24 Janeiro 2024
"Neste momento, o quadro está em aberto e as possibilidades são múltiplas, mas quase todas as alternativas apontam para a continuação dos bombardeiro e do 'genocídio aéreo' da população palestina da Faixa de Gaza", escreve José Luís Fiori, professor emérito de economia política internacional da UFRJ; coordenador do GP da UFRJ/CNPq “O poder global e a geopolítica do Capitalismo”; e do Laboratório de “Ética e Poder Global”; Publicou recentemente Sobre a Guerra, 2018, A Síndrome de Babel, 2020; e, Sobre a Paz, 2021, todos pela Editora Vozes, Petrópolis, em artigo publicado por ExtraClasse, 23-01-2024.
Depois de três meses de bombardeio continuado da Faixa de Gaza pelas tropas de Israel, os números redondos são assustadores: 24.210 palestinos mortos, 7 mil desaparecidos, 60 mil feridos ou mutilados, e cerca de 1,5 milhão de desabrigados, sendo 80% dos mortos e feridos, mulheres e crianças. E mais assustador ainda é a decisão do governo de Benjamin Netanyahu de seguir em frente com esse bombardeio implacável, até a eliminação completa do Hamas. Existem, no entanto, vários pontos nesta narrativa que não são consistentes e não parecem fechar.
O primeiro e mais importante é a desproporção entre a destruição indiscriminada e massiva de Gaza, que está sendo levada a cabo, e o objetivo de acabar com o Hamas. Mais ainda quando as autoridades israelitas sabem que é tecnicamente impossível acabar com o movimento palestino, inclusive porque a selvageria dos bombardeios tem aumentado o apoio da população e a simpatia da juventude de Gaza pela sua organização guerrilheira.
O segundo ponto é que as autoridades israelenses já devem ter percebido que o apoio da comunidade internacional que simpatizou inicialmente com sua causa é cada vez menor, e que o isolamento de Israel é cada vez maior, o que pode vir a ser um problema sério para sua própria sobrevivência.
Neste sentido, a denúncia de Israel, pela África do Sul, à Corte Internacional de Haia, pelo crime de “genocídio do povo palestino”, está repercutindo e sintetizando, neste momento, um sentimento cada vez mais generalizado de toda a Humanidade.
Basta acompanhar as sucessivas votações do Conselho de Segurança e da Assembleia Geral das Nações Unidas, sobre o cessar-fogo em Gaza, ou sobre os direitos palestinos, para avaliar o quão isolados se encontram Israel e seu principal avalista, os Estados Unidos.
Chama atenção, por exemplo, a última votação da Assembleia Geral, no dia 19 de dezembro de 2023, de uma moção em defesa do “direito de autodeterminação do povo palestino”, cujo resultado foi aplastrante: 172 votos a favor, 10 abstenções e 4 votos contra – exatamente de Israel, Nauru, Micronésia e Estados Unidos. A própria posição dos Estados Unidos, neste sentido, está ficando cada vez mais insustentável do ponto de vista da “ordem mundial baseada em regras” defendida pelos norte-americanos.
Quando se olha para este quadro, a primeira impressão que se tem é de uma vingança irracional, movida pelo ódio e pelo fanatismo religioso. Mas é difícil imaginar que esta seja também a motivação dos Estados Unidos e de alguns países europeus que vêm apoiando a estratégia de extermínio de Gaza.
Por isso mesmo, um número cada vez maior de analistas internacionais vem sustentando a hipótese de que este conflito tenha sido induzido para facilitar a realização de objetivos que vão muito além da própria Faixa de Gaza.
Daí, talvez, a comparação que costuma fazer o primeiro-ministro israelense entre o 8 de outubro de 2023 e o 11 de setembro de 2001. Nas duas ocasiões, algum tipo de conspiração dos homens ou do acaso teria permitido levar à frente uma reação e uma estratégia que já vinham sendo concebidas e preparadas há muito tempo.
No caso dos Estados Unidos, o objetivo seria a expansão do seu poder global através de uma guerra universal ao terrorismo liderada por eles próprios.
E no caso do 8 de outubro, o objetivo israelense seria reconfigurar a geopolítica do Oriente Médio, com a destruição do Hezbollah e o ataque contra as capacidades militares e atômicas do Irã. Um ataque que já vem sendo preparado há muitos anos, mas que até hoje ainda não contou com o apoio dos Estados Unidos.
Se isto não for inteiramente verdadeiro, pelo menos faz mais sentido do que acreditar que a destruição de Gaza esteja sendo feita por obra apenas de uma vingança, ou como maneira de acabar com o Hamas.
Quando se pensa assim, inclusive, consegue-se entender melhor por que foi ordenada a saída recente de alguns batalhões israelenses da Faixa de Gaza, que estariam sendo deslocados, de fato, para prováveis novas frentes de luta.
Como também faria mais sentido a sucessão de atentados e assassinatos individuais, nos últimos dias, de alguns líderes importantes do Hamas e do Hezbollah, cometidos de forma concentrada e sucessiva, no Líbano, na Síria, no Iraque e até mesmo dentro do território do Irã.
Atentados cometidos de forma simultânea ao deslocamento das tropas israelenses de Gaza, e com uma série de entrevistas extremamente provocadoras concedidas pelos ministros mais à direita do governo Netanyahu, propondo a expulsão dos palestinos da sua própria terra.
À primeira vista, poderiam parecer atos separados e desconectados, mas a simultaneidade dos fatos e a sucessão das declarações das autoridades judaicas, e dos ataques e lugares escolhidos, sugerem uma forte “afinidade eletiva” com a hipótese de uma “provocação intencional” em busca de uma resposta violenta que poderia mobilizar o apoio dos Estados Unidos para a ampliação da guerra, com sua permissão a um ataque massivo israelense contra o Líbano e o Irã.
De qualquer maneira, se esta hipótese for verdadeira e este tiver sido o objetivo último de Benjamin Netanyahu, parece que algo inesperado surgiu no caminho: a queda da popularidade do presidente norte-americano, Joe Biden, que pretende se reeleger em 2024 e percebe que está perdendo o apoio de setores significativos de seu eleitorado, graças ao seu posicionamento incondicional ao lado de Israel.
Assim mesmo, tudo indica que o governo israelense já está refazendo seus cálculos, ao compreender que a continuação desta guerra de extermínio pode ajudar a eleição de Donald Trump, e a eleição de Donald Trump poderia ser a “tábua de salvação” de Netanyahu e de seu governo, e talvez inclusive do seu projeto – há tanto tempo acalentado – de atacar e destruir a capacidade militar do Irã.
Um governo, aliás, que já estava sob a ameaça de destituição antes de 8 de outubro de 2023, quando ocorreu o “incompreensível apagão”’ do sistema de informação de Israel, considerado um dos melhores sistemas de informação do mundo.
De qualquer forma, seja qual for a interpretação correta dos acontecimentos, uma coisa é certa: neste momento, o quadro está em aberto e as possibilidades são múltiplas, mas quase todas as alternativas apontam para a continuação dos bombardeiro e do “genocídio aéreo" da população palestina da Faixa de Gaza. A menos que os Estados Unidos decidam derrubar o governo de Benjamin Netanyahu.
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O “massacre de Gaza”: uma hipótese muito provável - Instituto Humanitas Unisinos - IHU