16 Agosto 2017
Os alvos dos ruralistas são os indígenas e quilombolas, que lutam juntos por uma reparação histórica.
A reportagem é de Felipe Milanez e publicada por CartaCapital, 15-08-2017.
O "marco temporal da ocupação" é um argumento do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Carlos Ayres Britto, que surgiu em 2009, ao lado das 19 "condicionantes" inventadas pelo também ex-ministro do STF Menezes Direito no julgamento da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. O resultado é uma tentativa de malandragem jurídica ruralista para limitar as demarcações das terras indígenas.
Diz esse argumento que os direitos territoriais dos povos indígenas só têm validade se eles estivessem em suas terras em 5 de outubro de 1988. Queria o ministro Ayres Britto colocar uma "pá de cal nas intermináveis discussões sobre qualquer outra referência temporal de ocupação da área indígena". Achava que sua super caneta bastava para apagar a memória das violências e para borrar qualquer reparação do colonialismo.
Nesta quarta-feira 16, o STF vai decidir se realmente a malandragem ruralista do "marco temporal" se estende para todas as terras indígenas e, numa jogatina racista ruralista, se essa malandragem se estende também para limitar o reconhecimento das terras ocupadas por comunidades quilombolas.
A "tese" do marco temporal não deve sequer ser considerada uma "tese jurídica", tal é a incongruência de sua formulação e sua ausência total de verossimilhança com a realidade com a qual finge dar conta. Trata-se, mais corretamente, de um argumento racista para tirar de indígenas e quilombolas a posse de seus territórios. Uma argumentação que visa atingir populações racializadas justamente na sua relação histórica e coletiva com os territórios que vivem e onde existem.
Querem com uma caneta apagar a história da violência contra índios e pretos. Jogar uma "pá de cal", como escreveu o ministro. Os juízes, todos brancos, se confirmarem a tese estarão afirmando que o que aconteceu com índios e pretos antes da Constituição Federal de 1988, ou então antes da Lei Áurea, cem anos antes, em 1888, não importa, "deixa para lá". É uma das formas mais cínicas já inventadas pelo colonialismo para jogar para baixo do tapete os crimes e as injustiças históricas.
A tentativa de oficializar essa "tese" racista ressurgiu em 2012, com a portaria 303 da Advocacia-Geral da União, então comandada por Luís Inácio Adams, na época do então ministro da Justiça José Eduardo Cardoso. A portaria foi barrada pela luta do movimento indígena. O fantasma voltou à tona no último 19 de julho, quando finalmente Michel Temer publicou a portaria que estende os efeitos do julgamento da Raposa Serra do Sol para todo o País em troca de votos ruralistas para se salvar no Congresso.
É interessante notar o caráter racista desse movimento jurídico, que mira indígenas e quilombolas. No dia 6 de julho, o governo Temer publicou uma portaria, também racista, mas de cunho ainda mais violento, no qual criava um grupo de trabalho composto pela Polícia Federal e secretaria de Segurança Pública para formular propostas de "organização social" das comunidades indígenas e quilombolas. Ali também contava a presença quase imperceptível da Funai.
Por que trazer os quilombolas para o Ministério da Justiça se os interesses das comunidades quilombolas se representariam, dentro do governo, na Casa Civil, no Ministério da Cultura e no Incra, órgãos aos quais cabe o reconhecimento e a titulação de suas terras?
O líder indígena Ailton Krenak me explicou: "Querem acabar com a possibilidade de existência de coletivos com direitos históricos sobre territórios, por isso o alvo são indígenas e as comunidades quilombolas, pois são formas de acesso coletivo à terra.”
No julgamento dos embargos daquela decisão, o ministro Roberto Barroso havia classificado a decisão com as condicionantes de "atípica" e que "uma outra demarcação pode levar em conta outras circunstâncias."
Ocorre que o caso da Raposa Serra do Sol mobilizava justamente um fazendeiro gaúcho, que se tornou deputado federal e hoje é vice-governador do estado, que havia grilado terras em Roraima, destruído o ecossistema local para plantar arroz (mais de 50 milhões de reais em multas do Ibama), e que se aliou a militares ultra-nacionalistas para atacar os direitos indígenas. O grande absurdo nesse caso é que assim que foi expulso de Roraima, o fazendeiro colocou todas as suas tralhas em balsas e desceu o rio Amazonas até a ilha de Marajó, onde foi grilar terras, destruir o ecossistema e espoliar justamente comunidades quilombolas.
Tal como as "guerras justas" que eram apoiadas juridicamente pelo rei de Portugal, na qual se autorizava o massacres de indígenas para a escravização e a espoliação territorial, esses novos argumentos racistas jurídicos visam justamente legitimar a espoliação dos territórios indígenas e quilombolas para dar lugar ao agronegócio. Acontece que indígenas e quilombolas estão lutando juntos. É pouco provável que se intimidem com uma canetada racista e esqueçam de sua história.
Eliseu Lopes Guarani-Kaiowá, secretário-executivo da Articulação dos Povos indígenas do Brasil (Apib), explicou em um lindo discurso na Universidade de Brasília, na semana passada, transmitido pela Rádio Yandê (que faz a melhor cobertura das lutas indígenas), que a história não será apagada:
Os povos indígenas não foram trazidos da Europa para o Brasil. Todos os povos indígenas já eram aqui do Brasil. E nós sabemos, com todo o respeito aos parentes quilombolas que estão aqui, nos sabemos a história de vocês também: que vocês foram trazidos aqui acorrentados. Vocês foram trazidos forçadamente. E hoje nós estamos sofrendo juntos.
Nós indígenas estamos sendo expulsos da nossa terra. Há mais de quinhentos anos, nós estamos sendo massacrados. Com a ditadura nós perdemos muitos indígenas, não apenas Guarani e Kaiowá mas vários outros povos aqui do Brasil.
Com essas leis, e o marco temporal que está sendo pautado dia 16 de agosto no STF, se for aprovado vai legitimar esse massacre verdadeiro que nós povos indígenas sofremos há décadas, há mais de 500 anos aqui no Brasil. E a tarde nesse mesmo dia vai acontecer o julgamento sobre os direitos quilombolas e o julgamento de terras kaingang, aqui presente algumas lideranças kaingang.
Temos que fortalecer a nossa luta juntos, e fortalecer a nossa luta na base. Nós indígenas temos condições de paralisar esse Brasil se for aprovado o marco temporal. Nós não queremos que seja aprovado esse marco temporal, porque se for aprovado vai legitimar esse derramamento de sangue, esse massacre, genocídio, ataque paramilitar que expulsa indígenas das suas terras. Vai legitimar e vai afetar todos os povos, os quilombolas, aqueles que estão realmente defendendo o pequeno espaço para nosso sustento e nossa sobrevivência. Com nossos Deus, nossos xamãs e nosso criador do universo nós vamos conseguir nossos objetivos.
Estamos na luta e não vamos desistir, porque estamos em guerra. Já resistimos há mais de 500 anos. Querem acabar com a nossa cultura, querem acabar com a nossa língua, querem acabar com o modo de ser indígena. Mas até hoje estamos mantendo a nossa língua, a nossa tradição, a nossa reza, o nosso canto. Devastaram nossos matos e nossos rios. Mas estamos vivos. O Brasil é grande, estamos lutando por um pedaço de terra que o governo e esses políticos corruptos se negam a reconhecer. No papel está tudo escrito o nosso direito, só falta ser cumprido, só falta vontade política do governo.
Só por causa dessa caneta que não tem espírito, só por causa de um título de papel, estamos sofrendo as consequências desses que estão massacrando os povos originários do Brasil, os povos indígenas, e todos os povos que estão defendendo o seu direito. Vamos somar juntos. Nós precisamos derrubar esse marco temporal.
Nossas crianças já morreram, nossas lideranças já morreram. Quem está sendo engordado em cima da nossa terra são os bois, o lucro mais lucro da soja e da cana em cima das nossas terras. Essa é a nossa realidade que é uma vergonha que o Brasil aparece para fora do pais. Um país tão rico, hoje, aparece como sequestrador e massacrador de indígenas.
Estamos regando com o nosso sangue essa soja. Eles estão lucrando dinheiro, e esse dinheiro estão usando para matar as nossas lideranças, para perseguir as nossas lideranças, criminalizar as nossas lideranças. Essa é a realidade que vivemos hoje no Brasil.
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"Marco temporal", um argumento racista para legitimar massacres - Instituto Humanitas Unisinos - IHU