Marco temporal: demarcação de terras não é um pedido de desculpas. É justiça

De volta à pauta do STF, a decisão de demarcar terras somente tendo como base a promulgação da Constituição de 1988 coloca em jogo povos originários e a preservação ambiental no Brasil

Foto: Ricardo Stuckert

Por: João Vitor Santos | 04 Setembro 2023

Nesta semana, os olhos estão voltados para o plenário do Supremo Tribunal Federal – STF. Lá os 11 ministros decidem se as demarcações de terras indígenas devem ter como baliza a Constituição de 1988. Ou seja, pela tese do Marco Temporal, os povos originários teriam direito a terras que estivessem ocupadas em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. A tese ignora tanto a cosmovisão indígena acerca da terra e dos territórios como também o fato de que em 1988 grande parte das populações indígenas já haviam sido exterminadas.

Com o seu humor felino e de forma claríssima, Gregório Duvivier, em seu programa Greg News, dispara: “depois de séculos de extermínios, a demarcação de terras indígenas não é para pedir desculpas [aos povos indígenas], mas para oferecer algo que é muito mais útil: justiça”. Greg, também de uma forma didática e com as elaborações irônicas que muitos pensam, mas que bem poucos falam, detalha o contexto em emerge a tese do Marco Temporal.

 

O cardeal dom Leonardo Steiner, que tem toda uma história de relação e trabalho com povos indígenas também observa que implementação da tese do Marco Temporal será “um marco na continuidade de destruição”, repetindo muitos dos episódios do passado que maculam a História do Brasil com sangue dos primeiros habitantes destas terras. Como Gregório, dom Leonardo entende que sepultar o Marco Temporal é uma questão de justiça. “Se não aprovado será um grande marco, um marco de justiça, um marco de preservação dos nossos povos indígenas, será um marco para podermos ajudar os povos a se erguerem, mas também dizerem que eles são realmente brasileiros. E são brasileiros que eles têm direito a suas terras, que tem direito a viver do modo que eles desejam, que eles têm direito a exercer a sua cidadania”, diz, em reportagem publicada pelo IHU.

 

Dom Leonardo Steiner. (Foto: Luis Miguel Modino)

Dom Leonardo ainda chama atenção para outro aspecto: não se trata apenas de preservar os modos de vida dos povos indígenas, o que já seria bastante coisa. Acabar com o índio significa “destruição da natureza, do meio ambiente, destruição das culturas”. Como observa o antropólogo Vicent Carelli, em entrevista concedida do IHU, “Eles são o povo eleito para proteger as florestas e a terra em que vivem”. Para os índios, não é somente posse e lugar de produção, é espaço para viver em conexão, como explica Carelli, ao descrever um processo de retomada de território por indígenas. “O sinal da retomada é transmitido aos rezadores no processo de reza e essa oração intensa é feita para proteger, porque eles vão certos de que não vai acontecer nada”.

No IHU, a luta pela preservação dos modos de vida originários e através dela de todas as formas de vida é pauta constante. Na revista IHU On-Line número 527, por exemplo, o tema é tratado diretamente na relação à preservação ambiental. É o que revelam os entrevistados deste número da revista intitulado Ore Ywy – A necessidade de construir uma outra relação com a nossa terra.

 

Para compreender esta relação que se tem com a terra é preciso se aproximar da cosmovisão indígena. Neste sentido, o livro A queda do Céu (Companhia das Letras, 2015), escrito por Bruce Albert a partir dos relatos de Davi Kopenawa, pode ser um caminho. No IHU, a obra foi discutida em duas ocasiões. Pela primeira vez com o Prof. Dr. José Antonio Kelly Luciani, da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Depois com a Profa. MS Julie Stefane Dorrico Peres, da Universidade Federal de Rondônia – UNIR. Confira:

 

 

Para compreender, mesmo que minimamente, este modo de vida indígena, é preciso primeiro uma desconstrução, superando o olhar colonialista e desenvolvimentista. O problema é que o discurso do agronegócio e do progresso inebriam estes movimentos, deixando parecer que é natural e até necessário a destruição da floresta. É justamente esta visão que Nurit Bensusan e Pe. Dario Bossi tentam desconstruir em outra conferência realizada no IHU.

 

Mas, o que querem os índios com tanta terra? Bem, na verdade, a demarcação de terras, para eles, não se trata de uma questão de posse, de poder. É, na verdade, um espaço para constituir um bem-viver, como revelam as entrevistas da edição número 257, da revista IHU On-Line, intitulada Em busca da terra sem males: os territórios indígenas.

 Marco Temporal

A tese do Marco Temporal foi criada em 2009. Desde então, o IHU vem acompanhando as discussões acerca do tema com o objetivo de fortalecer a resistência e luta dos povos originários.

Confira algumas entrevistas que foram destaque no IHU e que discutiram o Marco temporal ao longo destes anos:

Entenda mais sobre o Marco Temporal

A tese do “Marco Temporal de Ocupação” foi criada em 2009, em parecer da Advocacia-Geral da União - AGU sobre a demarcação da reserva Raposa Serra do Sol. Segundo o argumento jurídico, os povos indígenas só teriam direito de estar nas terras já ocupadas ou em disputa judicial quando foi homologada a Constituição, em 5 de outubro de 1988.

Caso Xokleng

recurso extraordinário n. 1.017.365, conhecido como caso Xokleng, foi interposto pela Funai, e busca manter reconhecido o território tradicional da Terra Indígena Ibirama-Laklanõ, do povo Xokleng, em Santa Catarina. A ação, distribuída ao ministro Edson Fachin, teve reconhecida a repercussão geral. Isto é, o entendimento que o Supremo adotar neste caso servirá de parâmetro para a demarcação de todas as terras indígenas do país.

 

Pauta no STF

julgamento da tese do Marco Temporal voltou à pauta do Supremo Tribunal Federal - STF na quarta-feira, 30 de agosto. O caso está sendo julgado desde 2017 na Suprema Corte e o julgamento foi retomando com dois votos contra — Edson Fachin e Alexandre de Moraes — e dois a favor — Kassio Nunes Marques e André Mendonça. Ainda na semana passada, os ministros Cristiano Zanin e Luis Roberto Barroso também votaram conta a tese do Marco Temporal, fechando o placar em 4 X 2. A ação aguarda ainda os votos dos demais ministros da corte e o julgamento será retomado neste semana.

Afronta à Constituição

Reconhecido como “julgamento do século” pelas lideranças da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) – Mauricio Terena e Dinaman Tuxá —, a aprovação do Marco Temporal vai ferir de morte os direitos constitucionais dos povos indígenas.

teoria do Indigenato foi discutida e acatada pelos constituintes. Assim, a titulação e demarcação de terras indígenas, assim como os direitos dos indígenas, estão previstos e assegurados nos artigos 231 e 232 da Constituição Cidadã.

 

Conforme a Carta Magna, a responsabilidade da demarcação e proteção desses territórios é da União, segundo o Art. 231: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

“Nós não somos donos da terra, nós somos a terra”

cosmovisão indígena, seus modos de vida e relação com a terra são diferentes do “homem branco”. Uma outra forma de ver, existir e habitar, um bem-viver de integração e preservação da floresta.

Nós não somos donos da terra, nós somos a terra. O direito congênito, natural e originário é anterior ao direito da propriedade privada. Não estamos lutando por reforma agrária. Pelo fato de nós sermos a terra, temos o direito de estarmos na terra e o direito de proteger o que chamamos de sagrado, a natureza; é ela que nos nutre e nós a nutrimos à medida que a protegemos”, explicou Casé Angatu Xukuru Tupinambá, em entrevista ao IHU.

 

Genocídio e morte cultural

A maior consequência da validação do Marco Temporal, como apontam lideranças indígenas, é o aprofundamento do genocídio dos povos originários. Além do extermínio dos povos isolados, "teremos ainda mais a ausência de políticas públicas destinadas aos indígenas, teremos mais violência, mais expulsões dos povos originários. Enfim, um processo de absoluto extermínio da cultura e dos povos indígenas no nosso país", explica a advogada Paloma Gomes, da assessoria jurídica do Cimi.

Para Rafael Modesto, “se o STF fixa a tese do marco temporal, consideramos que vai haver uma verdadeira devassa cultural, uma morte cultural [...]. Eles serão subjugados a viver nas margens das estradas ou nas periferias das cidades. Isso, para os povos indígenas é, de fato, a sua morte cultural”, adverte o advogado.

 

Mobilização e esperança

Indígenas de todo o país chegaram a Brasília nos últimos dias. A presença deles na capital federal é para sensibilizar os ministros e a opinião pública para as consequências da aprovação do Marco temporal.

Mesmo os mais de 500 anos de opressão, violência e atrocidade contra os indígenas não conseguiram apagar a esperança do reconhecimento dos seus direitos: “esperamos que o Supremo aplique o texto constitucional, aplique os artigos 231 e 232 na íntegra, conforme rege a nossa Carta Magna”, salientou Ivo Macuxi em recente entrevista ao IHU.

IHU se une a mobilização nacional e promove novo evento sobre resistência indígena e Marco Temporal

Instituto Humanitas Unisinos — IHU promove a conferência Ore Iwy: o direito à terra e à vida contra o Marco Temporal, com a presença da Profa. Dra. Fernanda Frizzo Bragato - PPG Direito Unisinos, com o Adv. Ivo Cípio Aureliano Makuxi e com o Adv. Rafael Modesto.

O evento será transmitido ao vivo nos canais do IHU, na segunda-feira, dia 04 de setembro de 2023, às 10h.

 

Virada Amazônia de Pé

O evento marca também a celebração do Dia da Amazônia, 5 de setembro. Inspirados pelo Movimento Amazônia de Pé e pela proposta da Virada Amazônia de Pé, a atividade aponta a importância da demarcação de terras indígenas — que são as mais preservadas dentro do bioma — para salvar a floresta.

Na Semana da Amazônia, a Virada Amazônia de Pé contará com atividades em todo o Brasil e na Espanha. São ações para marcar a resistência do povo brasileiro ao Marco Temporal e que visam valorizar a preservação da maior floresta do planeta.

Acesse outras conferências do IHU sobre a temática indígena

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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