01 Dezembro 2023
A vida de Nurit Peled-Elhanan está atravessada por alguns dos traços mais importantes da história de Israel. Neta de um dos signatários, em 1948, da declaração de independência israelense – Avraham Kastnelson – e filha de um general histórico que guinou para posições pacifistas – Mattiyahu Peled –, dedicou sua vida ao ensino universitário e é uma das vozes mais respeitadas em seu país na análise da linguagem da educação na infância.
Internacionalmente, é conhecida por suas pesquisas sobre a presença do racismo e a propaganda nos livros didáticos e no sistema educacional israelense. Prêmio Sakharov para a Liberdade de Pensamento, concedido pelo Parlamento Europeu em 2011, entre os seus livros traduzidos para vários idiomas, destacam-se A Palestina nos livros didáticos israelenses e A educação do Holocausto e as semióticas da alteridade nos livros didáticos israelenses.
Seu pai, Mattiyahu Peled, foi amigo do primeiro-ministro Yitzhak Rabin (assassinado em 1995 por um judeu de extrema-direita) e fundador, juntamente com o deputado e jornalista Uri Avnery, do Conselho para a Paz pelo diálogo e contra a ocupação israelense. Foi um dos primeiros a se reunir secretamente com representantes palestinos, primeiro em Paris e, posteriormente, com o próprio Yasser Arafat, na Tunísia.
Há vinte e cinco anos, um atentado do Hamas em Jerusalém matou a filha pequena de Nurit Peled, de 13 anos de idade. Ela prefere não falar a esse respeito na entrevista. Há um mês, foi temporariamente suspensa do cargo de professora da universidade David Yellen College, acusada pelo presidente daquela instituição de “justificar o ato cruel” do Hamas, no último 7 de outubro, por citar os filósofos Jean-Paul Sartre e Frantz Fanon em um chat privado de professores no WhatsApp, deste modo:
“‘Depois de tantos anos em que os pescoços dos ocupados foram asfixiados sob o pé de ferro e, de repente, têm a oportunidade de levantar os olhos, que tipo de olhar esperava ver ali?’ Vimos esse olhar”.
Após o anúncio de sua suspensão, o advogado de Nurit Peled, Michael Sfard, publicou um artigo no jornal The New York Times denunciando “uma repressão sem precedentes às vozes dissidentes que criticam a forma como Israel está travando sua guerra”.
Em uma conversa com El Diario, ela mesma explica: “Sartre usou essa citação para falar dos escravos e [o filósofo e ativista] Frantz Fanon aborda essa ideia em seu livro Pele negra, máscaras brancas. Recorreu a ela para falar dos negros oprimidos, eu a apliquei aos palestinos ocupados. Esse olhar que menciona é o que vimos no dia 7 de outubro. As rebeliões podem ser muito cruéis, sabemos disso pela história. Muitas vezes, as pessoas que sofrem a opressão por muito tempo, quando se rebelam, não têm piedade”.
A entrevista é de Olga Rodríguez, publicada por El Diario, 27-11-2023. A tradução é do Cepat.
Como viveu os atentados do dia 7 de outubro?
Tenho familiares em um dos kibutzim. Liguei para minha prima e conversamos por muito tempo, até que me disse que precisava desligar porque se ouvia tiros perto de sua casa. Estávamos trocando mensagens de texto o dia todo. Permaneceram lá cerca de trinta horas, mas, em seu caso, não houve perigo porque os terroristas foram capturados antes de chegarem à sua casa. Uma casa perto deles foi completamente destruída.
Quais foram os seus primeiros pensamentos?
Não tive medo por mim, mas, sim, pelo que estava acontecendo. Primeiro, porque o Estado de Israel abandonou intencionalmente o sul. Decidiram diminuir significativamente a presença do Exército nessa região, que depois foi atacada pelo Hamas. Há algum tempo, além disso, retiraram armas das unidades de guarda dos kibutzim. As medidas adotadas pelo Governo favoreceram para que isto ocorresse.
Após estes ataques do Hamas, qual é a atmosfera atual em Israel?
Há pessoas pedindo vingança, a maioria guinou para a direita, muitos dizem que é preciso matar todos os palestinos, mesmo pessoas de esquerda. Chamam todos de nazistas. Fingem ser os judeus inocentes e indefesos da Alemanha nazista, atacados por inimigos dos judeus sem motivo algum. Este é o argumento contínuo, utilizado pelo próprio Governo, é claro.
Está havendo casos de punições em instituições educacionais israelenses, você mesma já passou por isso.
Sim, escrevi em um grupo fechado de WhatsApp composto por professores da universidade onde dou aulas, quando alguns começaram a falar de nazistas. Eu intervim dizendo que isso não tem nada a ver com o nazismo, porque o nazismo é uma ideologia de um Estado com um Exército que quer eliminar e exterminar as minorias que vivem sob o seu domínio. Aqui, não é o caso. Não vivemos sob o governo do Hamas.
Isto se parece muito mais com rebeliões, revoltas de escravos e de povos ocupados, como casos do passado na Argélia e no Brasil. Podemos nos lembrar de muitos lugares onde as revoltas foram realmente muito cruéis, ferozes, terríveis. Aqui, há uma revolta de pessoas que foram oprimidas por muito tempo. Foi isso que manifestei. Depois disso, puniram-me.
Agora, as pessoas têm medo de falar. Muitos professores, especialmente os árabes, são punidos ou expulsos por dizerem determinadas coisas, inclusive por rezarem. É um ambiente muito tenso que nunca tínhamos vivido antes.
Agora, qual é a sua situação na universidade? Permanece suspensa?
Não. Escrevi uma carta dura ao reitor da universidade, assim como meu advogado, especializado em direitos civis. O reitor respondeu com uma carta com uma severa admoestação ao meu processo, repetindo suas acusações, dizendo que eu apoio organizações terroristas. Então, respondi-lhe informando que não voltarei a dar aula até que essa carta seja destruída.
Aqui, alguém vazava a conversa do chat. Houve um esforço de distorção de minhas palavras por parte do reitor da universidade e houve um Ministério da Educação pedindo nomes, nomes, nomes. Felizmente, vários colegas professores me apoiaram, queixaram-se e, agora, estão criando uma comissão de ética, porque começaram a ter medo diante de tais reações. Este não é o Israel de antes. Para os árabes, sim. No entanto, para os judeus é a primeira vez que as autoridades se comportam desse modo.
O governo israelense gaba-se de ser uma democracia...
Tínhamos uma total liberdade de expressão, nós, judeus. Não era utilizada adequadamente porque há muita autocensura, entre os jornalistas também. Contudo, para os palestinos isto nunca foi uma democracia.
Pesquisou e escreveu sobre a educação nas escolas e universidades israelenses.
A educação em Israel é terrivelmente racista. Todo discurso é. A abordagem é a seguinte: Você é judeu? Sim ou não. Se é, é judeu etíope, sefardita ou asquenazita? Isto é acompanhado por uma educação sobre o Holocausto muito traumatizante e agressiva, a partir dos três anos de idade, para que as crianças vivam esse trauma e acreditem que há outro holocausto ao virar da esquina, que será perpetrado pelos árabes, em vez dos alemães. Os livros escolares, de fato, ressaltam isto o tempo todo.
Desse modo, cria-se um nacionalismo que desemboca em muitos adolescentes dispostos a matar qualquer palestino, de qualquer idade, porque acreditam que são os novos nazistas que vão nos exterminar. Esta educação pode ser definida como abuso infantil, porque educa as crianças no trauma perpétuo. No Dia do Holocausto, com três anos de idade, são expostos às fotografias mais horríveis e horripilantes, e depois têm pesadelos, fazem xixi na cama. Chegam a acreditar que qualquer um que não seja judeu é um nazista em potencial.
Esta educação explica o fato de existirem tantas pessoas que dizem “matemos a todos”, porque têm medo de qualquer um, de todos.
Antes do dia 7 de outubro e depois, houve protestos contra Netanyahu por diferentes razões.
A maioria das manifestações foram contra os seus planos de modificar completamente o sistema judicial, como se isto fosse uma ditadura. Depois do 7 de outubro, as pessoas querem voltar às suas vidas de antes, ignorando os palestinos, ignorando a ocupação e a pobreza. No entanto, alguns estão começando a perceber que estas são questões que não podem ser ignoradas. Agora, os protestos se concentram em pedir para que ele traga os sequestrados de volta.
Considera que pode aumentar a porcentagem de pessoas em seu país contra a via militar e a ocupação?
No momento não, não acredito. Há uma lavagem cerebral na sociedade, através da educação e a propaganda. Não há muitas pessoas que saibam algo sobre o que está acontecendo nos territórios ocupados, tampouco estão interessadas. E têm medo, vivem com medo.
Você defende a educação como uma forma de mudar isso no futuro.
Ninguém ensina as crianças e adolescentes na escola a negar, são ensinados a respeitar a autoridade. No dia dos atentados do Hamas, como o Exército não estava lá, muitos pais e avós pegaram suas armas e foram para o sul para salvar pessoas. De fato, lutaram contra o Hamas. No entanto, essas mesmas pessoas não vão à casa de Netanyahu para protestar. De alguma forma, são muito obedientes.
Os jovens deveriam ser ensinados a não confiar, a questionar a autoridade, a pensar por si mesmos, mas isto não acontece. Na realidade, isso não se faz em qualquer lugar do mundo, porque as escolas acabam funcionando como ferramentas para produzir cidadãos leais ao Estado.
Em sua avaliação, qual será o futuro de Gaza e dos palestinos de lá?
A situação deles já é pior do que antes do dia 7 de outubro. É terrível, mas este Governo de Israel ainda está governando e o povo não faz nada para derrubá-lo. É um Governo de criminosos, fundamentalistas e racistas. E não vejo ninguém os expulsando.
Mesmo se pensarmos em quem são os políticos que podem substituí-los, vemos que falam a mesma língua. Por exemplo, Benny Gantz, um dos líderes da oposição [que liderou uma ofensiva militar contra Gaza em 2014], vangloriou-se, em 2019, de ter levado Gaza “à Idade da Pedra”. Esse foi o seu discurso de campanha, era assim que esperava ser eleito.
Penso que existe um objetivo: matar os palestinos e tomar o território. Tudo o que puderem. Muitos já falam em estabelecer colônias em Gaza.
Como analisa a reação da comunidade internacional?
Como sempre, não fazem nada. Na Europa e nos Estados Unidos, muitas empresas, muitas indústrias, beneficiam-se com esta guerra e a ocupação. Não possuem qualquer interesse em deter isto. Só dizem palavras. E há muito racismo. Além disso, existe a culpa diante dos judeus e o medo de serem chamados de antissemitas.
Se você fosse uma líder política, quais passos indicaria?
Acabar com a ocupação. Imediatamente. Que todos saiam de lá, parem de oprimir. Que se afastem. Se os palestinos querem uma democracia laica, como muitos deles dizem, penso que esse caminho seria o melhor. Um Estado para todos.
Sua família é bastante conhecida em Israel. Como é ser filha de um general que se converteu em ativista pela paz?
Meu pai era muito grande. Foi o primeiro a dar esse passo na luta pela paz. Disfarçou-se de mulher para se encontrar com Arafat. Eu conheci o homem que fez o seu disfarce em Paris.
Meu avô também era um homem de esquerda. Era membro de uma organização muito clandestina de intelectuais alemães chamada Pacto de Paz, que defendia um Estado binacional. Deveria ter sido o ministro da Saúde, foi no governo pré-Israel, mas foi punido pelo primeiro-ministro Ben-Gurion e enviado como embaixador para a Suécia, até que morreu.
Quanto ao meu pai, tudo o que fez pela Palestina fez por Israel, porque acreditava que o melhor para nós seria a paz, com um Estado palestino. Aprendeu árabe, estudou a cultura árabe, porque acreditava que se nos conhecermos, podemos viver juntos. Recebeu ameaças, pagou um preço alto por isso, mas nunca se arrependeu.
Como é viver com um ponto de vista minoritário em Israel?
Não é fácil. Sou respeitada pela minha atuação como professora e especialista em linguagem da educação na infância, sou considerada uma das principais pesquisadoras nesse campo. Para mim, meus alunos são muito importantes: aprendem, e uma vez que você aprende não pode desaprender. Faço isso há mais de 30 anos. Todo mundo sabe quem sou aqui, como penso.
Agora, meus livros sobre racismo são completamente ignorados aqui. Foram traduzidos para seis idiomas, são vendidos em muitos países, são usados em universidades estrangeiras, também nas universidades palestinas, onde não me convidariam para falar por causa da campanha BDS [boicote a Israel], mas, sim, estudam o meu livro. No entanto, aqui, nenhuma menção. É o lado que se ignora em meu país, não se oferece quando publico um livro. Contudo, eu faço o que acredito que devo fazer.
O que as sociedades civis do mundo podem fazer diante do que está acontecendo em Israel e na Palestina?
Apoiar. A causa palestina está bastante silenciada em toda a Europa e em todo o mundo ocidental. É importante conhecer a história da Palestina e das pessoas que apoiam os palestinos aqui em Israel. Isto é muito importante. E não se deixar levar pela narrativa do vitimismo: os judeus não são vítimas aqui. Aqui, há um Estado ocupante e um povo ocupado. Ser contra esta ocupação não é ser antissemita.
Antes, você falava do racismo dentro de Israel, para além daquele que existe contra os palestinos.
Aqui, os judeus etíopes praticamente são forçados a se reconverter ao judaísmo, incluindo a circuncisão, mesmo aos setenta anos. Também são forçados a trocar seu nome por um judeu. Ninguém fala a esse respeito. Aqui, há judeus que não podem praticar a sua própria cultura, seus costumes religiosos. Isto precisa ser conhecido. Este tipo de regime, que não é apenas um regime colonial de colonos, mas também um regime de apartheid, é muito racista.
É uma etnocracia em que uma etnia, um grupo muito pequeno de judeus, domina todos os outros grupos, os árabes, mas também os outros judeus. Os judeus árabes foram trazidos para Israel para substituírem os judeus exterminados na Europa, porque era necessária uma população judaica para ter uma maioria no Estado. Foram trazidos por motivos meramente demográficos, assim como, depois, os etíopes. Ninguém os queria como são. Então, tiveram que renunciar a sua cultura, sua língua, sua música, seus costumes religiosos, seus nomes, tudo. E o tratamento que recebem é racista.
Existem diferentes níveis, por assim dizer...
Os cidadãos palestinos são discriminados pela lei. Existem cerca de 65 leis racistas em Israel contra cidadãos palestinos. Os judeus etíopes, que vivem no que se chama de colonialismo interno, são discriminados socialmente. A polícia os maltrata. Por causa da cor da pele. Existem níveis. Depois, há os judeus árabes, que estão aqui há quatro gerações e ainda são discriminados. As pessoas deveriam saber disso.
O racismo não para nos checkpoints israelenses. Continua em nossa sociedade, na sociedade israelense. Essa pretensão de Israel de se apresentar como um país ocidental, o que significa? Não somos ocidentais em nada. Aqui, desenvolveu-se uma cultura de poder, racismo e crueldade em nome do judaísmo. Contudo, isto não é o judaísmo, de modo algum. Isto deveria ser conhecido e deveriam parar de desumanizar os palestinos, que são a parte frágil da equação.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Em Israel, há uma lavagem cerebral na sociedade, através da educação e da propaganda”. Entrevista com Nurit Peled-Elhanan - Instituto Humanitas Unisinos - IHU