15 Setembro 2023
"Mas, ao mesmo tempo, deve ser esclarecido que essas aquisições de conhecimento, por mais importantes que sejam, não alteram o juízo global que a historiografia - pelo menos aquela mais criticamente monitorada - formulou nos últimos anos sobre a relação entre a Igreja e os Judeus", escreve Daniele Menozzi, historiador do cristianismo e professor emérito da Normale di Pisa, em artigo publicado por Settimana News, 09-09-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Vários jornais divulgaram a notícia de um workshop realizado no Museu do Holocausto, em Roma, em 7 de setembro, com o título Salvos. Os judeus escondidos nos institutos religiosos de Roma (1943-44).
Ali foi apresentado o resultado de um grupo de pesquisa, formado por estudiosos católicos e judeus e coordenado por dois jesuítas, Dominik Markl, professor de exegese do Antigo Testamento no Pontifício Instituto Bíblico, e o reitor do próprio Instituto, Michael Kolarcik. A contribuição de conhecimento mais significativa do trabalho realizado advém da descoberta de documentação que se pensava perdida.
Em 1961, Renzo De Felice, que mais tarde ficaria famoso pela poderosa biografia do Duce - o primeiro volume, Mussolini, o revolucionário, seria justamente publicado quatro anos depois -, publicou o livro que marcou uma virada decisiva no seu itinerário historiográfico.
Tratava-se de a História dos judeus italianos sob o fascismo, resultado de pesquisa encomendada pela União das Comunidades Israelitas. O trabalho envolvia, de fato, a sua passagem das investigações sobre o jacobinismo setecentista - ao qual se dedicara inicialmente por incentivo do seu orientador, Delio Cantimori - para os estudos sobre o regime fascista.
No prefácio do volume de 1961, Cantimori, ainda que no quadro de uma calorosa apreciação geral, não deixava de salientar que, na reconstrução do estudioso de Rieti, não faltava a sobreposição da ideologia à história. No prefácio da reedição de 1988, De Felice, sublinhando que aquelas observações adquiriam particular valor numa historiografia contemporânea que naquele período ele considerava, não erradamente, como fortemente condicionada pelas opções político-ideológicas dos autores, observava que ele havia decidido retirar alguns parágrafos da obra. Presentes em sua versão inicial, os havia mantido também na reimpressão de 1972.
Hoje podemos dizer que a limpeza de diversas expressões polêmicas, sem dúvida reveladora da honestidade intelectual do historiador, não havia eliminado completamente juízos e considerações não suficientemente fundamentados em base crítica. Mesmo assim, aquele livro ainda constitui uma mina inesgotável de dados e de informações da qual os estudiosos do tema continuam a haurir proveitosamente.
Entre seus muitos méritos deve-se contar também a publicação de um rico apêndice documental, composto por 41 textos, que ocupam aproximadamente cento e cinquenta páginas em corpo de fonte menor.
Entre esses documentos estava uma “Lista de casas religiosas em Roma que hospedaram judeus”. Constavam os nomes de 155 institutos romanos – 100 femininos e 55 masculinos –, para cada um dos quais era indicado o número de refugiados. De Felice contava cerca de 3.700 pessoas, acrescentando que constituíam apenas uma parte daqueles que haviam sido acolhidos pela grande e articulada rede assistencial construída pela Igreja em Roma.
Em nota também recordava que o documento lhe fora entregue pelo jesuíta Robert Leiber, secretário particular de Pio XII. O religioso empenhava-se na época numa árdua defesa pública do pontífice em relação às acusações relativas aos seus silêncios em relação ao Holocausto, que culminaram em 1963 com a representação de O vigário de Rolf Hochhuth.
Embora nutrindo dúvidas sobre a apologia pontífice feita pelo jesuíta, De Felice via naquele documento uma prova inequívoca da impressionante obra assistencial realizada pelo mundo católico para os judeus.
O subsequente aumento das polêmicas sobre a atitude da Igreja em relação ao Holocausto tornava aquele documento de particular interesse. Era frequentemente citado e, às vezes, contextualizado. Por exemplo, alguns estudiosos notaram que se tratava de 155 casas religiosas das cerca de 750 então presentes na cidade. No entanto, o original nunca havia sido encontrado.
Nem mesmo a Irmã Grazia Loparco, envolvida no grupo de pesquisa que realizou o worhshop no Museu do Holocausto, havia conseguido recuperá-lo, apesar das pacientes pesquisas de arquivo na Rádio Vaticana e em várias sedes da Companhia realizadas para seus ensaios sobre a rede assistencial dos religiosos romanos.
No entanto, no encontro de 7 de setembro foi anunciado ter sido encontrado o documento nos arquivos do Pontifício Instituto Bíblico. Também foram formuladas as primeiras aquisições de conhecimento resultantes da descoberta.
Em primeiro lugar, foi identificado o autor do documento. O P. Leibner – em artigo sobre Pio XII e os Judeus publicado em 1961 na La Civiltà Cattolica– atribuiu a sua paternidade a Beat Ambord, o jesuíta suíço locutor das transmissões em língua alemã da Rádio Vaticana, que dirigiu juntamente com o coronel Ulrich Ruppen uma obra assistencial para os judeus.
Agora sabemos, porém, que o documento foi compilado entre junho de 1944 e a primavera de 1945, pouco depois da libertação de Roma, pelo ecônomo do Pontifício Instituto Bíblico, Pe. Gozzolino Birolo, por sua vez ligado ao escritório romano da Delasem, a rede internacional de assistência aos judeus.
Em segundo lugar, o p. Leibner, no artigo citado acima, afirmava que, ao transmitir-lhe o documento em 1954, a Srta. Iris Rub-Rothenberger, funcionária da Rádio Vaticana, lhe garantira ter verificado a exatidão do número total “com uma pesquisa em cada uma das casas".
O grupo de trabalho, mediante uma comparação detalhada com os documentos conservados nos arquivos da Comunidade Judaica, conseguiu estabelecer que das mais de 4.300 pessoas citadas na lista, 3.200 resultam certamente judias.
Os estudiosos também divulgaram que “por razões de proteção da privacidade” o acesso público à documentação descoberta não é permitido no momento. A notícia pode parecer à primeira vista desconcertante, mas os investigadores há tempo conhecem as limitações a que o seu trabalho está sujeito devido a uma obtusa legislação no campo arquivista, que se mostra completamente incapaz de distinguir entre as exigências da pesquisa científica e a corrida midiática ao furo jornalístico sensacionalista. Não sabemos, portanto, se o documento em questão está inserido num dossiê a partir do qual seria possível obter outros elementos.
De qualquer forma, podemos fazer uma observação geral. Como vimos, a descoberta do documento fornece esclarecimentos úteis sobre a assistência católica aos judeus na Roma submetida ao nazi-fascismo. Muito provavelmente, maiores aprofundamentos sobre os materiais ajudar-nos-ão a definir melhor os contornos de uma questão sobre a qual, devido à óbvia confidencialidade de operações de caridade arriscadas para a próprias vidas daqueles que as realizavam, não temos muitas informações.
Mas, ao mesmo tempo, deve ser esclarecido que essas aquisições de conhecimento, por mais importantes que sejam, não alteram o juízo global que a historiografia - pelo menos aquela mais criticamente monitorada - formulou nos últimos anos sobre a relação entre a Igreja e os Judeus.
A posição com que a comunidade eclesial italiana - e não apenas Pacelli, como basicamente sugeria De Felice - enfrenta as leis raciais do fascismo é bem esclarecida pelos artigos que apareceram no La Civiltà cattolica: discriminar é lícito, aliás oportuno, uma vez que os judeus constituem uma ameaça para a sociedade cristã. Mas com a condição de que a discriminação não leve à perseguição.
O antissemitismo subjacente que permeia a cultura católica da época prevê, em suma, que se possa (aliás, pelo menos em certos casos, de deva) privar os judeus dos direitos políticos e civis, desde que não se acabe por retirar-lhes seus fundamentais direitos naturais, a começar por aquele à vida.
Mas, depois do 8 de setembro de 1943, o mundo católico vê-se confrontado com uma situação em que já não sustenta a linha que tinha conseguido manter, apesar das reservas derivantes da violação à Concordata sobre questões matrimoniais, um apoio substancial às leis raciais do regime. O nazi-fascismo transforma de fato a discriminação em perseguição. Também o direito à vida passa agora a ser questionado.
Daí a ativação das formas de assistência que o novo documento nos ajuda a definir melhor. Mas isso não significa que a prática assistencial, por mais ampla e difundida que tenha sido, apague os sedimentados esquemas mentais que estão enraizados em antigos estereótipos antijudaicos renovados pelo moderno antissemitismo político. O mundo católico, permeado pela nostalgia da cristandade, mostrou-se tudo menos que insensível às suas perspectivas.
Levará tempo para fazer amadurecer aquela nova atitude de que a declaração conciliar Nostra aetate (1965) é testemunha. No entanto, a documentação agora encontrada levanta novas questões. O papel central de Augustin Bea na redação daquele documento conciliar é bem conhecido.
Pois bem, no tempo em que o ecônomo do Pontifício Instituto Bíblico redigia a lista das casas religiosas que haviam acolhido os judeus perseguidos, Bea era o seu reitor.
Conhecemos também o seu empenho para obter, na reforma da Semana Santa promovida por Pio XII, a anulação daquelas referências à “perfídia judaica” que tinha sido um dos vetores mais incisivos do antissemitismo na cultura católica.
Na década de 1950, os esforços do futuro cardeal não obtiveram resultados. Mas investigar as atitudes adotadas durante a guerra dentro do Pontifício Instituto Bíblico diante da perseguição antijudaica é uma linha de pesquisa bastante interessante. Poderia ajudar-nos a compreender os itinerários pelos quais os círculos católicos mais conscientes chegam a abandonar o enraizado preconceito antissemita.
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Igreja-Judeus: o documento encontrado. Artigo de Daniele Menozzi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU