
Uma afirmação nem sempre aceita dentro da Igreja Católica (e menos ainda nas igrejas orientais), mas que está progressivamente abrindo espaço na consciência de muitos: a guerra não é lícita porque representa uma engrenagem obsoleta e inútil que agrava os problemas em vez de resolvê-los. Como resolver esse dilema resistindo à tentação das paixões?
Edgar Morin fala de “resistência do espírito”. “Saber resistir – escreve – à intimidação de todas as mentiras e ao contágio de todas as embriaguezes coletivas. Não ceder ao delírio da responsabilidade coletiva de um povo ou de uma etnia”. O escritor israelense Etgar Keret faz-lhe eco: “Nenhuma das nossas batalhas leva a um resultado decisivo: as guerras não se vencem mais. E nos encontramos novamente todos perdedores”.
O que vemos com os atuais conflitos na Ucrânia ou em Gaza (mas também em África) é um total esvaziamento do espírito humano quando é tomado pelas emoções belicitas, uma excitação que turva a mente e enfraquece o pensamento.
Consequentemente, não parece haver uma solução razoável para os conflitos e, no final, todos assumem o vitimismo como linguagem, dizendo sempre a mesma coisa: “Foi o inimigo que quis a guerra, ele é o único responsável, nós fomos forçados”. Tanto o agressor quanto o agredido afirmam isso, numa contínua troca de papéis permitida pelo enevoamento da razão e na mais total confusão dos valores humanos.
Como escreveu Pavel Florenskij em 1937: “No homem há uma carga de fúria, de ira, de instintos destrutivos, de ódio e raiva, e essa carga tende a se derramar sobre as pessoas ao redor. Nas guerras o homem se deixa dominar pela fúria pela pura brutalidade”. Somente tocando pessoalmente a carne humana ensanguentada pela crueldade do combate é possível entender que o sofrimento não tem nacionalidade, mas a essa altura já é tarde demais. Significativo é o testemunho de uma ex-combatente da Grande Guerra Patriótica prestada a Svetlana Aleksievic, a Vencedora do Prémio Nobel da Bielorrússia que escreveu muito sobre a guerra: “Eu também tive a minha própria guerra. Eu percorri um longo caminho na companhia de minhas heroínas. Assim como elas, por muito tempo não quis acreditar que a nossa ‘Vitória’ tinha duas faces, uma de grande beleza e a outra deturpada pelas cicatrizes de um horror insuportável”.
“Depois da guerra, a vida humana perdeu todo valor” conta outra testemunha: a alma desfigurada de um povo esmagado pelo conflito tem grande dificuldade para se recuperar, como se estivesse poluída por um veneno que não passa. Toda guerra deixa o ar contaminado por uma epidemia de inimizade.
Devemos ter cuidado para não nos intoxicarmos já agora com racismos, egoísmos e preconceitos diversos que degradam mentes e corações, preparando-os para o conflito. É por isso que precisamos de uma retomada do espírito europeu das origens que parece estar agora enfraquecido: temos de estar conscientes de quanto isso é necessário e indispensável se quisermos garantir um futuro de paz para a próxima geração.
Contra qualquer resignação, é sempre tempo de procurar uma “paz criativa”, como pede o Papa Francisco, antes que aconteça o irreparável.
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Da Ucrânia a Gaza. Não existe guerra limpa. Artigo de Mario Giro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU