24 Abril 2023
"Falei de alimentação, mas os absurdos de um mundo construído com base no lucro de poucos e não no bem-estar de todos permeiam todos os âmbitos das nossas vidas e estão nos levando ao abismo. É preciso mudar de rumo, reconhecendo que daqui para frente o caminho para um futuro possível é aquele que une justiça social e ecológica. Só assim conseguiremos realmente realizar a felicidade humana e a salubridade do planeta", escreve Carlo Petrini, fundador do Slow Food, ativista e gastrônomo, sociólogo e autor do livro Terrafutura (Giunti e Slow Food Editore), no qual relata suas conversas com o Papa Francisco sobre ecologia integral e o destino do planeta, em artigo publicado por La Stampa, 22-04-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Que Terra queremos para o futuro? Uma Terra onde só os mais bem equipados para enfrentar os eventos climáticos extremos conseguirão sobreviver? Sinceramente, essa visão me causa arrepios.
O objetivo é imaginar e construir uma Terra que não deixe ninguém para trás. Isso pode ser feito apenas se a justiça ecológica e a justiça social forem vistas como dois lados da mesma moeda; ou, usando as palavras do Papa Francisco, se soubermos “escutar tanto o grito de terra como aquele dos pobres".
De fato, a mudança climática é uma das maiores iniquidades planetárias: as pessoas mais vulneráveis e marginalizadas, que muitas vezes vivem ou vêm de países do Sul global e cuja contribuição para a crise ambiental foi praticamente nula, são aquelas que mais sofrem as consequências (inundações, secas prolongadas, aumento do nível do mar) sem ter instrumentos adequados para se proteger. Pelo contrário, devido à exploração de recursos, as economias do Norte global são as maiores responsáveis por essa mudança, sem querer reconhecê-lo e mostrando reticência em modificar os estilos de vida.
Vou me explicar melhor apresentando alguns exemplos emblemáticos que afetam de perto os sistemas alimentares, responsáveis por cerca de 37% das emissões globais de gases de efeito estufa. O desperdício de alimentos, que ultrapassa 30% do que é produzido, é responsável por cerca de 8% das emissões de CO2 e está associado ao consumo de solo e água proporções inacreditáveis e totalmente inúteis já que tal produção não alimenta ninguém. Tudo isso acontece enquanto há 828 milhões de pessoas que passam fome, 45 milhões das quais são crianças.
Esses números abalam os pressupostos que sustentam a revolução verde e a industrialização dos nossos sistemas alimentares. Processos que visavam alimentar uma população em crescimento, mas que na realidade desestabilizaram o planeta (destruição da biodiversidade, erosão dos solos, contaminação das águas), prejudicando a saúde e exacerbando as desigualdades sociais.
As mulheres que trabalham na agricultura intensiva e que são repetidamente expostas a pesticidas e fertilizantes registram taxas recordes de infertilidade nove vezes superiores: quem nos sustenta na vida cultivando os alimentos, é excluído da possibilidade de dar a vida por causa de uma agricultura criminosa que envenena. Além disso, o alimento a baixo custo e superprocessado priva as comunidades rurais de sua soberania alimentar e cria problemas de saúde (obesidade, diabetes, câncer, problemas cardiovasculares) devido a alimentos ricos em sais, açúcares e gorduras que, devido aos preços aviltados, se tornam a principal fonte de nutrição de pessoas marginalizadas (pobres, mulheres, crianças, minorias étnicas). O desmatamento da floresta amazônica brasileira, que abriga a maior diversidade de povos indígenas, é quase todo prerrogativo da indústria intensiva das carnes, que aqui cria pastagens ou lavouras de soja.
Para suportar os ritmos intensivos do setor alimentar, que entre todos é o que mais altera o clima, também existem matadouros onde o respeito pelos trabalhadores (e também pelos animais) é a menor das preocupações: turnos intermináveis, nenhuma proteção social ou continuidade de trabalho, salários baixos e condições de estresse muito altas. Aqueles que trabalham nesses lugares muitas vezes o fazem por falta de alternativas.
Falei de alimentação, mas os absurdos de um mundo construído com base no lucro de poucos e não no bem-estar de todos permeiam todos os âmbitos das nossas vidas e estão nos levando ao abismo. É preciso mudar de rumo, reconhecendo que daqui para frente o caminho para um futuro possível é aquele que une justiça social e ecológica. Só assim conseguiremos realmente realizar a felicidade humana e a salubridade do planeta.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Vamos salvar o Sul Global parando a injustiça dos desperdícios de alimentos. Artigo de Carlo Petrini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU