10 Outubro 2023
Em 2001, Gilles Luneau (França, 73 anos) estava na Bélgica se manifestando contra a Organização Mundial do Comércio quando percebeu um excesso de negatividade, um desgosto que sufocava a vontade de imaginar novos horizontes. “Tudo era muito anti: antiglobalização, anticapitalismo...”, recorda.
Luneau pensou que a globalização havia começado – “para marcar uma data” – com as viagens de Marco Polo e que não era má em si. Começou a refletir sobre a necessidade de um termo que evocasse alternativa e não rejeição, o sonho de outro mundo em vez de mera oposição à realidade imperante. Foi então que, diz, cunhou a palavra “altermundialismo” para classificar diversas propostas que convergem em um rio comum, em um movimento planetário na contracorrente de um “mercado todo-poderoso que regula a sociedade acima dos Estados”.
Especialista em sistemas alimentares e agroecologia, Luneau publicou vários livros com José Bové, o camponês e sindicalista francês famoso por seu ativismo incendiário, incluindo a destruição, em 1999, de um McDonald’s na cidade francesa de Millau.
Em meados de setembro, Luneau participou da feira de queijos artesanais Cheese, organizada pelo Slow Food Internacional, a cada dois anos, em Bra (Itália).
A entrevista é de Rodrigo Santodomingo, publicada por El País, 09-10-2023. A tradução é do Cepat.
Autores como José Bové e você foram acusados de querer limitar a exportação de produtos alimentares da África e da América Latina.
Não tenho nada contra que se exporte ou importe. Apenas sou a favor de um comércio internacional equitativo, em que os produtores controlem o processo de transformação de seus produtos. Pensemos no café e no cacau, dois produtos tropicais com passado colonial, por assim dizer. Os países produtores quase não intervêm na transformação, então, mal obtêm uma ínfima parte de seus enormes lucros.
Muitas vezes, os consumidores da agricultura orgânica são ridicularizados como elitistas que só se preocupam com a saúde própria e que compram produtos caros e inacessíveis para a maioria.
Fomentar práticas agrícolas que respeitem o meio ambiente e a saúde – dos agricultores, consumidores e o restante dos seres vivos – não deveria ser exclusivo das classes privilegiadas. São cada vez mais os agricultores que optam por dinâmicas próximas à vida natural.
Contudo, não devemos isolar a mudança nas formas de produção da mudança nos hábitos de consumo. Nós nos acostumamos a comer de modo industrial: todos a mesma coisa, em qualquer época do ano. Antes, comia-se produtos da estação e a dieta se adaptava ao que dava no território.
As dietas locais não são idealizadas como se fossem ideais por si? Existem regiões muito férteis do mundo, com uma grande variedade de ofertas alimentares. Outras produzem uma monotonia pouco saudável.
Seria muito perigoso idealizar o passado das dietas e das condições de vida em geral. Meus avós não tinham água corrente e comiam muito pão com manteiga [risos]. Melhoramos consideravelmente. O problema é que passamos de pequenos ecossistemas locais, que absolutamente não eram perfeitos, a um sistema agroalimentar quase totalmente industrial. E estamos pagando as consequências em termos de impacto climático e perda de biodiversidade e saúde.
Dispomos de prova científica suficiente de que não podemos seguir por esse caminho. Nós, defensores da agroecologia, propomos outro caminho: voltar às dinâmicas dos seres vivos para inventar o futuro. E fazer isto com humildade, não como fizemos desde os anos 1940 ou 1950, com a arrogância do ser humano que acredita dominar a natureza.
A agroecologia pode alimentar o mundo?
Existem estudos rigorosos que demonstram que sim, mas temos que ser cautelosos, caminhar passo a passo. A transformação do sistema alimentar mundial deve ser acompanhada por uma mudança nos modos de consumo. É impossível se continuarmos comendo tanta carne e desejar ter tomates o ano todo.
Estamos dispostos a essa mudança de hábitos, a aceitar os limites do planeta?
Não resta outra opção. Enfrentamos uma urgência climática, não uma crise, como dizem alguns. A Terra está se metamorfoseando. E não é a sua sobrevivência que está em jogo, mas a dos seres humanos. A Terra pode viver sem nós, para ela dá no mesmo. A questão é como preservar as sociedades humanas, enquanto a Terra muda devido à ação humana. Fomos capazes de destruir; também podemos encontrar o caminho da resiliência.
Que otimista!
Nunca deixo de acreditar na inteligência humana e nas dinâmicas coletivas que buscam o bem comum. Ao mesmo tempo, sou pessimista porque observo a enorme resistência das multinacionais agroalimentares e agroquímicas. Uma atitude semelhante à do setor energético. Falamos de descarbonização, mas os fatos parecem demonstrar que gastaremos até a última gota de petróleo.
E mesmo assim, prefiro ser otimista e me apegar à essência do altermundialismo: um sentimento de pertença planetária, uma consciência universal que atravessa classes, setores e países. Um movimento global que não busca alcançar o poder, mas, sim, pode influenciar sua direção.
A guerra na Ucrânia revelou as fragilidades do sistema alimentar mundial. Entre os mais prejudicados pelo impacto do conflito na exportação de grãos ucranianos estão países africanos como Somália e Níger, onde a fome disparou. Esta lição servirá para algo?
Há tempo existe uma geopolítica do trigo. E receio que a guerra sirva apenas para consolidar o poder dos países que controlam seu mercado mundial. Foi o que vimos com a atitude da Rússia ao impedir as exportações da Ucrânia, decidindo, assim, quem come e quem não.
Gostaria de ressaltar, em todo o caso, como esses sistemas de dependência alimentar foram construídos na África, durante os últimos 30 ou 40 anos, baseados no trigo, soja, milho e leite. Os grandes atores da ajuda internacional, com os Estados Unidos no comando, mudaram o regime alimentar dos países que passavam fome. Não foram ajudados a se alimentar com seus próprios recursos, mas com os excedentes dos países ricos. Em certas ocasiões, em troca de um favor para o acesso a recursos ou por outros interesses geopolíticos.
Como poderia ter sido feito de outra forma?
Ajudando esses países a sintetizar e teorizar seus saberes ancestrais, convertê-los em ciência, dividi-los com outros agricultores e pecuaristas de suas comunidades. Além dos envios diretos de alimentos, os programas de ajuda agroalimentar na África costumam seguir o mesmo esquema: um grupo de cientistas ocidentais diz aos habitantes locais o que e como se cultiva, sempre com aditivos químicos.
Temos de ser mais frugais e austeros, conforme defendem teóricos do decrescimento como o seu compatriota Serge Latouche?
Enfrentamos uma rápida transformação do sistema terrestre, do clima, da biodiversidade, dos oceanos... Não sabemos exatamente para onde nos dirigimos. As soluções técnicas (drones, satélites...) são rapidamente superadas pelo ritmo da mudança. E a natureza humana tem dificuldade em se projetar para o futuro. Falamos de catástrofes daqui a 10 ou 20 anos, mas sem especificar. É como o fumante: teme morrer de câncer de pulmão, mas diz a si mesmo que nunca será causado pelo cigarro que acaba de acender.
A economia circular, a transição verde e a cultura da reciclagem serão suficientes para manter a habitabilidade da Terra?
A gestão de resíduos, a economia circular e os circuitos curtos [em que apenas um intermediário intervém entre o produtor e o consumidor] têm coisas boas. E é bom que tenhamos obrigado as empresas a fazer tais ajustes. No entanto, se não modificarmos o pensamento de base, muito em breve tudo volta ao ponto de antes e se ativa a máquina de sempre, essa que responde a uma única pergunta: como ganhar mais dinheiro?
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“Não podemos continuar comendo tanta carne e desejar ter tomates o ano todo”. Entrevista com Gilles Luneau - Instituto Humanitas Unisinos - IHU