07 Junho 2023
Supremo tem chance de dar um basta à ofensiva ruralista, mas ministro indicado por Bolsonaro pode paralisar análise.
A reportagem é de Murilo Pajolla, publicada por Brasil de Fato, 07-06-2023.
O plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) deve retomar nesta quarta-feira (7) o julgamento do marco temporal, a principal aposta do agronegócio brasileiro para travar as demarcações de terras indígenas e questionar territórios já demarcados.
A Corte vai definir se é constitucional ou inconstitucional a tese jurídica que considera o dia 5 de outubro de 1988 - data da promulgação da Constituição - como o marco temporal de demarcação de terras indígenas. A sessão plenária começa nesta quarta-feira (7) às 13h (horário de Brasília).
Se não tiverem provas de que ocupavam a área no período estipulado pelo marco temporal, centenas de grupos indígenas que foram expulsos de forma violenta de territórios - como ocorreu regularmente na ditadura militar de 1964, por exemplo - perderão o direito à terra.
A Constituição reconhece textualmente o direito originário dos indígenas sobre terras tradicionalmente ocupadas, sem mencionar nenhum critério de tempo para demarcações. Por isso, o marco temporal é considerado nitidamente inconstitucional por juristas, advogados e pelo Ministério Público Federal (MPF).
"O Supremo, sob a presidência da Ministra Rosa Weber, tem dado boas respostas em matérias indígenas e climáticas. Na advocacia indigenista a expectativa é positiva, apesar de sempre ser possível um pedido de vistas ou outra forma de adiar o julgamento", avalia Nicolas Nascimento, advogado e assessor jurídico do Cimi.
O STF interrompeu a votação do marco temporal em 2021, após um pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes. Até agora dois ministros votaram: o relator Edson Fachin, contra o marco temporal, e Nunes Marques, a favor.
A paralisação da análise por dois anos permitiu que parlamentares ruralistas, bolsonaristas e do centrão avançassem com o tema na Câmara, onde o marco temporal foi aprovado em regime de urgência na última semana, graças à atuação de Arthur Lira (PP-AL).
No Senado, a sinalização é de menos pressa para a votação, que deve ser feita em tramitação regular. Há também um parecer emitido durante o governo Michel Temer pela Advocacia-Geral da União (AGU), órgão do poder Executivo, favorável ao marco temporal.
Mas quem tem legitimidade para definir a aplicação do marco temporal: Executivo, Congresso ou STF? O Brasil de Fato consultou especialistas na área jurídica para esclarecer a questão.
"Embora existam vários atores buscando regulamentar o tema, a prerrogativa de interpretação da Constituição Federal é do Supremo, assim como a modulação de seus entendimentos", explica Nicolas Nascimento, advogado e assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Por não ter respaldo literal na Constituição e pelo tema ainda estar ainda em debate no STF, o parecer da AGU de Temer está suspenso até a conclusão do julgamento no Supremo. O posicionamento não foi oficialmente revogado na gestão Lula, apesar da pressão do movimento indígena.
"O Judiciário tem legitimidade para derrubar uma lei que contrarie o direito, como no caso do marco temporal, sem que isso signifique desarmonia entre os poderes da República", concordou o advogado, mestre em antropologia e doutorando na Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Felipe Jucá.
"O mesmo assunto discutido em diferentes poderes causa a tensão que estamos observando. E caso o Legislativo finalmente aprove o marco temporal, nada impede que essa nova lei também seja judicializada", explicou Jucá, que também é pesquisador ligado ao projeto Nova Cartografia Social na Amazônia.
Alçado ao STF por Bolsonaro, o "terrivelmente evangélico" André Mendonça será o segundo ministro a votar, logo atrás de Alexandre de Moraes, autor do pedido de vista. Em 2021, Bolsonaro se declarou confiante de que Mendonça se posicionaria a favor do marco temporal como integrante da Corte.
Enquanto advogado-geral da União de Bolsonaro, Mendonça se manifestou no processo pela adoção do critério do marco temporal. Por isso, o setor jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) chegou a defender, em 2021, que o ministro se declarasse impedido de votar.
Mais recentemente, Mendonça se encontrou com um dos principais entusiastas do marco temporal em Santa Catarina, o deputado estadual Mauro De Nadal (MDB-SC). Na audiência há duas semanas, o político catarinense vocalizou o posicionamento dos proprietários de terras. Gilmar Mendes também participou do encontro.
Por isso, advogados e ativistas ligados à causa socioambiental preveem o voto de Mendonça favorável à tese ruralista ou um novo pedido de adiamento, que pode dar mais fôlego para o Congresso aprovar o marco temporal.
Também indicado à Corte por Jair Bolsonaro, Nunes Marques empatou o julgamento em 1 a 1 ao votar a favor do marco temporal. O ministro repetiu argumentos de entidades ruralistas e chegou a reproduzir a fake news de que, sem o critério de demarcações, haveria uma "expansão ilimitada" das terras indígenas, com ameaça à "soberania e independência nacional".
No voto contrário, o relator Edson Fachin defendeu que a posse territorial indígena não é igual à posse civil e, por isso, deve ser interpretada com base na Constituição, que garante o direito originário às terras ancestralmente ocupadas.
Organizações indígenas estão mobilizadas desde segunda-feira (5) em Brasília, numa tentativa de sensibilizar os ministros e a opinião pública. As lideranças e ativistas indígenas alertam que as consequências da validação do marco temporal poderão aprofundar o processo de genocídio vivido pelos povos originários.
Mesmo comunidades que vivem em terras já demarcadas poderão ser expulsas, caso não consigam comprovar que ocupavam o território no período estabelecido pela tese jurídica.
Isso porque o Supremo classificou o julgamento do marco temporal como de repercussão geral. Ou seja, será criada uma jurisprudência que servirá de base para julgar todos os casos semelhantes em outros tribunais, definindo o futuro das próximas gerações de indígenas brasileiros.
"Caso a tese seja referendada, teremos a paralisação das demarcações e teremos certamente pedidos de revisões de terras já demarcadas", explicou ao Brasil de Fato, em 2021, Paloma Gomes, assessora jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Grileiros, madeireiros e garimpeiros, que veem nos territórios de indígenas uma fonte de lucro ainda inexplorada, podem ser ainda mais estimulados a adentrar as áreas preservadas, engrossando a já crescente estatística de conflitos fundiários.
"Nós teremos ainda mais a ausência de políticas públicas destinadas aos indígenas, teremos mais violência, mais expulsões dos povos originários. Enfim, um processo de absoluto extermínio da cultura e dos povos indígenas no nosso pais", complementa a advogada.
O processo que volta a ser analisado pelos ministros diz respeito à posse do território do povo Xokleng, de Santa Catarina. Trata-se de uma ação de reintegração de posse movida em 2009 pelo governo do estado referente à Terra Indígena (TI) Ibirama-Laklãnõ, declarada em 2003, habitada por mais de 2 mil indígenas também dos povos Guarani e Kaingang.
O governo catarinense obteve ganho de causa nas instâncias inferiores. Agora, as decisões anteriores são contestadas no STF pela Fundação Nacional do Índio (Funai).
A tese foi usada pela primeira vez para questionar a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Em 2009, o Supremo determinou a demarcação contínua da TI e retirada da população não indígena.
"Embora a decisão tenha sido favorável aos indígenas, esse critério começou a ser aplicado de maneira indevida e descabida em outros processos de demarcação que não têm nenhum aspecto parecido com esse processo em específico", explicou ao Brasil de Fato, em 2021, Samanta Pataxó, do setor jurídico da Apib.
Para se ter uma ideia do prejuízo que pode ser causado aos indígenas, basta observar os casos em que o marco temporal já serviu de base para decisões judiciais desfavoráveis aos povos.
Um exemplo simbólico é a Terra Indígena Guyraroka, do povo Guarani Kaiowá, no município de Caarapó, no sul do Mato Grosso do Sul.
Cercados pelo plantio de monoculturas como soja, milho e cana-de-açúcar, a comunidade formada por 26 famílias teve o procedimento administrativo de demarcação de sua terra anulado em 2014 pela Segunda Turma do STF com base no marco temporal.
O marco temporal tem a aplicabilidade questionada no caso de povos que mantêm contato permanente com não-indígenas, mas o retrocesso seria ainda maior para os isolados, aqueles que preferem não manter laços com o restante da população. Estima-se que existam pelo menos 100 grupos nessa situação na parte brasileira da floresta amazônica, segundo o Instituto Socioambiental (ISA).
Conforme aponta o Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (OPI), na maioria dos casos é impossível comprovar a presença desses grupos em determinada área e em uma data específica. Isso porque essas populações estão em constante deslocamento, recuando para áreas mais preservadas em função da pressão sofrida pelo desmatamento.
"Se o marco temporal se tornar uma lei, praticamente todas as terras indígenas demarcadas de isolados seriam extintas. Não dá para perguntar para eles [indígenas] se eles estavam lá em 1988. Provavelmente não estavam", explica o membro da OPI Fabrício Amorim. "Fica muito fácil entender por que essa é uma tese totalmente absurda e inaplicável para todos os povos indígenas, em especial para os isolados".
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Marco temporal volta ao STF: veja o que está em jogo e a expectativa para o julgamento - Instituto Humanitas Unisinos - IHU